segunda-feira, 30 de julho de 2018

SENHOR HAMAD HAYMOUR, UM LEITOR INCANSÁVEL...


SENHOR HAMAD HAYMOUR, UM LEITOR INCANSÁVEL...

Ao tomar conhecimento, alguns dias depois da eternização do querido Amigo que herdei de meu saudoso Pai, o Senhor Hamad Haymour, logo me veio à lembrança, como num filme daqueles em “cinemascope” (sistema de filmagem de Hollywood dos anos dourados), a discreta e circunspecta personalidade de imigrante libanês chegado ao Brasil ainda jovem, com toda a sua família.

As imagens são do final da década de 1960, quando ainda a sua família -- esposa e filho(a)s Adnan, Fátima e Khaled -- não havia retornado ao Líbano, onde permaneceriam até meados da década de 1970, em razão da guerra civil que destruíra avassaladoramente a chamada Suíça do Oriente Médio e matara milhões de pessoas, em sua imensa maioria, crianças, mulheres e idosos indefesos.

O Senhor Haymour era um dos primeiros conterrâneos árabes com quem meu Pai fizera amizade na Corumbá cosmopolita dos anos 1960. Tão logo aportaram em Corumbá, eles se conheceram e logo sua Amizade (dessas com letra maiúscula) desabrochou. Como Seu Schabib gostava de ler, logo passou a trocar livros e revistas em árabe e francês com ele e os senhores Emílio Sayegh (Casa Brasil), Mohamad Bazzi (“Abu Kamel”, Casa das Flores), Fauze Rashid (Sorveteria Superbom), Soubhi Issa (“Seu Rafael”, Casa Estrela), Júlio Emílio Ismael (Casa Botafogo), Mohamad Omar (Casa Glória), Mohamed Ale, Ibrahim Ale, Mohamed Sleiman (Empório da Síria), Mohamad Said (Casa Said), Tajher Younes (Casa Damasco), Fehme, Aziz, Schaho, Wadih, Jamil e Amouri (seis grandes Amigos de longa data de meu Avô Youssef Al Hany, cujos sobrenomes lamentavelmente não lembro).

Proprietário da Casa Beirute (inicialmente localizada na rua Frei Mariano, entre a Cuiabá e a América), o Seu Haymour era extremamente atencioso quando íamos às compras. Fazia questão de nos atender pessoalmente, deixando funcionários atendendo os demais clientes. E nas oportunidades em que saíamos a passear, e era inevitável descermos pela Frei Mariano, era uma festa: aqueles doces árabes, para as crianças (nós), e o inigualável café árabe para os adultos...

Era praticamente vizinho (a três quadras da sorveteria e hospedaria Schabib, de meu Pai), o que os aproximara ainda mais depois de que sua família retornara ao Líbano. Além de ouvir rádio em árabe e ler volumosos livros em árabe e francês (segunda língua no Líbano e Síria), eles se atribuíam algo como “tarefas”, isto é, pesquisar alguns temas para debater no próximo encontro.

Esse gosto pela leitura foi determinante para que nossas famílias se identificassem com as letras e o livre pensar, eis que, ao contrário do bizarro estigma contra os árabes, o estímulo às artes e ao saber é cultivado, sobretudo entre as famílias de imigrantes, até como forma de afirmar a identidade cultural.

Lembro-me do então adolescente Adnan, o querido Amigo que por décadas administrou a Casa Beirute (já instalada defronte à Praça Independência, na Frei Mariano), que além de escrever como poeta alado (memoráveis poemas em árabe e português), fazia belíssimas telas em aquarela e a óleo, como também bicos de pena e nanquim retratando sua saudosa estada na terra de seus pais...

Quando, sob a coordenação da bibliotecária e Professora Elenir Machado de Melo (querida Amiga Lena), foi realizada a Primeira Mostra da Cultura Árabe-Palestina de Corumbá, entre junho e outubro de 1987, na Biblioteca Estadual Gabriel Vandoni de Barros, em dependências da Casa de Cultura Luiz Albuquerque (o emblemático ILA), muitas famílias árabes generosamente disponibilizaram documentos, obras e objetos representativos da cultura árabe, entre elas o agora saudoso Senhor Hamad Haymour.

E o que muito me marcou, na Amizade com meu saudoso Pai, foi a disciplina, o rigor com que Seu Haymour lia, pesquisava e debatia. Algo que jamais esqueci foi que ele descobrira que as famílias dele e de meu Pai tinham a mesma origem e uma história comum, de resistência ao Império Turco-otomano, de triste memória.

Assinante de uma revista universitária do Cairo, senão me engano “Al Urubat”, ainda no iluminado tempo do Pan-arabismo de Gamal Abdel Nasser (grande estadista, um dos líderes do Movimento dos Países Não Alinhados e fundador da República Árabe Unida, que reunia o Egito, a Síria e por muito pouco tempo o Iêmen do Norte), mantinha meu Pai informado sobre as pesquisas históricas do então chamado Mundo Árabe.

Não por acaso, Seu Haymour e meu Pai, durante décadas, empreenderam uma batalha frustrada de construir um Centro Cultural Árabe-Brasileiro no coração do Pantanal e da América do Sul, com o propósito de disseminar as milenares artes e letras árabes, bem como suas diversas culturas e memórias. Mais um projeto frustrado, pois tanto o meu Pai como o Senhor Haymour se eternizaram sem terem podido ver qualquer iniciativa concreta.

O legado, no entanto, está perenizado na trajetória testemunhada pelas novas gerações, cujas referências não apenas são o testemunho e o aprendizado, mas a rigorosa e metódica atuação de imigrantes como o Senhor Hamad Haymour, cuja presença permanece viva, cintilante, entre nós. Até sempre, querido Amigo!

Ahmad Schabib Hany