domingo, 28 de dezembro de 2008

AOS 60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Este é um dia memorável. Sessenta anos atrás, precisamente no dia 10 de dezembro de 1948, a Assembléia-Geral das Nações Unidas proclamava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mais que um documento emanado três anos depois da grande tragédia que se abateu sobre a humanidade – a Segunda Guerra Mundial (triste momento da história que envergonha a espécie humana na face da Terra: Hiroshima, Nagasaki, Auschwitz, Deir Yassin etc.) –, trata-se de um pacto contra a barbárie, um brado pela Vida, uma declaração de amor pela humanidade, um conjunto de princípios éticos pela evolução da espécie humana, uma carta de compromisso com as futuras gerações.
É bem verdade que nestes 60 anos muitas tragédias iguais ou até piores foram cometidas com a participação direta dos governos das maiores potências militares e econômicas da história. Até parece que os poderosos e gananciosos não aprenderam a lição, nem com o martírio de milhões de seres humanos (em sua maioria inocentes e indefesos que tiveram sua Vida, seus sonhos e seus direitos cerceados impunemente)...
Não por acaso, no senso-comum disseminou-se o preconceito sobre os destemidos defensores destes princípios universais. Até bem pouco tempo, era comum atribuírem a eles “culpas” por supostos “prejuízos” contra o desenvolvimento, por hipotéticos “atos de sabotagem” contra a pátria, por delirantes “conspirações” contra a segurança nacional. Esse discurso anacrônico e descabido ainda ecoa, de modo velado, entre os saudosos da intolerância, dos facínoras travestidos de democratas da grande noite que se abateu por toda a nossa pobre América Latina...
Mas os valorosos praticantes dos princípios sagrados da grande fraternidade constituída pelos lutadores pelos Direitos Humanos em todo o mundo não se acovardaram. Pelo contrário, multiplicaram seus seguidores, a despeito da covarde ameaça que sempre existiu contra eles, e, como nós, aqui e agora, em todos os lugares do planeta, se encontram num grande congraçamento, homenageando seus protagonistas, dentro da diversidade de credos, filosofias, ideologias, concepções de vida, gênero, raça, etnia, opção sexual, consciência, comportamento...
As instituições parceiras neste modesto ato, mas de grande relevância para a afirmação da cidadania (a Subsecretaria de Ações de Cidadania de Corumbá e o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário), ousaram tentar um momento de reconhecimento sincero, mesmo sabendo dos riscos de não agradar a todo(a)s, pois não são poucos os potenciais candidato(a)s a esta homenagem – não aqueles que querem se autoproclamar (um direito, que, aliás, lhes assiste), mas os que, no anonimato e sem qualquer interesse secundário, têm feito de sua Vida um constante ato de servir ao próximo de forma sincera, espontânea e sobretudo concreta.
Lamentamos, inclusive, não ter sido possível incluir a todo(a)s dentro destes 60 homenageado(a)s de hoje. Vários foram os fatores, mas o que mais sopesou, sem dúvida, foram os argumentos enviados pelos dirigentes de entidades na defesa deste ou daquele nome, além do fato de alguns dos nomes lembrados estarem diretamente envolvidos no processo de organização do evento.
Por outro lado, a razão maior desta iniciativa – de generosa inspiração do grande militante das causas maiores Arturo Castedo Ardaya – não é outra que reconhecer publicamente a conduta solidária e exemplar do(a)s homenageado(a)s para incentivar, motivar e reforçar a prática da fraternidade, da ética, da solidariedade e sobretudo da defesa intransigente dos maiores valores de uma sociedade que se pretende evoluída, democrática e libertária, por meio do exercício da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Enfim, tal como 60 anos atrás corajosos protagonistas (muitos deles anônimos) escreveram esta generosa página para a posteridade, ignorando os incrédulos e zombeteiros de plantão, hoje cidadãs e cidadãos aqui reunidos para celebrar a prática da civilidade, por meio de atos concretos de nosso(a)s homenageado(a)s, têm consciência do compromisso de renovar as generosas convicções de nossos antecessores, cujo legado maior é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Que nos próximos 60 anos os corumbaenses que então se encontrarem numa noite de valorização da espécie humana por meio do reconhecimento de seus contemporâneos que tiverem abraçado a luta por uma humanidade mais fraterna, solidária e generosa, consolidem os sagrados princípios de concórdia e paz entre os seres humanos e demais seres viventes sobre a face da Terra consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ahmad Schabib Hany

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Bolívia: A farsa do "referendo autonômico"

Tive a honra de acompanhar, ao lado de uma jovem repórter que veio a Corumbá cobrir para uma revista nacional o Festival América do Sul (realizado na fronteira com a Bolívia), a verdadeira farsa que foi o (sic) "referendo autonômico" protagonizado pela direita derrotada no primeiro-turno por Evo Morales em 2006. Os que agora posam de "democratas" são os filhotes da ditadura sanguinária de Hugo Banzer (o mesmo que, segundo o falecido jornalista boliviano René Bascopé Aspiazu – fundador do semanário Aquí, o maior opositor dos narcogenerais de plantão das décadas de 1970 e 1980 –, em seu memorável livro La veta blanca, usou os recursos de um empréstimo de 600 milhões de dólares do BID em 1976 para o desenvolvimento da cultura do algodão no nefasto intuito de implementar o plantio da coca e a produção em escala industrial da cocaína) foram derrotados nas urnas e, acostumados à prática do golpismo, querem levar a Bolívia ao extremo da ingovernabilidade para justificar algum projeto divisionista, com evidências racistas.
Na fronteira com Corumbá, em torno de oitenta membros da Juvetud Cruceñista (que mais se assemelha à juventude hitlerista, de triste memória), alegando estarem incumbidos de fazer a segurança dos participantes do processo eleitoral (que não foi convocado pela Justiça Eleitoral daquele país e, portanto, não teve a cobertura dos órgãos institucionais, como a Polícia Nacional e o Exército), agrediram feirantes que na localidade de Arroyo Concepción vendem seus produtos aos turistas brasileiros que se deslocam aos finais de semana para adquirir produtos mais baratos (e que por conta do feriadão no Brasil, em número maior, até em decorrência do Festival América do Sul, evento cultural de caráter continental). Qual o motivo da injustificável agressão? Quererem trabalhar e serem de origem colla (região andina, de etnia quíchua e aimara), como se isso caracterizasse qualquer crime.
Indagada pela repórter sobre as motivações da (sic) juventude, a presidente local (com mais de trinta anos de idade) se declarou opositora do atual presidente e que, preocupada "pela influência comunista do atual governo", sua organização não reconhece o atual governo nacional (eleito pelo voto direto no primeiro-turno) e quer que os recursos arrecadados pelo departamento (unidade administrativa nacional) de Santa Cruz fique para a gestão departamental, ignorando a existência de leis nacionais (anteriores à eleição de Evo Morales, e que existem desde a criação do Estado boliviano, em 1825).
O dirigente de um sugestivo "comitê de defesa de Mutum", ao ser questionado sobre as mais recentes iniciativas do governo central (a implantação da unidade de rebaixamento de aço de Mutum e a construção da rodovia Porto Suárez – Porto Busch), que gerarão mais de oito mil empregos para a região, teve o acinte de refutar tais projetos, alegando que são manobra do governo "de La Paz" e que não vingarão. O curioso é que esses mesmos senhores se declaravam em estado de greve (na verdade, blecaute) quando o governo de Evo Morales obstou a instalação de uma empresa brasileira irregularmente instalada na fronteira (a menos de 50 quilômetros da divisa internacional), cuja previsão para a geração de empregos era exatamente a metade.
Patrocinados por órfãos de Banzer, o ditador que faleceu há quase cinco anos, os artífices deste autoproclamado "ato cívico" (ou seria cínico?) explicitamente fascistóide são em sua maioria de ascendência estrangeira, tais como Marinkovic (sérvio), Tuma (libanês), Costas (grego), Dabdouh (palestino) etc, enriquecidos durante a ditadura banzerista e, mais recentemente, durante o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (com nacionalidade estadunidense), que fugiu da Bolívia para não enfrentar processo por lesa-pátria movido por diversas organizações nacionais que o acusam de ter promovido o empobrecimento do país ao executar um projeto de privatização lesivo aos interesses de uma das nações mais pobres do continente. Sobre isto, aliás, o notável jornalista Andrés Soliz Rada, ex-ministro de Morales e autor do célebre La fortuna del presidente, já escreveu inúmeros artigos em que elucida a trama dos que tomaram a Bolívia de assalto e fazem de tudo para "não largar a rapadura".
E a quem interessa, então, essa farsa de "autonomia"? Quem assistiu à minissérie da Globo sobre o Acre, exibida há pouco mais de dois anos, verá que a elite obtusa da Bolívia tenta reeditar aquele episódio vergonhoso para os bolivianos. Esqueceram-se, no entanto, que a história só se repete como farsa...
Àqueles que se interessam pela história recente da América Latina, não custa sugerir-lhes a leitura de dois reveladores livros de autores latino-americanos: o clássico As veias abertas da América Latina, do célebre Eduardo Galeano, e Com a pólvora na boca, de Júlio José Chiavenato. Ambos permitem uma reflexão oportuna e sincera sobre o atual momento histórico vivido pelas nações latino-americanas, sobretudo quando a grande imprensa, subserviente aos interesses espoliadores, permanece mais uma vez de cócoras, prestando outro desserviço à opinião pública do mundo inteiro. Tal qual no tempo das ditaduras nefastas que enlutaram toda a América Latina nas décadas de 1960, 1970 e 1980, a mídia empresarial insiste em distorcer as informações a seu bel prazer, contribuindo para a desinformação geral, em nome de uma bizarra liberdade de imprensa.
Ahmad Schabib Hany (filho de libanês, nascido na Bolívia, parente de bolivianos que deram alguma contribuição àquele país – como o dentista e homem público José Al Hany, o militar Ismael Schabib e o músico Alcides Mejía Hany – e há mais de 40 anos residente no Brasil)

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Mais que conservar o meio ambiente, trata-se de preservar o Estado de Direito

Uma sociedade que se pretende democrática, baseada no princípio do convívio saudável entre a diversidade de interesses de seus inúmeros segmentos - muitas vezes antagônicos, mas nem por isso ilegítimos –, não pode abrir mão da estrutura jurídica do Estado de Direito, o qual, aliás, foi construído ao longo dos últimos séculos pelas sucessivas gerações que antecederam as contemporâneas.
Nesse sentido, a partir do Renascimento (processo histórico das sociedades ocidentais pelo qual se retomaram as significativas contribuições oriundas da Antigüidade Clássica, ao romper com o obscurantismo medieval), importantes pensadores do Ocidente resgataram o humanismo e seus valores universais – sobretudo o legado da convivência harmoniosa entre os contrários, pondo em xeque a intolerância feudal, que ainda teima em nortear os rumos da humanidade.
A despeito da expansão colonialista protagonizada pelas coroas portuguesa, espanhola, inglesa, francesa, holandesa e austro-húngara, é no auge do Iluminismo que se consolidam as idéias que dão as bases conceituais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em fins do século 18 (que trata dos direitos individuais, a primeira geração). E num processo evolutivo são acrescidas importantes contribuições, nos séculos 19 e 20 – quando são concebidos os direitos coletivos, de segunda geração –, que se transformam num marco histórico em 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova, em sua Assembléia-Geral, a Carta dos Direitos Humanos – a qual ganha maior dimensão com a inclusão de novos conceitos relativos aos direitos dos povos e da diversidade biológica e cultural, compiladas na Carta da Terra, em 1992, durante a realização, no Rio de Janeiro, da Cúpula da Terra, mais conhecida como Eco 92, cujo documento final ficou traduzido na Agenda 21.
Mais que mero protocolo de intenções, a Agenda 21 é um conjunto de novos conceitos e ações recomendados a todos os países-membro da ONU, a qual, no dizer do sociólogo americano Ignacy Sachs, em seu livro Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente (Editora Studio Nobel, São Paulo, 1993), "não foi um fim em si mesma; em vez disso, deve ser encarada como o início de um longo processo a ser percorrido mediante esforços e batalhas dos atores do desenvolvimento". Cabe, portanto, aos respectivos governos nacionais, regionais e locais introduzir em suas políticas públicas novos parâmetros de desenvolvimento, levando em conta as cinco dimensões de sustentabilidade – social, econômica, ecológica, espacial e cultural.
No entanto, a partir da celebração do chamado Consenso de Washington, em 1989 – quando do início do desmoronamento do bloco soviético –, os sete países mais ricos do mundo capitalista decidiram desenvolver uma estratégia ousada na afirmação de sua hegemonia econômica, adotando o neoliberalismo em escala global – a chamada "globalização" –, as sociedades contemporâneas passaram a viver um dilema: a subordinação de sua estrutura jurídica às leis de mercado. Em outras palavras, na América Latina o Estado de Direito passou a ser corroído, de um lado, pelos cartéis e oligopólios transnacionais, e por outro, pelas quadrilhas do crime organizado, pois o recém-implantado regime democrático se revelou frágil perante as amplas camadas sociais nas garantias de direitos sociais e trabalhistas e no enfrentamento à expansão da miséria e do desemprego.
Assim, o ruidoso embate que tem como epicentro o projeto de implantação de indústria pesada no município de Corumbá (MS), no coração do Pantanal Mato-grossense, remete os cidadãos comprometidos com os reais interesses da sociedade a uma oportuna reflexão: detentor de uma extraordinária legislação ambiental, o Estado brasileiro pode transigir da legalidade em nome da geração de emprego e renda para uma população residente numa singular região do Planeta, cujos recursos naturais não renováveis têm um valor inestimável para toda a humanidade?Qual o real custo-benefício sócio-ambiental dos projetos alardeados para a região, levando em consideração que o mercado impõe condições cada vez mais voláteis a toda iniciativa econômica, sujeita à própria sorte (a exemplo da crise que afeta a sojicultura, a pecuária e a avicultura, carros-chefe da economia do estado de Mato Grosso do Sul, vitimados pela especulação mercantil dos últimos meses)?
E a garantia de sustentabilidade desses megaprojetos, os quais envolvem elevados investimentos, em sua quase totalidade financiados por instituições públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou por instituições financeiras multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou o Banco Mundial (BIRD), dos quais o Estado brasileiro é membro e cujo aval é requerido nos casos de sediar projetos dessa magnitude?Há de se observar também que, antes de se cair no discurso maniqueísta (do "bem" contra o "mal"), é preciso reunir dados jurídico-institucionais para compor o cenário local para a introdução de novos projetos de desenvolvimento, nos parâmetros do século 21, com ênfase às cinco dimensões do desenvolvimento sustentável, bem como a necessária observância ao Estatuto da Cidade, pelo qual toda cidade com mais de 50 mil habitantes é obrigada a construir o respectivo Plano Diretor do Município, além do que a administração estadual não pode deixar de realizar o Macrozoneamento Ecológico-econômico, nos termos da legislação pós-Agenda 21, como medidas preliminares para adoção de novos modelos de desenvolvimento.
Não é demais recordar que as três gerações dos Direitos Humanos (direitos individuais, sociais e econômicos e de solidariedade e meio ambiente) são complementares, embora apresentem, no cotidiano das sociedades hodiernas, aparentes conflitos entre os direitos individuais, coletivos e de solidariedade. Na realidade, a omissão do Estado, enquanto ente responsável pela aplicação estrita dos referidos direitos, induz os incautos a essa aparência, explorada de parte a parte pelos lados em conflito. Mais que a conservação da natureza, a preservação do Estado de Direito, construído nas últimas décadas com muito custo (inclusive com perda de vidas humanas) em toda a América Latina, implica na vigência do império da lei, sem o que a barbárie se instala no seio da sociedade, para o deleite das organizações criminosas que agem, inclusive, nas atividades políticas e econômicas, usando e abusando da fragilidade do tecido social, corroído por suas mazelas.
* Schabib Hany, fundador e atual coordenador-executivo da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental sediada no coração do Pantanal (Corumbá, MS), e membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).