quarta-feira, 24 de maio de 2023

Dez anos sem Augusto Alexandrino, o eterno Malah

Dez anos sem Augusto Alexandrino, o eterno Malah

Cartunista alado, artista gráfico singular, poeta dos traços irreverentes, empresário generoso, professor competente, amigo leal, cidadão incansável. Uma década sem sua sábia presença.

Augusto Alexandrino dos Santos, o querido e saudoso Malah, eternizou-se discretamente no quarto da casa de seu Filho, em Campo Grande, a poucas centenas de metros de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Não acordara, como de hábito, cedo, seu Filho decidiu arrombar a porta, quando o encontrou sem Vida. Parece que algo lhe dizia para não se afastar de seu torrão-natal. Embora relutante, precisou mudar-se para a capital, onde iniciaria uma série de tratamentos de saúde, já bastante fragilizada.

Era 25 de maio de 2013, fatídico ano que iniciava uma sucessão de perdas de Amigos e retrocessos políticos, Além do genial cartunista, artista gráfico e professor competente que o Malah foi, dois meses antes o igualmente querido e saudoso Padre Ernesto Saksida se eternizara. Se isso já não fosse trágico, um desencadear de perdas vieram a reboque: o pacto cidadão que permitiu que pela primeira vez a ascensão do que deveria ter sido uma sucessão de gestões populares em Corumbá e Ladário (iniciada com Ruiter Cunha de Oliveira em Corumbá e José Antônio Assad e Faria em Ladário) seria minado, sobretudo, com a ardilosa ‘mobilização’ do ‘cançei’ (com ‘c’ cedilhado, por favor), ‘vem pra rua’, ‘mbl’ (minúsculos e abjetos) e tantas outras manifestações ‘patrióticas’, mais tarde desmascaradas, que incluíram as famílias proprietárias dos conglomerados midiáticos embolorados (cuja primeira vítima de si mesma foi a famiglia Civita, que deu um calote aos seus milhares de empregados antes de abandonar a emblemática Editora Abril).

Porque recordar Augusto Alexandrino Malah é reviver o mais universal de todo(a)s o(a)s Amigo(a)s que a Vida generosamente nos presenteou. Desde 1974, para os meus um ano trágico pela perda de meu saudoso Irmão Mohamed (o eterno ‘Chíchi’, cuja pronúncia é similar à do técnico de futebol ‘Tite’), Malah foi mais que o competente e querido Professor (maiúscula) de Desenho: ao lado do igualmente saudoso e querido Professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, foi um entusiasta (e irreverente) orientador de Cidadania, tendo-se unido irmãmente ao projeto de jornal estudantil empreendido em 1975.

Malah foi um dos expoentes da Geração de Ouro, ao lado de Edson Moraes, Juvenal Ávila de Oliveira, Gino Rondon, Jonas de Lima e Adilson Lobo, entre outros não menos geniais, protagonistas no rádio e jornais no tempo do Consórcio Corumbaense de Comunicação (CCC). Todos eles são unânimes em reconhecer a generosidade, o talento e a ousadia de Malah. Em pleno período de censura e repressão, Malah ouvia as rádios Voz da América, BBC de Londres, França Internacional, Exterior da Espanha, Paz e Progresso (Moscou), Rádio Pequim, Rádio Moscou e Rádio Havana para aprimorar seu inglês e compreender melhor a ciência da Comunicação. Mas qual não foi a sua surpresa ao receber intimação para comparecer à Delegacia de Polícia Federal por se corresponder com pessoas de ‘ideias exóticas’. É que ele recebia cartas de ouvintes e produtores de todas essas emissoras (cartas, obviamente em inglês, a trocar informações sobre música, cultura e artes brasileiras), o que acionou o sinal de alerta dos órgãos de controle ideológico da época. Depois ficou sabendo que as cartas eram ‘censuradas’ por órgãos de informações e repressão, como SNI, CIE, CENIMAR, CISA, DOI-CODI, DOPS-DEOPS etc.

Daniel Lopes, diretor geral do Consórcio Corumbaense de Comunicação (e mais tarde, com o fim do CCC, da Folha da Tarde), em seu projeto de modernização jornalística e desenvolvimento gráfico, havia introduzido uma linotipo e uma monotipo, e a clicheria  também já havia sido adquirida (estava em fase de instalação quando os donos de outros veículos consorciados, por pura ciumeira, começaram a sair do consórcio), e o Malah, que fazia locução na Rádio Difusora Mato-grossense, já havia sido contatado para ser o ilustrador e cartunista dos jornais do grupo a ser constituído pelo operador do projeto bancado pelo todo-poderoso senador e dirigente arenista, Felinto Müller. Cuiabano que ganhou poder à sombra de Getúlio Vargas (isto é, ditadura do Estado Novo), tão logo o regime de 1964 exerceu controle total na política brasileira, tornou-se homem-forte, presidindo a ARENA, o Senado e o Congresso Nacional. Mas sua trágica morte, ocorrida no acidente aéreo em Paris no dia de seu aniversário de 72 anos, com o incêndio e explosão do avião da Varig no Aeroporto de Orly, acabou por interromper todos os seus projetos e facilitar a divisão de Mato Grosso, pois, como cuiabano, o ex-membro da Coluna Prestes que virou integralista (na verdade, fascista declarado), se estivesse vivo, teria impedido qualquer iniciativa nesse sentido.

Malah, muito discreto e bastante politizado, sabia que Daniel Lopes não era apenas um dirigente de jornal de interior, e com muita prudência aceitou a proposta, que por ironia do destino não se concretizou. Se aparentemente o consórcio corumbaense fora criado para derrotar o então líder messiânico Cecílio de Jesus Gaeta, da oposição (primeiro, trabalhista, depois emedebista, mas dos rebeldes, sempre ligado a Pedro Pedrossian), o planejamento, execução e financiamento pelo homem-forte do regime tinham propósito maior: atender às pretensões pessoais de ser mais que simples governador de Mato Grosso, anteriormente derrotado por seu contraparente Fernando Corrêa da Costa, e, sobretudo, impedir a luta de seus desafetos do sul de Mato Grosso, de dividir o estado.

Parece ter sido ontem a eternização dessa pérola da Geração de Ouro, discretamente ao lado de sua maior expressão, o querido Jornalista Edson Moraes, que precisou mudar-se às pressas para a futura ‘nova cap’, Campo Grande, por conta da revelação, por seu O Tempo (diário que ele e o saudoso gráfico Manoel de Oliveira fundaram depois do fim da Folha da Tarde), do cemitério clandestino perto da estação de Urucum, o que lhe valeu a ira dos cães de guarda da ditadura. Já Malah, dedicado ao magistério, preferiu se ater às artes gráficas, que lhe permitia extravasar seu talento. Porque, além de sua Família, de ex-integrantes da Coluna Prestes, seu projeto de Vida estava fincado em Corumbá. Foi só se mudar para a capital, ficou taciturno e em menos de seis meses se eternizou.

Recorrentemente o Malah tem se manifestado mediante interlocutores de várias idades, gerações e localidades. Ora por meio dos queridos Amigos Edson Moraes, Juvenal Ávila, Luiz Taques, Nelson Urt, Adolfo Rondon, Alle Yunes, Douglas Assad e Lívia Gaertner, ou dos textos imortalizados dos saudosos e queridos Jornalistas Farid Yunes e Márcio Nunes Pereira. Todos os dois, aliás, muito gratos ao genial Malah: durante anos, seus cartuns ilustraram o Correio de Corumbá depois que Farid assumiu a direção do jornal, de forma combativa e vigilante; também grato, o Márcio nunca se esquecera de que, num gesto próprio da generosidade do Malah, muitos equipamentos gráficos do Diário de Corumbá leiloados judicialmente (adquiridos por ele, apenas para ajudar o Amigo) permaneceram na sede do jornal para manter as edições do combativo diário.

É provável que o Malah esteja, ao lado de Márcio e de Farid, celebrando este momento, sobretudo ao ver que os algozes das liberdades democráticas estão, dia após dia, vendo o sol a nascer quadrado e seus projetos golpistas indo pelo ralo. Como teria sido genial o registro deste momento da História pelos traços irreverentes do eterno Malah.

Ahmad Schabib Hany

sexta-feira, 19 de maio de 2023

CASO ARECELLY, 50 ANOS DE IMPUNIDADE

Caso Aracelly, 50 anos de impunidade

Aracelly Cabrera Sánchez Crespo, menina de apenas 8 anos, filha de imigrante boliviana residente em Vitória (ES), foi vítima de rapto seguido de estupro e morte com requintes de crueldade. Nos anos de chumbo (1973), os autores, ‘filhinhos de papai’ (um empresário capixaba e seu sobrinho e um serviçal do regime), não pagaram pelo crime, mas o Jornalista José Louzeiro, que denunciou o crime e os criminosos em “Aracelly, meu Amor”, ele, sim, foi preso por driblar a censura e escrever um romance-reportagem.

Aos 8 anos (faria 9 em julho de 1973), a inocente Aracelly Cabrera Sánchez Crespo, filha de imigrante boliviana nascida em São Paulo em 1964, foi vítima da pior violência que uma menina poderia ter: abordada ao sair da escola por um grupo de ‘cidadãos de bem’ (ou ‘de bens’?), foi sequestrada, estuprada, dilacerada a dentadas, o corpo desfigurado por ácido corrosivo e jogado aos fundos de um hospital infantil de Vitória, capital do Espírito Santo.

Se, por si só, o crime é brutal pelos requintes de crueldade com que foi cometido, o pior é que as autoridades responsáveis pela elucidação do crime e condenação dos autores -- três ‘filhinhos de papai’, conhecidos por violentar adolescentes: um grande empresário capixaba e seu sobrinho e um serviçal do regime de 1964, Paulo Helal, Dante Michellini e Dante Barros Michellini --, fizeram questão de prevaricar a despeito da pressão popular exigindo justiça.

Condenados na primeira instância, esses criminosos foram absolvidos impunemente na segunda instância, e apenas quem foi preso arbitrariamente foi o Jornalista José Louzeiro, por ter conseguido driblar a censura e ter publicado o emblemático romance-reportagem “Aracelly, meu Amor”, em 1976. Décadas depois, o livro vira filme bastante comentado. Mas nunca foi feita justiça: um verdadeiro incentivo à misoginia e ao hoje bastante praticado feminicídio.

O episódio, bastante emblemático, repercutiu em todo o mundo, ainda que a mãe da vítima tenha, além da perda da filha, sofrido linchamento moral por todos os lados. Ela, segundo os investigadores (policiais, peritos e repórteres de renome) que elucidaram o caso quase 50 anos atrás, trabalhava como narcotraficante, tendo usado a filhinha em algumas oportunidades, por isso era conhecida pelos criminosos.

Dez anos depois, houve uma tentativa de rever esse crime bárbaro, mas idas e vindas do processo acabaram por frustrar a reabertura do processo, afinal, os membros da elite capixaba tinham estreitas relações com figuras influentes, como o então vice-líder da ARENA (partido de sustentação do regime de 1964), senador Eurico Rezende, do Espírito Santo, cujo filho também esteve às voltas com outro crime hediondo, Caso Ana Lídia, ao lado do filho do então ministro da Justiça do mais terrível dos ditadores desse ciclo, Alfredo Buzaid, que, como fascista de carteirinha (na juventude membro ativo da Ação Integralista Brasileira, fiel seguidor de Plínio Salgado), ao final do período ditatorial de Emílio Médici, foi presenteado com a nomeação como ministro do Supremo Tribunal.

Tanto no Caso Aracelly como no Caso Ana Lídia, ambos envolvendo protegidos do regime militar em seu período mais sombrio, no ano derradeiro do período de Médici, há evidências da utilização da máquina administrativa para blindar seus aliados e filhos da cobertura da imprensa, como prova este ‘recado’ dado à imprensa em 1973: “De ordem superior, fica terminante proibida a divulgação através dos meios de comunicação social escrito, falado, televisado, comentários, transcrição, referências e outras matérias sobre o caso Ana Lídia e Rosana. -- Polícia Federal.”

Não é casual a compulsão do inominável e seus abjetos colaboradores mais próximos pelas repulsivas tentativas de amordaçar o jornalismo investigativo e as instituições da República com tradição de independência, por reiteradas vezes: idolatras de Médici, Ednardo D’Ávila Mello, Hugo Abreu e Sylvio Frota (aquele genereco que tentou dar um golpe sobre Ernesto Geisel para conseguir que um dos seus fosse o próximo da lista na sucessão, sem eleições, que acabou indicando o atabalhoado e impulsivo João Baptista de Oliveira Figueiredo, o derradeiro general-presidente do ciclo militar, e para o qual Augusto Heleno trabalhou), todos eles têm ranço das liberdades democráticas e gostam da impunidade, tanto que era recorrente o mantra “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

Em 2000, o Congresso Nacional homenageou a memória de Aracelly e, num gesto de luta contra a impunidade dos criminosos, instituiu o Dia Nacional de Combate à Exploração e ao Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes. Antes, Mato Grosso do Sul, pioneiro no enfrentamento a esse crime, havia instituído o dia 6 de outubro o Dia Estadual, em que a sociedade civil, inclusive em Corumbá e Ladário, se mobilizava desde 1997. Em nível local, foi emblemática a fala da Professora Luciene da Costa Cunha, coordenadora do CAIJ-CRIPAM que, quando adolescente, integrou a comissão infanto-juvenil que entregou ao então presidente José Sarney a minuta do que viria a ser mais tarde o Estatuto da Criança e do Adolescente, logo depois da conclusão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.

A Professora Luciene Cunha, pioneira na luta contra a exploração e o abuso de crianças e adolescentes, lembrou a impunidade que estimula o acometimento de crimes dessa natureza, tendo lembrado do Caso Aracelly Crespo e o Caso Sophia de Jesus Ocampo, em Campo Grande, ocorrido em 2022, que se encontra nas primeiras audiências judiciais. É, também, oportuno recordar que o desaparecimento da menina Lívia Gonçalves Alves, de 7 anos, em junho de 2010, ainda não foi elucidado, embora haja vestígios de que tenha sido vítima de uma rede de pedofilia. Na época, o incansável combatente Anísio Guilherme da Fonseca, então presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, articulou uma força-tarefa de entidades não governamentais em nível estadual, mas seus esforços terminaram na questionável destituição de seu cargo, além da exclusão do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD) dos processos autônomos e independentes de eleição dos membros não governamentais de todos os lócus de controle social de nossa região.

A impunidade, como disse a Professora Luciene Cunha e durante anos a Assistente Social Estela Márcia Rondina Scandola ensinou com pioneirismo (lá nos idos de 1990, ao lado do querido e saudoso Padre Pasquale Forin), é o principal fator da recorrência e nos últimos crescimento vergonhoso dessa mazela social que rouba a inocência de nossa infância e atormenta famílias e, em especial, mulheres. Em memória de todas as vítimas desse crime impune, é necessário o engajamento de toda a cidadania, a exemplo da luta incansável da Professora Luciene e dos anônimos voluntários que insistem na construção da rede de proteção jurídico-social da população infanto-juvenil. A sociedade que não protege a inocência e a integridade de sua infância e juventude está condenada à barbárie, ambiente ideal para o nazifascismo e o crime organizado que tiveram um crescimento exponencial nestes tempos sombrios pós-golpe de 2016.

Ahmad Schabib Hany

sexta-feira, 12 de maio de 2023

SANTA RITA DE SAMPA

Santa Rita de Sampa

Eis que a transgressora iluminada Rita Lee se eterniza no mesmo dia em que, 78 anos atrás, a Alemanha nazista (e toda a barbárie que ela representa) se rendia ao Exército Vermelho. Ousada, irreverente e, sobretudo, genial, não precisou provar que “toda mulher é meio Leila Diniz” e que a “ovelha negra da família” soube ser Companheira por mais de 40 anos, grande Mãe e Avó presente.

‘Santa Rita de Sampa’, nome de uma de suas composições, foi mais uma das ousadias da Diva da Irreverência que por décadas nos provocou de todas as maneiras e formas para nos transformar, nos libertar das amarras. Pois Rita Lee Jones dedicou seu talento, sua própria existência entre nós, para fertilizar nossa árida rotina e, sobretudo, destruir a hipocrisia vigente em nossa sociedade, de aparências e mitos, muitos mitos desprezíveis.

Filha de um imigrante estadunidense protestante e uma imigrante italiana católica, Rita Lee representa o cosmopolitismo quase totalmente perdido da Pauliceia Desvairada do movimento modernista gestado 25 anos antes de seu nascimento, no pós-guerra de 1945. O misto de irreverência e ousadia que com muita luz, genialidade e graça marcou a hoje eterna combatente da hipocrisia e do falso moralismo é abre-alas transformador do novo tempo que ainda tarda, mas haverá de chegar, para desespero dos conservadores e seus aliados de ocasião da extrema-direita.

O que seria do Brasil, das camadas populares e, sobretudo, de todas as mulheres deste país-continente se as à frente de seu tempo, como Rita Lee, Gal Costa, Leila Diniz, Elis Regina, Nara Leão, Beth Carvalho, Clara Nunes, Norma Bengell, Martha Alencar e Irede Cardoso, entre tantas não menos importantes, não tivessem ousado inteligentemente acabar com a hipocrisia que até então reinava, a ferro e fogo, numa nação censurada, oprimida e silenciada?

Para filhos de imigrantes, essa geração de mulheres brasileiras e seus colegas homens, igualmente geniais, se consistiram em abençoados porta-vozes da cultura e da variedade cultural brasileira. Além de ter ensinado literalmente português mediante composições bem elaboradas que nada devem aos autores dos embolorados manuais de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC), as duas disciplinas enxertadas na grade curricular durante o obscurantismo de 1964 a 1985.

Na década de 1960, quando Rita Lee surgiu para o público brasileiro, uma das revistas que acompanhavam a carreira da jovem revelação era a Garotas, da Rio Gráfica Editora (RGE), do Rio de Janeiro, depois adquirida pelo grupo da ‘Vênus Platinada’, hoje Editora Globo, com sede em São Paulo. Minhas Irmãs, adolescentes, gostavam dessa revista por causa de sua cobertura do mundo musical, cujo destaque era a Diva da Irreverência. Já naquele tempo a censura se encarregava de atravessar o caminho dos artistas.

Ah, sim, a censura. Não por acaso, mesmo sem qualquer engajamento político, Rita Lee foi tão censurada quanto Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Velloso, Ivan Lins, Vitor Martins, Milton Nascimento, Fernando Brant, Martinho da Vila e Geraldo Vandré, por exemplo, os mais visados pelos cães (com todo respeito pelos caninos) da ditadura. Rita era censurada pela ousadia de se contrapor com genialidade à etiqueta e toda a falsidade imposta pela hipocrisia reinante então, ao extremo de ter sido presa por flagrante forjado com maconha.

A explicação é simples: com sua genial irreverência, Rita ‘atentava’ contra ‘a moral e os bons costumes’, pretexto para que aqueles falsos moralistas de meia pataca ficassem a cuidar das calcinhas das moçoilas em plena década de 1960, quando as mulheres, com a revolução feminista, queimaram os sutiãs, vestiram minissaia, decidiram ‘perder’ a sua virgindade e passaram a tomar a pílula anticoncepcional e defender a prática do aborto legal, até para poupar a vida de jovens vítimas da máfia das clínicas clandestinas de aborto.

Diferentemente de Gal, Leila, Elis, Nara, Beth, Clara, Norma, Martha e Irede, a ousadia de Rita, em 1977, confesso, me causou um misto de decepção e indignação. Foi quando ela compôs com Paulo Coelho (o escritor) e interpretou, com sua irreverência peculiar, “Arrombou a festa” para dar umas alfinetadas em muitos compositores e intérpretes da Música Popular Brasileira (MPB), então em alta. Foi um sucesso junto ao público, mas os amantes da MPB se sentiram traídos, como advertiu o Amigo Juvenal Ávila de Oliveira, à época diretor musical da Rádio Difusora Mato-grossense, e que calou fundo na alma.

Para Rita Lee, as convenções e pactos coletivos, inclusive nas hostes da resistência democrática, não eram intocáveis. O que para os engajados representou um golpe baixo, uma heresia. Mas isso nem abalou a Diva da Irreverência, e não demorou muito para dar um novo presente ao público, como “Miss Brasil 2000”, “Jardins da Babilônia”, “Mania de Você”, “Doce Vampiro”, “Lança Perfume”, “Baila Comigo” e “Cor de Rosa Choque”.

Era difícil não se reconciliar com a genial cantora: nem Caetano, Gil, Gal, Betânia e os demais integrantes da Tropicália, depois do impacto, ficaram ‘de mal’. Ao contrário, foi Gil um dos mais assíduos membros da MPB que a apoiaram a se distanciar de Os Mutantes e da Tutti Frutti e poder partir para sua carreira solo, depois seguida com o guitarrista e Companheiro de Vida, Roberto Carvalho. Aliás, uma relação que durou toda a Vida, bem diferente da rebeldia proclamada pela grande intérprete da transgressão.

Tanto na juventude como na maturidade, Rita Lee fazia questão de se manter à margem da política. Embarcou, ao lado de Hebe Camargo, nas críticas à gestão progressista que tanto encantaram seus colegas contemporâneos. Mas não se distanciou de Amigos de verdade, como Eduardo Matarazzo Suplicy, ex-Companheiro de sua parceira de programa ‘TV Mulher’, no início da década de 1980, ao lado de Marília Gabriela. ‘Cor de Rosa Choque’ não só era trilha, mas hino desse programa matinal diário que rompeu com muitos mitos desprezíveis, ainda nos tempos da (mal)ditadura.

A eternização de Rita Lee, como de todos os seres iluminados, é, sim, lamentada. Mas a sua existência repleta de luz e irradiações transformadoras é tão maior que passarão anos, décadas e, por certo, séculos a interagir com sua obra magistral, provocadora, ousada, irreverente e debochada. Sorte nossa, que pudemos ser seus contemporâneos privilegiados.

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 2 de maio de 2023

PRIMEIRO DE MAIO DE ORGANIZAÇÃO E RESISTÊNCIA

Primeiro de Maio: Dia de luta e de reflexão, para resistir ao processo de precarização do trabalho e assegurar conquistas históricas que garantiram os direitos trabalhistas atuais (imagens do Dia do Trabalhador Brasil-Bolívia de 2018, gentilmente cedidas pelo SINPAF Pantanal, por meio de Zilmar Ribeiro).

 

Primeiro de Maio de organização e resistência

Em todo o mundo, o Primeiro de Maio é de luta e reflexão para resistir ao processo de precarização do trabalho e assegurar conquistas históricas que garantiram os atuais direitos trabalhistas, como registro em carteira, salário mínimo, descanso semanal, hora extra, jornada de oito horas, férias, décimo terceiro salário, proteção à saúde do trabalhador, licença-maternidade e tempo de serviço para uma aposentadoria digna.

O Primeiro de Maio não é apenas ‘mais um feriado’. Trata-se de momento de reflexão e luta das diferentes categorias laborais da cidade e do campo para resistir ao acintoso processo de precarização do trabalho e assegurar conquistas históricas que garantiram os atuais direitos trabalhistas, entre os quais registro em carteira, salário mínimo, descanso semanal, hora extra, jornada de oito horas, férias remuneradas de 30 dias, indenização por demissão imotivada, décimo terceiro salário, medidas de proteção à saúde do trabalhador e da trabalhadora, licença-maternidade e tempo de serviço para uma aposentadoria com dignidade e qualidade de vida.

O(a) leitor(a) atento(a) sabe que esses direitos existem há menos de cem anos. São fruto de conquistas ao longo de mais de 100 anos pelo mundo afora. E assim como a Lei da Empregada Doméstica, muitos patrões fizeram de tudo para não permitir a efetivação desses direitos. Aliás, nada de novo, pois em 1857, em Nova York, tecelãs foram queimadas vivas por lutar pela redução da jornada de trabalho e a disponibilização de creches para cuidar de seus filhos enquanto trabalhavam. E em 1886, em Chicago, operários da indústria foram espancados, presos e executados por, igualmente, lutar pelo direito de receber um aumento em seus salários. Razão pela qual, nos Estados Unidos, não se celebra o Dia Internacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras, de modo a não reconhecer estas injustiças praticadas contra a legítima atuação sindical.

Há exatos 80 anos, com a promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), por Getúlio Vargas, em plena ditadura do Estado Novo, os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil começavam a poder desfrutar dos direitos trabalhistas. Getúlio, então, ditador e cercado de homens como Felinto Müller com sua temida polícia política, não fez isso por acaso ou ato de benevolência: o movimento sindical é responsável pela conquista desses direitos, então reprimido pela mesma polícia que perseguiu, prendeu e entregou Olga Benario, grávida de sete meses, à Gestapo de Adolf Hitler, que, depois de dar à luz a Anita Leocádia Benario Prestes (Filha de Luiz Carlos Prestes), foi morta na câmara de gás junto com 199 outras mulheres, consideradas inimigas da Alemanha nazista.

Se no século XX a classe trabalhadora conquistou seus direitos fundamentais, é depois do chamado Consenso de Washington (entre Ronald Reagan e Margareth Thatcher), quando o projeto de ‘estado mínimo’ é replicado em todo o mundo, que começam as perdas de direitos trabalhistas em escala planetária. E o fim da guerra fria foi um fator a mais para a destruição de postos de trabalho e a precarização do trabalho, tanto no mercado como no serviço público, com a redução de empregos diretos e contratação de empresas que passaram a terceirizar o trabalho de diversas categorias, sobretudo nas áreas de prestação de serviços, como limpeza, segurança e logística.

Essa conversa fiada de ‘custo Brasil’ não passa de balela, ‘conto do vigário’: basta ver que entre 2016 e 2022 a concentração da renda teve um crescimento exponencial. Isto é, durante os desgovernos do ‘brimo’ golpista e do inominável, 1% da população, de bilionários, enriqueceu seu patrimônio (só o setor financeiro teve um insólito lucro de 96,2 bilhões de reais em 2022, um superávit de 6,2% em relação a 2021) enquanto, vergonhosamente, mais de 50% do(a)s brasileiro(a)s tiveram uma queda acentuada de renda, ao extremo de 33,6% dos habitantes terem entrado para a linha da pobreza. Esse cenário de desemprego, miséria extrema e fome revelou o escárnio das elites golpistas, mancomunadas com o estagiário de Pinochet Paulo Guedes, o faz-tudo do canastrão covarde que não assume o que faz e o que pretende.

Ante a proliferação de atividades não reconhecidas pela legislação trabalhista, como a dos trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos e de muitas atividades terceirizadas, é urgente que as centrais sindicais e o Ministério do Trabalho comecem a pactuar agenda para assegurar um mínimo de seguridade a essas novas categorias laborais, que hoje estão à margem das leis que protegem o trabalhador e a trabalhadora. Não são poucas as novas atividades, que, em nome da globalização e de uma suposta ‘modernidade’, fazem do trabalhador e da trabalhadora reféns de uma relação similar à escravidão, tal como vem sendo denunciado pelo Ministério Público do Trabalho em todo o Brasil.

Mais triste é ver expressivas parcelas das novas gerações verdadeiramente alienadas, tal qual rebanho a caminho do abate, a ignorar o valor do interesse coletivo, da organização sindical, da luta por direitos laborais, sociais, coletivos, difusos e até individuais. Dias atrás, testemunhei as lamentações de veterano dirigente sindical ao não ter conseguido sensibilizar a base laboral que representa para a celebração do Primeiro de Maio em nossa região. Sua meta era a realização de um ato público como o de 2018 na fronteira Brasil-Bolívia, quando centrais sindicais como a Central Operária Boliviana (COB) e várias organizações sindicais e comunitárias da Província Germán Busch (Bolívia) se reuniram com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e várias entidades sindicais e comunitárias regionais para desenvolver uma agenda de compromissos bilaterais.

Esse emblemático ato conjunto das centrais sindicais boliviana e brasileira, por meio de uma articulação histórica do querido e saudoso Companheiro Andrés Corrales Menacho, que fez a interlocução com os representantes regionais da COB, Federação de Mulheres Bartolina Sisa, Confederação de Docentes Urbanos e Rurais da Bolívia, Associação dos Povos Originários do Oriente Boliviano e movimentos populares congêneres, foi realizado o primeiro ato internacional pelo Dia do Trabalhador, em Arroyo Concepción, quando a CUT e entidades afiliadas (Sindicato dos Trabalhadores em Educação, SIMTED; Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Pesquisa, SINPAF Pantanal; Sindicato dos Trabalhadores em Instituições Federais, SINASEF; Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Energia Elétrica, SINERGIA, e Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul, FETEMS, além do Centro Boliviano-Brasileiro 30 de Marzo e o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário, FORUMCORLAD, agora Observatório da Cidadania Dom José Alves da Costa) marcaram uma importante fase das relações entre as organizações de trabalhadores latino-americanas, ampliadas por meio da articulação, na Argentina, pelo Companheiro Aníbal Carlos Monzón, que durante o período da pandemia teve a iniciativa de realizar encontro semanal por meio de videochamadas com dirigentes de organizações populares de toda a América Latina (Brasil, Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Haiti).

Neste ano, pelo menos o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Corumbá e Ladário e a Paróquia São José Operário, em nossa região, obtiveram sucesso neste Primeiro de Maio. A derrota do fascismo em 2022 representa um alento a mais para que as novas gerações comecem a atuar e assegurar o que as gerações anteriores lhes entregaram em bandeja de ouro: é hora de acordar para evitar que aventureiros como o inominável e os oportunistas que o seguiram não só desprezam as camadas populares, isto é, as classes trabalhadoras, como querem a destruição do Estado de Direito. Por quê, então, o enriquecimento bilionário de 1% da população em detrimento de mais de 50% dos brasileiros e brasileiras, abandonados à miséria e à fome depois de 2016? Por que a Bolsa de Valores não reagiu à intentona fascista de 8 de janeiro? E antes que um fantoche ‘intelectual’ mantido pelas elites peçonhentas venha a regurgitar o discurso golpista, por quê, em sã consciência, a taxa de juros é mantida a 13,75% desde agosto de 2022? Patriotas de uma figa, pois, enquanto o Brasil afunda na miséria, os donos dos bancos lucram 96,2 bilhões de reais ao ano, fazendo do país um cassino para a jogatina financeira dos endinheirados do planeta.

Ahmad Schabib Hany