quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

NO OLHO DO FURACÃO, SOB A MIRA DO UFANISMO


ARTIGO ESCRITO EM 2007, AUGE DOS ATAQUES AOS MOVIMENTOS SOCIOAMBIENTAIS

No olho do furacão, sob a mira do ufanismo
Reza a lenda que Corumbá, no coração do Pantanal Mato-grossense e do subcontinente sul-americano, teria sido amaldiçoada por ninguém menos que um generoso frade capuchinho, o Frei Mariano, que vivera o clímax da Guerra da Tríplice Aliança em solo pantaneiro e que no pós-guerra de 1870 se dedicara a cuidar de órfãos e viúvas, mas que, vítima da disputa entre a Igreja e a Maçonaria, acabara difamado e, à revelia, transferido ao interior de São Paulo, onde se suicidara mais tarde. A bizarra lenda em que alegóricas sandálias teriam sido enterradas para eternizar tal maldição – a representar outro linchamento moral, post-mortem, do sacerdote franciscano – foi difundida numa cartilha que circulou pelo então ainda próspero centro comercial na primeira metade do século 20, como uma infame tentativa de justificar o anacronismo e a miopia das elites diante da falta de estratégias para a superação da crise iminente do maior pólo comercial do interior da América do Sul.

Quase sessenta anos depois, transcorrido um período de indisfarçável (des)compasso de espera entre os discursos ufano-desenvolvimentistas reciclados de paladinos efêmeros e as teses realistas de estudiosos comprometidos tão-somente com a honestidade científica aliados às demandas corajosas de movimentos sócio-ambientais sinceros, o que resta de cosmopolitismo e altivez do outrora porto-livre do coração da América do Sul converteu-se em palco de uma aparvalhada batalha em que autoproclamados arautos, de diatribes conspiratórias e de maniqueísmo incorrigível, insistem em arranjar bodes expiatórios para tamanha iniqüidade histórica – desta vez parodiando o discurso dos caçadores de comunistas do pós-guerra de 1945 com aviltantes bravatas de que dirigentes e voluntários do terceiro setor (organizações não governamentais) estariam conspirando contra o desenvolvimento do coração do Pantanal e atentando contra a soberania nacional. Coincidentemente, nesse meio-tempo, ganhou destaque a lenda das sandálias do Frei Mariano, quer como peça de teatro, quer como samba-enredo de entidade carnavalesca, mas num contexto em que se evidencia o leviano propósito de deslegitimar qualquer opinião diferente, divergente ou antagônica à proposta requentada dos tempos getulistas de pólo siderúrgico, ora com o eufemismo de Zona de Processamento de Exportações, ora com o rótulo de Pólo Gás-químico ou Minero-siderúrgico.

Como membro de uma ONG sócio-ambiental de perfil comunitário fundada e consolidada no olho do furacão, sob a mira do ufanismo, confesso ter ficado preocupado com a integridade física dos generosos e corajosos estudiosos que foram alvo de uma ensandecida campanha difamatória, precisamente no ápice dessa atabalhoada verborragia intolerante e desprezível dos que, na falta de argumentos razoáveis e racionais, partiram para a prática fascista da negação do contraditório, de fazer inveja aos mais recalcitrantes títeres da virulência obscurantista que envergonha a espécie humana. Graças à postura irretocável dos representantes locais do Ministério Público Estadual, da Procuradoria da República, da Polícia Federal e do Poder Judiciário, de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de jornalistas éticos dignos do maior reconhecimento público (cujos nomes são preservados para não torná-los alvo de retaliações), dentro e fora do estado de Mato Grosso do Sul, foi possível assegurar um mínimo de respeito pela dignidade humana a esses cidadãos da maior autoridade moral e técnico-científica. E, justiça seja feita, meu reconhecimento sincero a um diminuto número de empresários locais de grande espírito público, alguns dos quais ainda sem ter qualquer mandato representativo de entidade classista para resguardar-se na potestade inerente a uma função pública.

Por certo, a experiência e a maturidade cidadã de muitos desses pesquisadores foi fundamental para transpor as provocações próprias dos tempos odiosos dos regimes de arbítrio que assolaram países latino-americanos, de triste memória, quando uma caricata mobilização ganhou proporções inusitadas no emblemático Dia Internacional do Trabalhador, chegando à linha divisória internacional entre o Brasil e a Bolívia, em Corumbá. É, no mínimo, bizarro o fato de representantes de órgãos oficiosos não dissimularem – e ostentarem até – o apoio institucional a tal façanha, num gesto nada amigável ante um governo constitucional e democraticamente eleito da nação irmã, por conta de uma decisão governamental que nada tem a ver com as demandas locais por desenvolvimento. Indiscutivelmente, o oportunismo de certos agentes políticos dos dois lados da mesma fronteira serviu de combustível para ações incendiárias e admoestações extemporâneas que confirmam a mesma origem antidemocrática, partilhada, aliás, num mesmo período histórico, ainda perceptível.

Órfãos ou viúvos de correntes cinicamente nazi-fascistas que sobreviveram ao segundo quartel do século 20, os paladinos de causas inconfessáveis (muitas vezes vinculados ao crime organizado) travestidos de porta-vozes da livre-iniciativa e do mercado livre nos nada generosos tempos de globalização adotaram um discurso postiço, nada convincente, de arautos da justiça social no exuberante, mas excludente, coração do Pantanal. Embora todos tivessem o pleno direito de lutar por interesses legítimos, diga-se de passagem, a arrogância e a leviandade com que tentaram impor seus pontos de vista – usando truculência explícita e poder econômico sobre os que racionalmente procuram alternativas exeqüíveis para um sólido e consistente desenvolvimento sustentável no contexto do que é preconizado pela Carta da Terra e pela Agenda 21 – empobrecem e invalidam o necessário desenvolvimento do processo civilizatório da humanidade assentada neste singular território de riquezas incomensuráveis, desde sempre, dos dois lados desta fronteira de povos irmãos.

A despeito das vis agressões e das campanhas difamatórias, o terceiro setor tem dado eloqüentes provas de generosidade e compromisso com a vida em todos os quadrantes do planeta, seja na defesa dos recursos naturais, na afirmação do protagonismo cidadão, na inclusão social ou mesmo na preservação da identidade cultural ou do Estado de direito. Senão, vejamos: mesmo com todas as tentativas levianas de deslegitimar suas ações pioneiras, não foram senão as ONGs as que corajosamente não só assumiram para valer como implementaram as iniciativas de interlocução que ganharam a denominação de Plataforma de Diálogo – fórum pelo qual membros do terceiro setor vêm pactuando de forma inovadora e sensata com o segundo setor no sincero intuito de fazer avançar os mecanismos institucionais de proteção ambiental causado pelo delicado processo de licenciamento de empreendimentos industriais em Corumbá. Por outro lado, são as ONGs as que decididamente têm chegado onde o Estado ainda não assumiu suas prerrogativas, preservando contingentes humanos do assédio de quadrilhas organizadas que se valem da ausência institucional para ampliar seus tentáculos e estender suas teias delinqüentes sobre populações inteiras, que viram reféns dos criminosos e dos servidores públicos corruptos, de todos os poderes e escalões, cooptados por eles.

No dizer do inigualável sociólogo brasileiro Herbert de Souza, o saudoso Betinho, fundador do pioneiro Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (Ibase), “não basta dar um prato de feijão; é preciso ser cidadão para conferir cidadania aos 32 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza”. Pois, então, nessa linha de raciocínio, podemos dizer que não basta bradar pela defesa do desenvolvimento da região, mas é fundamental que esse desenvolvimento seja construído sob o império da lei, à luz da ética e da solidariedade universal e com a participação democrática de todos os diferentes atores sociais, para que, ao lado da geração de emprego, a qualidade de vida represente, de fato, o progresso que a humanidade almeja, sob pena de que, em duas ou três décadas, sobre, mais uma vez para a população local, a herança maldita de iniciativas feitas para o enriquecimento de alguns que sequer ficarão para sentir as conseqüências dos estragos deixados (as voçorocas expostas, os rios contaminados, a vegetação nativa degradada e a fauna dizimada) para as próximas gerações de pantaneirinhos que absolutamente não têm culpa de que seus pais tenham caído mais uma vez na cantilena esperta das sereias de águas turvas e solos contaminados...
Ahmad Schabib Hany(*)


(*) É fundador e membro da coordenação-executiva da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental sediada no coração do Pantanal (Corumbá, MS), além de membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).

Nenhum comentário: