quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

ATÉ SEMPRE, DOM JOSÉ!

Até sempre, Dom José!

Ontem, dia 4 de dezembro, pela voz embargada do Padre Pascoal Forin, pároco de São João Bosco (Corumbá), fomos tristemente surpreendidos pela partida de nosso querido Amigo e Irmão, o agora saudoso Dom José Alves da Costa, Bispo Emérito da Diocese de Corumbá e imortal Presidente de Honra do Pacto Pela Cidadania e do Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, que ajudou fundar e conferiu dignidade e autonomia, em tempos em que o protagonismo cidadão era incompreendido e combatido – muito mais que hoje.

Os derradeiros anos de existência de Dom José foram de intensa resistência por sua saúde, bastante fragilizada, inicialmente pelo diabetes e mais tarde pelo mal de Alzheimer, que o privou de sua memória privilegiada. Nesta terça, depois de tomar o café da manhã, sem ter manifestado dor ou desespero, partiu em silêncio, como todo anjo sói mudar-se para outra dimensão.

Foi-se, aliás, do mesmo jeito com que viveu e ensinou generosamente muitas lições de cidadania até aos mais arrogantes senhores da região. Com elegância e caridade, não se submetia aos gritos e arroubos de prepotência de coronéis caquéticos e gendarmes ensandecidos à espreita de humildes camelôs de além-fronteira, cujas mercadorias eram saqueadas e eles postos a correr, como se estar na economia informal fosse uma opção, e não um desesperado intento de buscar a sobrevivência no limiar da legalidade.

Ficou célebre a sua atitude contundente ao impedir que uma guarnição da Polícia Militar apreendesse mercadorias e detivesse senhoras idosas que vendiam na calçada da antiga Mitra Diocesana, defronte da Praça da República e próximo da Polícia Federal. Também, não passou despercebida sua igualmente firme postura diante de diversas viaturas policiais que pretendiam deter membros do Movimento dos Sem-Teto, em fins de 1998, quando mobilizou voluntários da Ação da Cidadania para cadastrar as famílias que estavam se assentando no loteamento Pantanal, na parte alta da cidade, a fim de poderem receber cestas básicas que estariam sendo disponibilizadas naquele período.

Com a mesma galhardia litúrgica que pautava seu sagrado ofício sacerdotal, exercia e fomentava a cidadania de seus semelhantes. Tanto assim, coordenando o Pacto Pela Cidadania, cumpriu extensa agenda na governadoria e na Assembleia Legislativa, em Campo Grande, além de diversas reuniões nas prefeituras e câmaras de Corumbá e de Ladário. Sem qualquer constrangimento, num tempo em que receber visita de candidatos de esquerda era, para o status quo, no mínimo bizarro, esteve reunido por mais de quarenta minutos com os então candidatos Luís Inácio Lula da Silva e José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT, a fim de expor sobre a importância da implantação da Área de Livre-Comércio de Corumbá e Ladário para a retomada do desenvolvimento sustentável desta região de fronteira.

Demonstrava serenidade e profunda sensatez, até mesmo em momentos dramáticos, como da inusitada invasão da Mitra Diocesana por assaltantes armados no início de uma reunião de trabalho do Pacto Pela Cidadania, em fevereiro de 1998, quando ele e outras dez pessoas foram trancafiadas no pequeno oratório ao lado da sala de estar por mais de duas horas, enquanto os saqueadores reviravam todos os espaços da casa à procura de dinheiro e objetos de valor. Tudo o que conseguiram tirar não passava de cem reais e um anel comemorativo de sua ordenação sacerdotal, que o fazia lamentar-se pelo valor afetivo. Indagado se esse episódio mudaria sua rotina, ele desconversava, lembrando que seu ofício, como os demais, sempre dá margem ao imponderável. Mas jamais deixou de receber cidadãos na modesta residência oficial de Bispo de Corumbá, sempre de portas abertas para acolher a todos os que lá acorriam, fossem membros de sua Diocese ou cidadãos dos vários movimentos sociais que apoiava com sabedoria e sisudez.

Neste momento em que Corumbá e Ladário – aliás, o Planeta, na verdade – ficam muito mais pobres e tristes com a sua pranteada partida, reproduzo, a seguir, a mensagem de despedida que os membros do Pacto Pela Cidadania, da Ação da Cidadania Contra a Fome e Pela Vida e do Fórum Permanente de Entidades não Governamentais (FORUMCORLAD) leram na última reunião conjunta coordenada por ele, ainda como Bispo Diocesano de Corumbá, em agosto de 1999, na sede da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque (ILA).

 

Mensagem dos aprendizes de cidadão

Quis a Vida que estivéssemos reunidos no local em que oito [vinte e um] anos atrás era dado o primeiro grito de alerta da cidadania para o drama vivido pelo maior espaço destinado para a memória cultural da região, então em ruínas. Era setembro de 1991. Na época, Dom José Alves da Costa, recém-chegado à Diocese, com a espontaneidade que lhe é [era] peculiar, se aproximou dos organizadores da Semana da Cultura para manifestar sua simpatia pela iniciativa, somando-se ao conjunto da sociedade local. Hoje, embora tivéssemos muito para comemorar, diante das inúmeras conquistas acumuladas ao longo desse período – inclusive a revitalização da Casa de Cultura [ILA] –, lamentavelmente estamos reunidos para nos despedir [para sempre] do sábio e compreensivo sacerdote que aceitou ser nosso timoneiro neste duro mas fecundo aprendizado de cidadania [agora sem a presença de dois saudosos Companheiros de primeira hora: Heloísa Helena da Costa Urt, nossa querida Helô, e o igualmente leal e estimado Aurélio Mansilha Tórrez, que também partiram para outra dimensão, deixando uma profundidade de saudades mil].

Desde o primeiro encontro com o sacerdote que cativou corações [e mentes] de todos os credos e correntes de pensamento, nasceu um relacionamento marcado pela generosidade e pelo desprendimento que transcendeu fronteiras de toda natureza. Em 1993, durante as atividades reflexivas da Segunda Semana Social Brasileira, promovida pela CNBB, foi dado o primeiro passo concreto no sentido da articulação da sociedade local para os problemas sociais. Assim, em junho daquele ano, nascia o Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, sob a iluminada coordenação de Dom José Alves da Costa. Como nunca até então fora visto, centenas de voluntários de todos os credos, raças e classes sociais se irmanaram no intuito de amenizar o drama de mais de sete mil famílias que na ocasião se encontravam abaixo do limite da pobreza.

Inspirada nos ensinamentos do sociólogo Herbert de Souza – o saudoso Betinho –, a Ação da Cidadania, com o apoio dos funcionários do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco Itaú, Embrapa, INSS, Sanesul, Telems, Enersul, IBGE, Cimento Itaú, UFMS, Correios, INCRA, Embratel, Empaer, prefeituras de Corumbá e Ladário e diversos educandários – além do providencial envolvimento das comunidades católica, evangélicas (sobretudo presbiteriana e batista) e espírita –, distribuiu na região, nos primeiros três anos, mais de quinze mil cestas básicas e iniciou um trabalho de capacitação profissional para as famílias mais carentes, tendo incentivado a formação de clubes de mães, hortas comunitárias e cursos de alfabetização. E foi graças ao levantamento da Ação da Cidadania, o chamado Censo da Fome [de 1993], que Corumbá e Ladário passaram a estar incluídas em diversos programas federais de âmbito social [como o PRODEA], pois até então as respectivas prefeituras locais sequer dispunham de levantamento sistematizado acerca dos problemas sociais em seus municípios.

Em dezembro de 1994, com a implantação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), uma comissão de voluntários foi disponibilizada para montar um grupo de estudos e discutir com a sociedade ladarense o processo de municipalização da Assistência Social naquele município. Com a experiência acumulada, a Ação da Cidadania foi responsável pela organização [ao longo de quase um ano e meio], em dezembro de 1995, do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário [FORUMCORLAD], pioneiro no estado na articulação dos segmentos afins em diferentes áreas de interesse das políticas públicas de âmbito social, e que tem como Presidente de Honra o Padre Ernesto Sassida. Hoje é modelo para muitas cidades de diferentes estados, sobretudo pelas plenárias [desde 2009, fóruns setoriais] em que são discutidas as políticas públicas e pelo papel desempenhado nas discussões dos respectivos conselhos municipais, sendo responsável pela escolha dos membros da maioria deles [a despeito do servilismo sórdido de verdadeiras marionetes de interesses inconfessáveis de gendarmes de quinto escalão que não se cansam, inutilmente, de tentar usurpar tal prerrogativa, conquistada com legitimidade e dignidade, além de muita luta e altivez].

Por outro lado, a dramática situação social, decorrente da estagnação econômica da região, criou as condições para que fosse organizado o Pacto Pela Cidadania [Movimento Viva Corumbá], em junho de 1995, como resultado de uma extraordinária articulação de mais de quinze segmentos sociais de Corumbá e Ladário, sob a coordenação de Dom José Alves da Costa. Camelôs, estudantes, professores, feirantes, ferroviários, comerciantes, pescadores, taxistas, agricultores, funcionários públicos, exportadores, donas-de-casa, moradores de bairros, artistas, intelectuais e religiosos assumiram o compromisso de defender uma agenda mínima em defesa da região, a qual foi atualizada em agosto de 1998, conforme o documento Agenda 98: vida e cidadania – caminhos para o reencontro de Corumbá e Ladário com o progresso.

Desde a promoção da Semana da Cultura pela Sociedade dos Amigos da Cultura, em setembro de 1991, até a apoteótica realização do Seminário da Saúde em Corumbá, em junho de 1999, muitas conquistas foram protagonizadas pela cidadania local, com a generosa e incansável colaboração de Dom José Alves da Costa, que com sua sábia humildade soube conduzir com cordialidade e senso de justiça as exacerbações circunstanciais. Sem dúvida, o ponto alto desta jornada interminável ainda está [estava] por vir. Em vez de Coordenador, função que doravante será [está sendo] exercida pelo Padre Pascoal Forin (até então Coordenador-Adjunto), Dom José Alves da Costa está sendo [foi] proclamado Presidente de Honra do Pacto Pela Cidadania e do Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. Mais que homenagem, é o reconhecimento de nossa coletividade pelas importantes contribuições proporcionadas para a região mais antiga do estado, e não por acaso das mais esquecidas desde a criação do estado de Mato Grosso do Sul.

Como aprendizes de cidadãos e seguidores de seus ensinamentos, estamos certos de que faremos com que o Senhor, Dom José, retorne muitas vezes à terra que Frei Mariano jamais amaldiçoou (até porque missão de sacerdote não é essa) [retornou, sim, duas vezes: na inauguração da sede da CRIPAM e na outorga do título de cidadão corumbaense pela Câmara]. Com a generosa condução de homens libertos de vaidades como o Senhor, a cidadania local está fazendo a tão sonhada retomada, com amor, solidariedade e muita compreensão.

Até breve [até sempre], Dom José!

Ahmad Schabib Hany

Agosto de 1999 [dezembro de 2012]