quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

UM ANO SEM SEU JORGE KATURCHI

Um ano sem Seu Jorge Katurchi

A ausência de um dos mais atuantes defensores de Corumbá, ao lado dos incansáveis Padre Pasquale Forin, Padre Ernesto Saksida e Dom José Alves da Costa, empobrece o coração do Pantanal e suas legítimas lutas.

No dia 31 de janeiro de 2023, primeiro mês do reencontro do Brasil com o Estado de Direito e a plenitude democrática, Seu Jorge José Katurchi se eternizava depois de sofrer um martírio de alguns dias no CTI do Hospital de Caridade, de cuja entidade mantenedora, a Sociedade de Beneficência Corumbaense, fora vice-presidente algumas décadas atrás.

Um homem verdadeiramente apaixonado pelo amor maior de sua Vida: Dona Anna Thereza de Copacabana Rondon Maldonado Katurchi, em cujas veias circulava o sangue de Cândido Mariano da Silva Rondon, seu Tio-avô materno, e do bravo cidadão Don Reyes Maldonado, seu Pai, Cônsul da Bolívia em Cáceres e igualmente apaixonado pelo povo pantaneiro, tanto que um de seus Netos, o saudoso Professor Carlos Alberto Reyes Maldonado, é o fundador e patrono da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT), com sede em Cáceres.

Pai presente e dedicado: amou seus três Filhos da mesma maneira, deixando que cada um seguisse seu horizonte. Da mesma forma seus Netos. Quando se referia à sua Família, os olhos brilhavam de felicidade e também de saudades. Como poucos, as canções de ninar de Dona Amélia Abraham Katurchi estavam incólumes em sua memória privilegiada e seu coração gigante, como ele.

Nos 30 anos em que tive a honra de conhecê-lo melhor e privar de sua Amizade (com letra maiúscula), posso afirmar sem qualquer risco de que seu sincero amor por Corumbá e pelo povo hospitaleiro que o acolheu, a sua Família e a todos os imigrantes dos mais diversos países da Terra foi o segredo de sua longevidade, além, obviamente, pelo trabalho, com o qual ele se identificara desde tenra idade, vendendo agulhas importadas a partir dos 8 anos de Vida.

Pude testemunhar sua dedicação, seu incansável trabalho, sempre discreto, só não anônimo porque ele é conhecido dentro e fora do Brasil. Sem qualquer arrefecimento ante inevitáveis frustrações, pois bandeiras como a luta pela implantação da Área de Livre-Comércio de Corumbá e Ladário ou pela conclusão da Transpantaneira (Cáceres-Corumbá) não chegou a ver concretizada.

Às vezes me pego querendo trocar algumas ideias com ele. É que, respeitando o ponto de vista dele, anos-luz à frente de seu tempo, debatíamos como se tivéssemos a mesma idade os mais variados temas. Sua conexão com o mundo real era admirável: acompanhava os mais diferentes fatos, fossem eles ocorridos em Corumbá, em Brasília ou pelo mundo afora (e não foram poucos os recortes de jornal ou revista que me enviou para conversarmos ou que pudéssemos aproveitar em alguma reivindicação para Corumbá, Pantanal e Bolívia).

Quase um ano depois de sua eternização, como reconhecimento de seu amor pelo povo pantaneiro (ele sempre se referia a Cáceres como sua segunda cidade, pois a Companheira de Vida era nascida lá), começam a pulsar as primeiras manifestações pela reintegração do Pantanal, um sonho que acalentava discretamente: não gostava da palavra divisão, ele entendia que união, ou reunificação, coadunava melhor em sua maneira de ver a Vida.

A eternização de seu Jorge Katurchi, junto das do Padre Pasquale Forin, Padre Ernesto Saksida e Dom José Alves da Costa, empobreceu sobremaneira a tênue resiliência das poucas mas incansáveis cidadãs e cidadãos membros do Pacto Pela Cidadania durante os doze meses que se seguiram à sua sentida ausência.

Fico a imaginar o tamanho do desassossego de Seu Jorge Katurchi ante a aventura da RILA desviando de Corumbá e da Bolívia para chegar ao Chile. Ou o estrago da ponte rodoviária de Morrinho e o abandono da ponte ferroviária de Porto Esperança. Ou o distanciamento de nossos parceiros de fronteira de Porto Quijarro e Porto Suárez, a quem Seu Jorge não deixava de visitar pelo menos uma vez por semana quando sua saúde ainda permitia.

Entre as iniciativas sociais ligadas ao Pacto Pela Cidadania e Observatório da Cidadania ao longo deste ano haverá momentos de reconhecimento público e merecida homenagem a Seu Jorge Katurchi que, sem ter sido detentor de cargo público, dedicou-se com penhor à defesa de Corumbá e Ladário, de sua laboriosa população e à integração com a Bolívia, que o homenageou em Vida.

Depois do confinamento pela pandemia de covid-19, nossas conversas, sem tempo para acabar, foram por telefone, à exceção de uma visita com a Família a propósito de seu aniversário de 96 anos, quando meus Filhos, já adolescentes, puderam contemplar sua dimensão física e, sobretudo, moral e intelectual. Não esqueço do beijo espontâneo árabe que nos deu a todos, como faço questão de me lembrar dele em Vida.

Ainda não vi no Legislativo ou Executivo municipal algum logradouro público ser nomeado em sua homenagem. Sequer consta de seu honrado nome a placa de registro da entrega pela Prefeitura de Corumbá da memorável criação da saudosa Dona Izulina Gomes Xavier (Amiga dele e de Dona Anna Thereza), cujo financiamento pelo Governo Zeca, em seu primeiro mandato, foi obtido por meio de sua articulação via Pacto Pela Cidadania e repassado ao Lions Clube quando o saudoso Carlos Alberto Machado era presidente da entidade.

Seu Jorge Katurchi estará sempre presente entre os membros do Pacto Pela Cidadania e o Observatório da Cidadania em todas as suas atividades e nos discretos recessos, frutos da impossibilidade de Cidadãos como ele serem substituídos. Nossa caminhada continua tendo a memória de nossos precursores e inspiradores sempre ao nosso lado. Seu Jorge José Katurchi, presente na memória e no coração!

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Menina - Deyse Dittmar | Projeto NOVA


Vídeo produzido com recursos do Fundo Social Sicred • Dedicado a todas as meninas e mulheres atendidos pelo NOVA • Ficha Técnica: Música: Deyse Dittmar • Produção Musical: Evandro Vaz • Produção Vídeo: Joelson Emanuel • Bailarina: Jessica Bellincanta • Atores: Menina, Viviane e Ebenézer • Doe para a instituição através do PIX: projetonova@funasph.org.br • contato: 67 3324-4200

Disponível em: https://www.capitalnews.com.br/video/97

domingo, 28 de janeiro de 2024

O PODER PODRE DO DINHEIRO

O poder podre do dinheiro

A abjeta estratégia das potências pró-sionistas depois da aceitação do processo contra Israel por genocídio: suspensão do pagamento à Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos sob o pretexto de que a contraofensiva palestina de 7 de outubro contara com a conivência de funcionários da ONU.

Jornalões e outros meios corporativos hegemônicos noticiaram, no fim do mês de janeiro, a suspensão do pagamento pelo Reino Unido, Itália, Canadá, Austrália, Suíça, Finlândia, Holanda e Alemanha à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos em razão da denúncia do nazissionista Benjamin Netanyahu de que funcionários da agência teriam colaborado com os combatentes palestinos que realizaram a contraofensiva do dia 7 de outubro.

A suspensão do envio de dinheiro devido ocorre no momento em que as tropas sionistas promovem uma carnificina indiscriminada contra a população civil, com mais de 30 mil vítimas, em sua maioria crianças e mulheres. Na verdade, esses governos, pressionados pelos endinheirados grupos sionistas em todo o mundo, sequer esperaram que fosse constatada a tal ‘denúncia’, o que evidencia se tratar de retaliação à ONU cuja Corte Internacional Penal, de Haia, acolheu a petição do governo da África do Sul contra o governo sionista de estar cometendo atos genocidas na Faixa de Gaza.

João Amorim, Amigo de infância, técnico em fogões a gás com experiência internacional, dos mais argutos observadores políticos que conheço, há uns três anos me questionou, de supetão: por que os mais de 20 Estados árabes, a maioria deles muito ricos, não conseguem derrotar o Estado sionista que se apossou do milenar território palestino há tanto tempo?

Na época eu, bastante surpreso com o questionamento, disse que não se tratava apenas de dinheiro, mas do poder militar dos aliados e patrocinadores de Israel, todos eles ex-metrópoles coloniais há pelo menos cinco séculos. Hoje, no entanto, sou obrigado a rever essa compreensão, pois o vil metal, o poder do dinheiro, é o que está no cerne da questão.

Ora, como Arthur James Rothschild, o banqueiro de um século atrás, conseguiu obter do jeito que queria a tal Declaração Balfour, em que o chanceler britânico praticamente vendera a Palestina aos sionistas em troca do financiamento da combalida economia imperial, abalada com os gastos das frentes de batalha durante a Primeira Guerra Mundial? Falando claro, a coroa britânica pedira penico, digo, dinheiro, em troca da entrega da Palestina da maneira mais impune e cínica, pois, por meio do espião de ‘Sua Majestade’, T. E. Lawrence (‘Laurence da Arábia’), o Reino Unido havia assumido o compromisso com o múfti de Jerusalém que, em troca do apoio aos interesses britânicos na Arábia, os líderes árabes ficariam contra os turcos não só nas batalhas como em todas as iniciativas em que o império turco-otomano estivesse. Os árabes cumpriram, os britânicos molharam pra trás.

Não é sobre a sobejamente conhecida falta de compromisso dos colonizadores europeus -- até porque tudo o que eles fizeram ao chegar à América ‘recém-descoberta’ foi faltar aos acordos, como nos casos emblemáticos de Montezuma e Atahualpa, os respectivos reis Asteca e Inca, covardemente assassinados ao trair a palavra empenhada. Tudo porque os povos originários eram ‘pagãos’, e como tal poder-se-ia mentir-lhes cinicamente. Esse é, aliás, o princípio sionista: o direito que eles têm de mentir aos ‘gentios’, isto é, aos ‘outros’, como lhes ensina o Talmude, código civil, totalmente cifrado, acessível apenas para eles. Meu saudoso Pai escrevera nos anos 1960 sobre essa conduta, e tinha conhecido na prática essa atitude no Líbano, alvo desse comportamento questionável deles. Entre os segredos mantidos a sete chaves, o direito divino que eles creem ter de não honrar compromissos com os ‘gentios’ -- as ‘duas faces’ divinamente concedidas a eles.

Recentemente um cientista político argentino de ascendência judaica que faz análise de geopolítica, Ariel Umpièrrez, trouxe a público o poder que têm a comunidade sionista de Nova York, cuja sinagoga do Brooklyn, Lubavitch, foi alvo de uma operação policial do FBI e da Polícia de Nova York dias 16 e 17 de janeiro último, mas os grandes meios não deram uma linha sobre o fato. Segundo o analista argentino, uma denúncia de abuso de crianças e adolescentes nova-iorquinos foi a causa dessa operação, como 35 anos atrás, quando um grande líder deles foi condenado depois de ter confessado abusar de crianças. Ele tocou no assunto por ser o local para onde viajou Milei tão logo se elegeu e onde Netanyahu visitou trinta anos atrás para cacifar a sua indicação, pela primeira vez, como primeiro-ministro do Estado sionista.

Dinheiro e poder. É a razão de ser desse, mais que movimento, sistema. O dinheiro é só o meio para comprar e cooptar tudo o que querem. Porque o poder, em seu entendimento, é o objetivo, uma vez que eles são o ‘povo eleito’, e para seu Messias chegar é preciso que o Apocalipse aconteça. Dessa forma, segundo Ariel Umpièrrez, o Talmude os prepara para sobreviver ao Apocalipse e, com a chegada do seu Messias, só eles estarão a salvo, porque são só eles ‘o povo de Deus’. Quando cooptaram líderes neopentecostais, o intuito deles é acelerar a chegada do Messias com o caos que eles ajudam a promover, como guerras, flagelos, epidemias etc. O tal ‘gentio’ existe somente para servi-los e como tal podem até estar com eles, mas na condição de escravos ou serviçais.

Não por acaso todos os políticos que eles apoiam pelo mundo são iguais ao palerma do inominável ou ao Donald Trump ou ao Javier Milei. O propósito é acelerar o caos social, a fome e a miséria, a tensão social, os conflitos entre povos irmãos e entre as classes sociais da mesma nacionalidade. ‘Apocalypse now’ (algum nexo com o filme de Francis Coppola, de 1979). Dinheiro para isso eles têm, tanto que Hollywood virou sucursal do Pentágono. Manipulam todos os políticos em ascensão, para cooptá-los ou linchá-los moralmente, caso ‘ousarem’ recusar-se a fazer o jogo. Joe Biden, mesmo não sendo um adepto dessa turba (o que não significa que seja melhor), acabou submetido ao jogo porque os Democratas nos EUA têm lideranças sionistas muito poderosas, como Hillary Clinton, aquela que como secretária de Estado fez questão de ir à Líbia assistir e gravar o linchamento literal de seu líder Muammar Gaddafi quando da invasão pelas hordas ocidentais em 2011.

Basta prestar atenção. O que aconteceu com o líder árabe Gamal Abdel Nasser, que não era ‘radical’, mas patriota de verdade que não quis negociar com o sionismo? Do nada, sofreu um infarto fulminante em 28 de setembro de 1970 quando tentava equacionar um conflito entre o reino hachemita da Jordânia (do rei Hussein, grande traidor) e líderes dos refugiados palestinos, episódio conhecido como ‘setembro negro’. Quando o rei Faisal da Arábia Saudita, no túmulo de Nasser jurou rezar na mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, cinco anos depois, foi assassinado em seu gabinete real em Riad, a 25 de março de 1975, crime injustificado e simplesmente silenciado? Quem, afinal, estava por trás de Mikhail Gorbatchev e de Boris Yeltsin, senão os sionistas, quando conseguiram fazer ruir a União Soviética sem que o poderoso Exército Vermelho tivesse dado um só disparo?

O Egito, com Nasser, era uma potência mundial na liderança do Movimento dos Países Não Alinhados, junto de líderes como Josip Broz Tito (Iugoslávia), Jawarhalal Nehru (Índia), Sukarno (Indonésia) e Kwame Nkrumah (Gana), ou a construção de grandes projetos de modernização e afirmação da soberania egípcia empreendidos por Nasser, como a Usina de Assuã, em seu tempo a maior do mundo (antes da construção de Itaipu, em 1975, pelo Brasil), além da liderança entre os estados árabes e africanos, para cuja independência das metrópoles coloniais europeias se empenhou. Eliminação desse tipo de líder, para os sionistas, é uma questão vital.

Os venais sucessores, o nanico moral Anwar Sadat (similar ao ‘brimo’ Temer) e mais tarde Hosni Mubarak, não passaram de marionetes sionistas no coração do pan-arabismo. Tanto Sadat quanto Mubarak nunca corresponderam ao legado do grande líder pan-arabista que mobilizou a Ásia e a África nas décadas 1950 e 1960, auge da guerra fria e da escalada funesta do Estado sionista, um verdadeiro enclave colonial no coração da Arábia. Israel é, mais que projeto ‘nacional’ dos sionistas, um projeto de empoderamento mundial, como revela didaticamente Ariel Umpièrrez em seu canal Geopolítica.

Muammar Gaddafi e Saddam Hussein, a despeito de seu esforço por resistir à ofensiva do sionismo e do neocolonialismo não só não tiveram estatura política como eram destituídos de valores humanistas, tanto que sucumbiram por terem confiado nos conchavos com os sempre traíras do ocidente decadente, como Ronald Reagan e George Bush (EUA), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália). Saddam foi autovítima por confiar em Reagan contra a República do Irã (é só ler sobre o caso Irã-Contras) e no sinal verde de Bush para ocupar o Kuwait em 1990 (que deu origem à primeira Tempestade no Deserto). E Gaddafi, da mesma forma, com Sarkozy (para quem havia doado uma fortuna para a sua eleição, mas não hesitou em abandoná-lo quando da trama golpista de invadir a Líbia) e Berlusconi (com o qual tinha algumas joint-ventures em parceria com laranjas dos dois lados). Esse é o ‘capetalismo’: ‘negócios, negócios; amigos à parte’.

Ainda que sob o estigma de ‘terrorista’ a resistência palestina, independentemente das várias organizações (algumas de esquerda, outras nacionalistas e hoje muitas sectárias, ligadas a grupos religiosos), mas todas verdadeiramente patrióticas, a Palestina resiste, sobrevive e vive dignamente, sem se ajoelhar ante a truculência do ocidente perverso e hipócrita, em que um Estado terrorista, sanguessuga, opressor e literalmente ladrão se passa por vítima o tempo todo, quando é ele o verdadeiro algoz. O cinismo em forma de ideologia, de sistema.

Os mesmos árabes que ao longo da história defenderam seus ancestrais das injustiças ocidentais haverão de resistir e derrotar sionistas, canalhas e cretinos saqueadores que há séculos abusam da boa-fé dos que os recebem com altivez e galhardia, sejam como árabes ou como Asteca, Inca, Maia, Guarani, Tupi, Tupinambá, Apache, Shawee, Navajo, Inuíte, Berbere ou Bantu, Aborígenes australianos etc. Palestina vive! Palestina livre!

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

AO CINQUENTENÁRIO DOS 25 ANOS DE MOHAMED



Ao cinquentenário dos 25 anos de Mohamed

Ao comemorar seus 25 anos, Mohamed parecia estar se despedindo de nós pela maneira com que agira naquela sexta-feira, como nosso Pai observara em sua primeira crônica de homenagem ao Primogênito que partira precoce e tragicamente.

Sexta-feira, 25 de janeiro de 1974. Até parecia que Mohamed soubesse que era seu último aniversário entre nós. Acordara mais cedo que de hábito e fizera um pedido bem diferente do que lhe era peculiar. Nossos Pais o atenderam nesse pedido. Quando se eternizou, oito meses depois, nosso Pai observou esse episódio em sua primeira crônica de homenagem póstuma ao Primogênito, publicada no Diário de Corumbá e em Presencia, de La Paz, dois jornais que também se tornaram eternos.

Eram anos de chumbo, inclusive na Bolívia, onde ele interrompera contra sua vontade o curso de Sociologia na Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz. O sangrento golpe de agosto de 1971 capitaneado pelo facínora Hugo Banzer Suárez, que pusera em recesso as universidades durante vários anos, o impelira a fazer Psicologia no Centro Pedagógico de Corumbá, então da Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), onde encontrara um elevado número de conterrâneos cursando licenciaturas de Pedagogia, Ciências e Psicologia, pelas mesmas razões que ele: recesso imposto pela ditadura às atividades universitárias.

Desde que começara aquele fatídico ano, em que o regime de 1964 comemorava seus dez anos com uma avalanche de spots ufanistas e eventos escolares comemorativos sem perder os propósitos doutrinários da ‘segurança nacional’, um clima estranho rondava nosso lar: no início do ano, vizinhos muito queridos, como Seu Jubiraci, Filho de Dona Eusébia e Esposo de Dona Benedita, cuja casa dava de fundo à pensão de nossos Pais, fora vítima de bala perdida numa madrugada em que a polícia dizia perseguir criminosos em fuga. E não demorou muito para que, na madrugada de 11 de março, dia de aniversário de nossa Mãe, uma balaceira em que o alvo era o nosso lar e o pretexto era de que alguém andava com pedras arremessando contra telhados vizinhos, insinuando que fosse logo Mohamed, que comigo dormíamos nas noites quentes pantaneiras no quintal. Só se identificaram depois que nosso Pai revidara com cinco tiros de sua Smith & Wesson calibre 32, devidamente registrada, uma relíquia que o acompanhava desde seus tempos de mascate na Amazônia boliviana.

Eram os ‘hômi’, feito jagunços, fazendo tiro ao alvo com a certeza da impunidade: aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei. Consigna dos nefastos facínoras que, sem concurso e sob os piores critérios republicanos, lotavam as repartições policiais pelo país. Se anos anteriores as blitze da Polícia do Exército se demoraram a tentar entender como um modesto comerciante pudesse ter uma biblioteca imponente e se detivessem a tentar ler línguas estranhas, como árabe, francês, espanhol e inglês, doravante a guerra estava declarada, sob pretexto de nosso saudoso Pai ter encabeçado um movimento que pretendia apaziguar as noites violentas que ensanguentavam a ex-Feira Boliviana, como então era denominado aquele perímetro próximo à antiga estação ferroviária boliviana (e depois da Estação Ferroviária Internacional, a partir de 1968).

Embora pacata, Corumbá nos anos de chumbo experimentara uma, digamos, vida paralela, para a qual nosso sábio Pai sempre nos advertia: muito cuidado com as aparências, não se deixem encantar pelo dourado dos confetes. Creio que um ditado árabe. Daí porque todos nós éramos criteriosos com compromissos fora dos escolares (ou, no caso de Mohamed, universitários). Mesmo assim, a partir de então, não foram poucos os assédios provocativos da Veraneio da Polícia Civil quando ele se dirigia a pé ao Centro Pedagógico, que havia poucos anos se instalado na atual Unidade I do atual Campus Pantanal da UFMS. Na volta, sempre não faltava a carona de Amigos ou colegas de turma.

Esse assédio, dissimulado porque o então delegado regional de Polícia havia sido professor de Matemática meu e de Educação Moral e Cívica de minhas Irmãs e conhecia a Família, fazia com que Mohamed tomasse as suas precauções. Experiente, ele havia sido dirigente estudantil boliviano desde os tempos de secundarista. Aliás, ele e meu Irmão Muslim, que permanecera em Cochabamba para cursar Medicina na Universidad Mayor de San Simón, onde também foi destacado dirigente estudantil. Além de meu Pai, bastante politizado, os nossos Irmãos mais velhos exerciam naturalmente uma liderança que incomodava os ‘paus-mandados’ das ditaduras.

A simplicidade, espontânea, mas provocadora aos olhos da repressão velada e impiedosa existente no cosmopolita centro comercial que despertava a cobiça dos novos ‘donos do poder’, ex-udenistas em sua maioria, que tentavam ‘exorcizar’ os resquícios trabalhistas que predominavam no imaginário política da população corumbaense. Aqueles dez anos de existência do regime não foram fáceis para os gendarmes e títeres dos generecos de Brasília: Corumbá sempre fora um bastião da vanguarda política brasileira, onde senão os mais importantes sindicatos, os mais numerosos e mobilizados escreveram os primeiros passos da esquerda no Centro-Oeste brasileiro, tais como os dos marítimos, carroceiros, comerciários, estivadores, ferroviários, bancários, garções e trabalhadores da construção civil.

Até o mais popular e pujante time de futebol era ligado à categoria profissional que mais incomodava a ditadura, o Marítimo, então tetracampeão de futebol do Centro-Oeste do Brasil. Somente anos depois, por meio do agora saudoso e querido Amigo Professor Fausto Mato Grosso, soube que a resistência ao regime de 1964 em Corumbá foi a maior de Mato Grosso (uno à época), mais que em Cuiabá. Para a esquerda, que se unira contra o regime ditatorial, era uma questão de honra defender Corumbá das tentativas de cerceamento de toda espécie causada pelos paus-mandados da ditadura. Se a resistência mantinha seus ‘olhos’ atentos, imaginem os arapongas, muito bem pagos...

O querido Amigo, Seu Arlindo Diniz, Pai da Professora Denise Campos Diniz, me contara que seu Cunhado, Ibrahim Ismael (Irmão do conhecido comerciante Júlio Emílio Ismael, dono da ‘Casa Botafogo’, mais tarde presidente local da Arena por conta de seus vínculos com o deputado Armando Anache e seu padrinho político, senador Filinto Müller) fora um dos aprisionados no navio-prisão Guarapuava, do Serviço de Navegação Bacia do Prata S/A, estatal de navegação que substituiu o Loide Brasileiro nas águas interiores do Centro-Oeste. Com ele, o escritor e dono do emblemático Hotel Luzia (onde hoje é o Hotel Lincoln), saudoso Amigo Adolpho Jorge da Cunha (autor de uma trilogia sobre os poaieiros de Mato Grosso, que tive a honra de conhecer na Editora Joruês, em São Paulo, ao lado de José Paulo Netto, então editor de Internacional da Voz da Unidade), Seu Juquinha (Senhor Guinemer Gomes da Silva, Pai do Professor Gabriel Stálin Gomes da Silva), Senhor Pedro Lins (o vereador mais votado pelo trabalhismo) e mais tarde o Doutor Amorésio de Oliveira (advogado eleito deputado estadual, mas esquecido pelos Camaradas).

Cinquenta anos depois, as hordas de hienas odientas estão à espreita, depois da ressaca de um desgoverno de delirantes terraplanistas que fizeram, em poucos anos, com que o País retrocedesse 50 anos, ou mais. Talvez 100, pois o desserviço prestado em nome de falsa patriotada causou feridas profundos no tecido social pátrio, coisa que levará anos para se recompor. Enquanto isso, as pessoas que mantiveram sua lucidez incólumes ainda que sob intensa ameaça dos delirantes tentam remendar como podem os cacos de uma sociedade totalmente alvoroçada e com traumas indizíveis.

Parodiando o querido e saudoso Gonzaguinha (Luiz Gonzaga Junior, talentoso Filho do Rei do Baião, com quem pudemos compartilhar momentos memoráveis no início da década de 1980 graças aos Companheiros do movimento estudantil por três vezes), fico com a pureza da contemplação dos felinos, é a Vida, é a Vida... Véspera do cinquentenário do último aniversário de nosso Irmão Mohamed, dois gatinhos de minhas Irmãs, Manolito e Pietra, no dia 24 de janeiro de 2024, foram flagrados por nossa Irmã Wadia contemplando por quase meia hora o quadro que nosso saudoso Pai pediu a uma querida Amiga artista plástica chilena, María Estela Martínez, que fizesse com base em uma foto de meu Irmão e a foto do flamboyant que ele eternizou em suas crônicas feita pelo querido Amigo João de Souza Alvarez antes que ruísse pelo tempo. É a imagem, sem edição, que está no topo do texto.

Ahmad Schabib Hany

domingo, 21 de janeiro de 2024

PANTANAL: MENSAGEM ALVISSAREIRA

Pantanal: mensagem alvissareira

Colaborador de jornalão campo-grandense, economista com acuidade histórica é um dos mensageiros da redenção do Pantanal.

Nada como um dia depois do outro e uma noite no meio deles... Ninguém menos que um economista antenado que ainda não tive a honra de conhecer cravou um artigo de opinião na página 2 do porta-voz oficioso do establishment da precocemente senil ‘novacap’ na alvissareira terceira quarta-feira deste 2024.

Véspera do primeiro ano de eternização de um dos maiores defensores do cosmopolitismo corumbaense e do desenvolvimento sustentável e sustentado do Pantanal integrado -- o saudoso Seu Jorge José Katurchi, querido Amigo sempre presente --, o alvissareiro artigo de opinião do economista Benedito Rodrigues Costa (intitulado “Somente como estado o Pantanal será preservado”) é uma homenagem póstuma ao Paladino da Cidadania que por décadas lutou incansavelmente pelo soerguimento de Corumbá e região e que nos anos derradeiros sonhava com a reunificação do Pantanal Mato-grossense.

O autor do emblemático artigo tem outra pérola, publicada em setembro de 2018, sobre o coração do Pantanal e da América do Sul, “Um new look para Corumbá”. Foi o que pude constatar no portal do embolorado porta-voz da tristemente caquética ‘capetal’ de um estado que até hoje não disse a que veio (além de ter proporcionado três senadores arenistas para a nefasta sobrevida de um regime autoritário, consumiu milhões de dólares em projetos insanamente megalomaníacos, como um famigerado ‘pôlder de Ladário’, uma ‘transpantaneira’ inacabada, a dinheirama infindável despejada em intervenções caducas nas ‘bocas’ do Taquari e diversos ‘elefantes brancos’ inconclusos no sul do velho Mato Grosso, tido então como curral de Filinto Müller, Lúdio e Italívio Coelho, Cláudio e José Fragelli, Mendes Canale, Rachid Derzi e Pedro Pedrossian).

Há quem seja condescendente com o faraó de Miranda, Pedro Pedrossian. Nada pessoal, eu não. Foi ele o governador que em 1994, no apagar das luzes de seu derradeiro governo, atropelou a legislação e sem qualquer consulta prévia à população submeteu à Assembleia Legislativa um projeto de privatização decorrente de negociação com seu colega Jayme Campos, de Mato Grosso, para pôr fim a uma questão judicial pela posse da concessão das jazidas de ferro e manganês do Urucum, então pertencentes à Metamat S/A, criada em 1971 pelo então governador José Fragelli para gerir a extração das minas de Urucum, em Corumbá. Pelo acordo com o governo mato-grossense, a Metamat seria privatizada, bem como a Urucum Mineração S/A (UMSA), subsidiária sua, a toque de caixa.

Pedrossian venceu no Plenário do Legislativo, mas até históricos correligionários pedristas foram contrários -- os deputados Armando Anache e Marilene Coimbra, que pagaram caro pela ‘rebeldia’, não tendo sido reeleitos em suas bases eleitorais naquele ano. A história é longa. Rendeu uma ação popular encabeçada pelo falecido senador Fragelli, mas acabou abandonada por Mato Grosso do Sul. Muitos se locupletaram, outros ficaram ‘queimados’ perante a população, manipulados pelos poderosos dólares. O fato é que o Banco Vetor, na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, em agosto de 1994, fez um leilão em que o que tinha que ser privatizado acabou estatizado, pois a CVRD, estatal de economia mista, foi quem adquiriu as ações, claramente subavaliadas.

Mais ainda: uma conta não fechou, eis que Mato Grosso do Sul, onde a UMSA se encontrava, ficou com 40% do valor da venda das ações, enquanto Mato Grosso, sede da Metamat, ficou com 60% do valor auferido no leilão. A História ainda haverá de revelar muita coisa que é novidade num estado em que os jornalões são 100% ‘valentes’ -- ou ‘valetes’? --, ‘pero no mucho’. Quatro anos depois a CVRD foi leiloada pelo governo FHC por um terço do lucro obtido no primeiro ano de privatizada, e a ex-UMSA, vendida a preço infame, contribuiu muito para essas contas superavitárias.

Nos 46 anos de divisão territorial (44 anos de instalação do governo de MS), efetivamente, o que foi feito de importante para o Pantanal e sua população? À exceção das tímidas iniciativas protagonizadas por Wilson Barbosa Martins entre 1983 e 1998 (entre elas as bases de toda a legislação ambiental específica, a conclusão dos estudos do PCBAP e as balizas do Programa BID-Pantanal) e por seu sucessor, José Orcírio Miranda dos Santos (em especial a implantação de políticas de desenvolvimento integrado com o protagonismo das populações tradicionais e originárias por meio do Prove Pantanal e a reestruturação das metas constantes do Programa BID-Pantanal, interrompidas no governo sucedâneo), Mato Grosso do Sul, ao longo desse período, auferiu recursos por causa do Pantanal mas nada investiu de efetivo em nossa região.

É fundamental o reconhecimento do esforço, entre 1995 e 1998, dos governadores Dante de Oliveira e Wilson Martins (e de seus respectivos gestores das políticas ambientais), que permitiu uma certa sintonia entre as duas unidades da federação, mas por pouco tempo, além do valoroso empenho de pesquisadores das universidades instaladas nos dois estados. Na verdade, os estudos consolidados pelo PCBAP foi fruto do esforço hercúleo de inúmeros cientistas e, sobretudo, desses dois democratas combativos dos tempos da luta contra a ditadura, cuja determinação sensibilizou a burocracia federal e permitiu a possibilidade de um programa comum de desenvolvimento sustentável, o Programa BID-Pantanal.

Diferentemente de outros governadores, os aqui aludidos (com ressalva a certos assessores e secretários) têm um legado irrefutável de que a ciência e a política, quando à luz da democracia e do interesse comum, são capazes de levar progresso às populações tradicionais e originárias sem destruir as bases de sua própria existência. Até porque a ciência tem demonstrado nestas últimas décadas (a partir de 1972, quando da realização da Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, em Estocolmo), que só se pode chamar de desenvolvimento quando as transformações beneficiam a todos, e não apenas enriquecem alguns, geralmente ‘laranjas’ de corporações ou até quadrilhas transnacionais.

Pena que esse efêmero protagonismo cidadão tenha sido interrompido nos dois estados, em consonância com os inglórios temporais do autoritarismo que se avizinhava na segunda década do século XXI, em que um vice golpista e um inominável pateta causaram enorme prejuízo não só ao Estado Democrático de Direito, como ao erário nacional e, em especial, à sociedade civil brasileira. Porque nunca é demais reiterar que na democracia é o diverso, a pluralidade, o que legitima o interesse coletivo, não a alucinada e oportunista ‘luta do bem contra o mal’, própria das mentes totalitárias medievais revigoradas pelo fascismo.

Conhecedor da História de Mato Grosso (e Mato Grosso do Sul), o articulista adverte que não será fácil a reunificação do Pantanal Mato-grossense, ainda que desperte simpatia junto à opinião pública. Aliás, não foi fácil a luta dos velhos e aguerridos defensores do movimento divisionista que atravessou um século até concretizar o sonho de emancipar o sul do velho Mato Grosso uno, ainda que por vias nada ortodoxas: a conquista foi obtida mediante um conchavo com o general Ernesto Geisel, chefe de governo cujo regime ruía e precisava desesperadamente granjear maioria situacionista cada vez mais difícil.

Rodrigues da Costa presta um relevante serviço à cidadania pantaneira quando dá pistas de como ir construindo essa maioria no território do histórico Pantanal Mato-grossense. O articulista recorda que é no município onde o cidadão mora, e portanto é com base nesse apoio que o futuro movimento pela reunificação a ser liderado por Corumbá, como maior município pantaneiro, deve construir os alicerces de seu projeto. Ao que acrescento sem perder de vista sua História, suas diversas e ricas culturas e, sobretudo, seu protagonismo anterior e posterior à divisão de Mato Grosso.

É também importante registrar que só tive acesso a esse emblemático artigo graças a um Amigo-Irmão dos tempos da Sociedade dos Amigos da Cultura (1991), Segunda Semana Social Brasileira (1993), Comitê Pró-Cultura de Corumbá (1994) e Pacto Pela Cidadania (1994), o incansável Armando Carlos Arruda de Lacerda. Foi esse querido Amigo que trinta e um anos atrás me apresentou à Irmã Antônia Brioschi, então Coordenadora Diocesana de Pastoral Social, e agora se deu ao trabalho de enviar recorte do jornal com a sábia recomendação: “Convém não esquecer que as turfeiras que estão no centro das preocupações do mundo, em Davos 2024, encontram-se tão-somente em quatro municípios pantaneiros: Corumbá, Cáceres, Poconé e Barão de Melgaço.”

Alvíssaras, Pantanal! Um dia, ainda que distante, o cosmopolitismo e a ancestralidade hão de se tornar hegemônicos e sua população altiva e resiliente voltará a tomar as rédeas da História e ser detentora de seu generoso porvir. Obrigado, Benedito Rodrigues da Costa! Obrigado, Armando Carlos Arruda de Lacerda! A racionalidade e a sensatez com que esta temática sensível passa a ser focada são as bases da gesta libertária a emancipar o povo pantaneiro, sistematicamente preterido pela intelligentsia sul-mato-grossense.

E, obviamente, nosso modesto e sincero tributo aos baluartes do Pacto Pela Cidadania e movimentos congêneres nas saudosas memórias de Dom José Alves da Costa, Padre Pasquale Forin, Padre Ernesto Saksida, Seu Jorge José Katurchi, Doutor Hélio Sascher de Souza, Seu Augusto César Proença, Doutor Lécio Gomes de Souza, Doutor Salomão Baruki, Professor Dilermando Luiz Ferra, Seu Lincoln Gomes de Souza, Professora Heloísa Helena da Costa Urt e Jornalista Márcio Nunes Pereira, entre outro(a)s não menos importantes.

Ahmad Schabib Hany

sábado, 13 de janeiro de 2024

A VOLTA DAS OPORTUNIDADES

A volta das oportunidades

A despeito de toda a torcida contra pelas hordas seguidoras do inominável, em menos de 12 meses o Brasil conseguiu estar reinserido no concerto das nações. Porque conspirar e blefar não levam a nenhum lugar. É preciso somar e construir para fazer o povo sorrir, pois quem planta divisão só colhe desunião.

Em menos de 12 meses, o Brasil volta a brilhar no concerto das nações. Brilho com luz própria. Afirmativamente. Porque o reencontro do Brasil com a sua vocação histórica, de potência da paz e da justiça social (conforme constatado nas primeiras duas décadas do terceiro milênio), se concretizou com o reconhecimento pelas mais diferentes potências econômicas, muitas delas rivais entre si.

A estratégia do Presidente Lula, de não alinhar automaticamente o Brasil a nenhuma das áreas de influência dos diferentes grupos ideológicos que disputam a hegemonia do mundo pós-neoliberal (fruto do ‘consenso de Washington’, de 1989, quando o canastrão Ronald Reagan e Margareth Thatcher, tida como ‘dama de ferro’, conchavaram impor ao Planeta uma ‘nova ordem mundial’ depois do fim da ‘guerra fria’. Cínicos, os governos dos países mandões (sobretudo Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia) ignoraram convenções internacionais e cravaram o punhal no peito dos países em crescimento e suas populações.

Foi quando a ‘globalização’ fez a humanidade sofrer sob os desmandos do neocolonialismo e o que eles chamaram de ‘estado mínimo’. Mas que, desmascarada, viu-se que não passou de uma enorme farsa em que, sob o ‘novo’ paradigma, os direitos dos trabalhadores em todo o mundo foram simplesmente surrupiados e as conquistas sociais, como educação e saúde públicas, simplesmente sonegadas. O tal ‘neoliberalismo’, como bem disse o genial Leonel Brizola, era eufemismo (palavra bonita) para um novo modo de colonização, cheia de ardil e muita, muitíssima, farsa.

Entre 1990 e 1999 a sociedade civil sofreu um retrocesso medonho. Acintosamente os ‘donos do mundo’, sempre com seus serviçais prontos para ‘parir’ teorias ao gosto e sabor dos supremacistas de todos os naipes, difundiram duas mentiras levianas: ‘fim da história’, de um efemeramente célebre nipo-estadunidense chamado Yoshihiro Francis Fukuyama, e ‘choque de civilizações’, de um sionista que já partiu desta para a ‘melhor’, Samuel Phillips Huntington. Nem fim da História, nem choque de civilizações, o que move, desde sempre, a História é a luta de classes, gostem ou não os ‘capetalistas’...

Graças à resistência antiglobalitarista empreendida por diversas organizações feministas, sindicais, ambientais, científicas, de povos originários e de gênero e a gênios como Noam Chomsky, Milton Santos, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Ignacy Sachs, Michel Chossudovsky, Josep Fontana, Moniz Bandeira, Herbert de Souza, Dom Mauro Morelli e José Paulo Netto, entre outros, o Fórum Social Mundial foi realizado em Porto Alegre em 2001 sob o lema “Um outro mundo é possível”, em que o empresário Oded Grajew, o jornalista Bernard Cassen e o ativista Chico Whitaker se empenharam em sua realização. Embora esvaziadas, outras edições se realizaram em Porto Alegre e Belém (no Brasil) e em diferentes cidades de outros países até 2018, e com a eleição do inominável e a expansão das ideias fascistas pelo mundo afora temporariamente deixaram de ser realizadas.

O fato concreto é que a ideia motriz de que “um outro mundo é possível”, sem saques e guerras absurdas e uma série de atitudes coletivas de promoção da igualdade e da empatia até a construção de ‘pontes’ que reunifiquem a humanidade.

Reencontro com a História

As hordas peçonhentas que atentaram contra o Estado Democrático de Direito foram desmascaradas e derrotadas em flagrante, a despeito de toda a retaguarda poderosa que estava à espreita para dar o bote. Mais uma vez, a inteligência e a resistência democrática venceram e convenceram. Onde estão os e as ‘patriotas’ de meia pataca?

Estão por aí, onde sempre estiveram, à espreita. Não trabalham, pois são parasitas e outros são os que pensam por elas. Geralmente vêm ‘de fora’, como em 1964 (golpe de Estado monitorado, assessorado e financiado pelos EUA), 1967 (‘acidente aéreo’ que tirou Castelo Branco da liderança militar), 1968 (‘isquemia’ que eliminou a liderança de Costa e Silva), 1971 (articulação das ditaduras fascistas latino-americanas pós-golpe de Celich-Banzer na Bolívia), 1973 (vitória do fascismo latino-americano com Pinochet no Chile), 1974 (aperfeiçoamento da ação repressora articulada com o ‘Plano Condor’ no Cone Sul sob apoio estadunidense), 1977 (agora sob a bandeira dos Direitos Humanos, o império se apossa das bandeiras democráticas na América Latina), 1980 (novo retrocesso do império, com a vitória de Ronald Reagan nos EUA), 1989 (nova onde ‘democrática’ conservadora com a queda do Muro de Berlim e a dissolução do Pacto de Varsóvia), 1990 (neoliberalismo em marcha, com Collor, Menem e Fujimori), 1995 (FHC claudica ante os cânones do neo e da globalização), 2005 (contra-ataque conservador com o avassalador processo de livre construção de uma América Latina soberana), 2013 (a exemplo da ‘primavera árabe’ de 2010, a América Latina é atropelada por guerras híbridas digitais, inclusive o Brasil, com as ‘jornadas de julho de 2013), 2015 (preparação ostensiva do golpe contra a Dilma, com a explícita participação do governo estadunidense via Departamento de Justiça e a ‘Lava Jeito’), 2016 (golpe parlamentar travestido de ‘impeachment’ de Dilma Rousseff) e 2018 (condenação por meio de golpe judicial pela ‘Leva Jeito’ de Lula e, durante a campanha eleitoral, ostensiva intervenção contra Haddad).

Sim. Os deploráveis episódios que nos remeteram ao 8 de janeiro de 2023 precisam ser alvo de uma reflexão sincera e constante. Nunca foram ‘ato isolado e impensado’. Os seus mentores e cultores não só têm os maiores salários deste país, como ganharam muito em todos os golpes que protagonizaram. Insisto e os desafio: não trabalham, são parasitas e falsos moralistas. Durante os desgovernos do ‘brimo’ golpista e do inominável passaram o tempo todo vendo as formas de se locupletar, saqueando o erário com total despudor e acinte.

São os pretensos ‘donos da pátria’, ‘donos da terra’. Desde os tempos da colonização. Ou o generoso leitor acredita que a certeza da impunidade com que promoveram a arruaça foi fruto de sua ingenuidade?

É claro que padecem de uma iluminura intelectual. Seus neurônios são atrofiados, até por conta de sua vocação para servir aos seus amos e senhores sem esboçar qualquer reação. Mas têm total consciência de seus atos de lesa-pátria e lesa-humanidade cometidos com requintes de crueldade, sobretudo contra as populações originárias, tradicionais, quilombolas e de afrodescendentes por este país-continente.

É claro que os ‘paus mandados’, aqueles gaiatos que, como gado marcado, foram ‘salvar’ o Brasil em 8 de janeiro do ano passado, aqueles trouxas foram usados pelos covardes que não assumiram seu papel no roteiro.

Primeiro, porque o inominável sempre foi covarde. Basta ver as matérias da ‘Veja’ da década de 1980, além dos depoimentos de ex-colegas de caserna que o denunciam por ‘amarelar’ toda vez que se pretendeu um ‘Napoleão Patoaparte’, feito a personagem de Walt Disney nas revistas de histórias em quadrinho da décadas de 1970. Além de palerma, o inominável é preguiçoso e muito covarde e nunca assumiu suas alucinações.

Segundo, porque desde que Tancredo Neves cravou de 10 a 0 no espúrio Colégio Eleitoral do maldito regime de 1964, em 15 de janeiro de 1985, os generais Newton Cruz, Octávio Medeiros e Sylvio Frota trabalharam silenciosa e sorrateiramente ‘formando’ quadros para disseminar o golpismo do qual foram peças-chave durante a (mal)ditadura de 1964. Embora não fosse amigo do inominável (até porque este envergonha qualquer fascista autêntico), foi um dos que defenderam a sua não expulsão do Exército em 1987, fato que foi noticiado quando da homenagem ao general golpista Eduardo Vilas-Boas durante a posse do inominável (em janeiro de 2019) e a homenagem póstuma a Newton Cruz (em abril de 2022).

Nossa geração, que foi às ruas pelas liberdades democráticas desde 1977, mobilizou todo o País com as Diretas-Já em 1983/1984 e com Tancredo Presidente em 1984/1985 e se manteve mobilizada entre 1986 e 1988 por causa da Assembleia Nacional Constituinte, não pode se furtar de manter-se mobilizada em defesa do Estado Democrático de Direito que construímos com muito denodo. Entre 1989 e 2023 continuamos a sensibilizar, apoiar e monitorar as iniciativas de avanço no arcabouço jurídico que baliza o Brasil como grande protagonista de uma revolução silenciosa, por meio de políticas públicas sociais, culturais, educacionais, sanitárias, ambientais, econômicas e tecnocientíficas.

Antes de concluir, faço uma reparação: no texto anterior, por problemas involuntários de gravação de arquivo pelo Word, acabei por não deixar explícitos os nomes de Amigas e Amigos que faço questão de fazer constar como cidadãs e cidadãos inspiradores: Adriana Ferraz Santos, Adriana Lara de Souza, Alberto Feiden, Alexandre Belmonte, Álvaro da Silva Martinez, Amaury Gayoso, Amélia Zanella, André Pereira Hernandes, Andressa Santos Rebelo, Antônia Brioschi, Antônio Carlos Leite de Barros, Antônio Divino Monteiro, Antônio Divino Monteiro de Moraes, Arlindo Diniz, Aurélia Brioschi, Balbino Gonçalves de Oliveira, Benedito Rodrigues Brazil, Caren Bozzano Nunes, Celso Ricardo da Silva, Daniela Cristiane Ota, Débora Fernandes Calheiros, Delari Botega, Douglas Teixeira, Elemar Ebeling, Elígia Assad Pereira, Elisa Pinheiro de Freitas, Eunice das Neves Pereira Almeida, Evanildo Tadeu, Fabiana Figueiredo Costa, Fabiano Quadros Rückert, Fernando Sabra Caminada, Giselda de Paula Tedesco, Giliard da Silva Prado, Guto Josman, Helder Filipe Rocha Prior, Hélvio Rech, Iman Ale Hamie, Imaculada da Silva, Isabella Fernanda Ferreira, Ivaneide Terezinha Minozzo, João Bergamasco, João Carlos Pareja Urquidi, José Antônio Assad e Farias, José Antônio de Moura, José Francisco Zito Ferrari, José Raimundo Barros Bahia, Júlio César Mônaco, Laércio Honorato, Lairson Ruy Palermo, Lourival Monteiro de Moraes, Luiz Carlos Vargas, Luiz Carlos Rocha, Marcelo Fernandes, Marco Antonio Candia, Marco Antônio Ribeiro, Marco Aurélio Machado de Oliveira, Margarete Knock Mendonça, Margareth Urt Navarro, Maria da Silva Pereira, Maria Helena Burguês de Andrade, Maria Inêz Arruda, Marilza Pinheiro, Marilza Romero de Aquino, Mário César Fonseca, Mario Luiz Fernandes, Mário Sérgio Lombardi Kassar, Maurício Lopo Vieira, Milton Jaques Zanotto, Mirane Santos Costa, Moacir Lacerda, Nathalia Monseff Junqueira, Nelson Fuzeta Péres, Ney Fuzeta Péres, Obeltran Martins Navarro, Ocimar Santiago, Patrícia Bedotti Péres, Renata Papa de Almeida, Riad Ale Hamie, Ricardo Pareja Urquidi, Rivaldo Venâncio, Roberto Hindi, Rosália de Fátima Pereira Diniz, Sebastião da Silva Martinez, Sérgio da Silva Pereira, Socorro de Maria Pinho, Suzete dos Santos Bezerra, Thiago da Silva Godoy, Vera de Souza, Waldson Luciano Corrêa Diniz, Wanessa Rodrigues Pereira e Zil Ribeiro.

Ahmad Schabib Hany

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

COSMOPOLITISMO SECULAR

Cosmopolitismo secular

100 anos atrás, o cosmopolitismo corumbaense atingia seu ápice. Dois anos depois da Semana de Arte Moderna, de São Paulo, o entreposto comercial das águas interiores que ganhara projeção no pós-guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai vivia os momentos de glória que precedem à finitude trágica dos ciclos econômicos capitalistas. Mas um século depois, a despeito do provincianismo acentuado com a divisão de Mato Grosso, o cosmopolitismo permanece incólume, imponente, para desespero da capitalzinha de meia pataca, antro do neofascismo do abominável...

Em minha primeira reflexão escrita (e pretensamente compartilhada com Você, paciente leitor/leitora que me honra com sua leitura crítica e inteligente) de 2024, não poderia deixar de homenagear Amigo(a)s cujas pegadas deixaram marcas indeléveis na memória daqueles -- como os Amigo(a)s presentes e incansáveis Adnan Hamad Haymour, Adolfo Rondon Gamarra, Aguinaldo Rodrigues, Aidê Arruda Varela, Aleixo Paraguassú Netto, Alle Yunes Solominy Neto, Alexandre Gonçalves dos Santos, Amarílio Ferreira Junior, Ana Claudia Salomão da Silva, Aníbal Carlos Monzón, Anísio Guilherme da Fonseca, Armando Carlos Arruda de Lacerda, Arturo Castedo Ardaya, Bassem Hussein, Carmelino de Arruda Rezende, Carmen Chamoun Calazans, Celso Cordeiro, Cláudia de Araújo Lima, Cleonice de Souza Bueno, Cristiane Sant’Anna de Oliveira, Dary Esteves Jr., Denise Campos Diniz, Edenir de Paulo, Edson Henrique Figueiredo de Moraes, Edy Assis de Barros, Elaine Gomes Ferro, Elenir Machado de Mello, Eliseu Campos, Estela Márcia Rondina Scandola, Eva Granha de Carvalho, Fábio Issa Ahmad, Geraldo Alves Damasceno Jr., Gilberto Luiz Alves, Gisela Angelina Levatti Alexandre, Hélia Costa, Herman Herrera Valle, Iara Valentina Torres de Souza, Irlene Maria dos Santos Bareiro, Jalila Safa, João Bortolanza, João de Souza Alvarez, Joana da Costa Lima, Joel de Carvalho Moreira, Joel de Souza, Johny Henry Vaca Arza, Johonie Midon de Mello, Jonas Luna de Lima, José Carlos Françolin, José Carlos Ziliani, José Eduardo Maldonado Katurchi, José Luís Finocchio, José Luiz Peixoto, Júlio Xavier Galharte, Juvenal Ávila de Oliveira, Kati Eliana Caetano, Lejeune Mirhan Xavier de Carvalho, Lígia Maria Baruki e Mello, Lindivalda Gonçalves dos Santos, Loide Bueno de Souza, Lúcia da Silva Santos, Lúcia Salsa Corrêa, Luiz Antônio Torres Taques, Luiz Carlos Katurchi, Luz Marina Cavalcante da Silva, Mara Leslie do Amaral, Marcelo Moura, Márcia Ivana do Amaral, Margareth Cabral Parabá, Margareth Matas Pereira, Maria Angélica de Oliveira Bezerra, Maria Augusta dos Santos Rahe Pereira, Maria Cristina Atayde, Maria de Fátima Garcia da Silva, Mariliz Romero de Aquino, Marisa Bittar, Marlene Terezinha Mourão, Masao Uetanabaro, Munther Suleiman Safa, Najeh Abdel Hamid Mohd Mustafa, Nasser Safa Ahmad, Nelson Abnur Urt, Nely Safa, Paulo da Costa Lima, Paulo Marcos Esselin, Paulo Matas Pereira, Paulo Roberto Cimó Queiroz, Raul Nunes Delgado, Raul Valle Herrera, Regina Marchesini Alves, Roque Bareiro, Rosa das Graças Nunes Delgado, Rosângela das Graças Ruas, Rosely Rios Midon, Semy Alves Ferraz, Sílvia Maria da Costa Nicola, Simone Yara Benites da Silva, Soely Ivacquia de Oliveira, Solange Gomes Galeano, Suzana Maia, Tânia Nozieres de Santana, Tereza Cristina Katurchi Exner, Tito Carlos Machado de Oliveira, Valmir Batista Corrêa, Yahya Mohamad Omar, Zacaria Yahya Omar, e, óbvio, todas as minhas Irmãs e meu Irmão, Sobrinhas e Sobrinhos e Filha e Filho -- que teimam resistir a tempos tão adversos e que me levam a não desistir dessa luta inesgotável.

Quem conhece a história (sobretudo recente) de uma região ou de um povo dificilmente pode perder-se em firulas de narrativas estonteantes, geralmente paridas em agências de propaganda contratadas por governantes autoproclamados ‘visionários’. Mato Grosso do Sul é vítima disso desde antes de sua criação, herança que é de uma ditadura militar impune que, para prorrogar seus dias de sobrevida, não só fechou (em abril de 1977) o Congresso Nacional, cassou os líderes oposicionistas e pôs ‘em recesso’ o Supremo Tribunal Federal (STF), na maior cara-de-pau. A alegação era de que interesses da Segurança Nacional (sic) impunham tais medidas, nitidamente casuísticas e autoritárias. É o tal ‘Pacote de Abril’, às vésperas da Semana Santa daquele ano. Entre as mais importantes alterações feitas ao arcabouço jurídico brasileiro, constam o nefasto instituto do senador ‘indireto’ (ou biônico, porque sem votos) e a adoção da sublegenda para permitir que os candidatos a senador da Arena, que estava dividida, juntassem os votos para derrotar os candidatos do MDB (oposição à ditadura). Por essa razão, aliás, o estado do Rio de Janeiro e a Guanabara (antigo Distrito Federal) foram fundidos no atual Rio de Janeiro (em 1975), uma das causas do caos administrativo existente hoje, bem como Mato Grosso foi dividido (em 1977): enquanto o Rio de Janeiro perdia três senadores da oposição, Mato Grosso do Sul ganhava três senadores para a Arena).

Amigos queridos, algumas décadas mais velhos que eu -- como os saudosos Seu Jorge José Katurchi, Seu Augusto César Proença, Padre Ernesto Saksida e Dilermando Luiz Ferra, para nomear alguns --, me ajudaram muito para compreender melhor a peculiaridade da sociedade corumbaense, ou melhor, o cosmopolitismo vicejante, a despeito do século decorrido quando de seu ápice. Como uma cidade do interior, empobrecida pela ausência de políticas consistentes de desenvolvimento sustentável e sustentado (quadro que se agravou desde que Campo Grande passou a ser a capital da nova unidade da federação). E nesse particular, não há como dizer que isso seja algo deliberado. Não é. A questão central baseia-se no provincianismo predominante na ‘Nova Cap’, Campo Grande: como uma sociedade endógena, ensimesmada, sem rios navegáveis internacionais, poderia ter os horizontes amplos, uma cosmovisão de vanguarda. É uma questão histórica, portanto, decorrente do próprio processo histórico. Enquanto isso, Corumbá e Ladário amargam a sua condição de caudatárias de projetos descolados da realidade pantaneira.

Em artigo recente, publicado no Correio de Corumbá, o Amigo Armando Carlos Arruda de Lacerda faz uma oportuna reflexão alusiva ao (palavras minhas) projeto megalomaníaco agora batizado de ‘RILA’ (antes era ‘Rota Bioceânica’). Um desperdício de dinheiro público quando existem ferrovia, rodovia e rio navegável em pleno funcionamento, precisando, isto sim, de obras de recuperação, até por causa do excesso de peso dos diferentes veículos usados para o transporte de commodities extraídas do coração do Pantanal e da América do Sul. A ponte de Morrinho, no Rio Paraguai, em Corumbá, construída durante o Governo de José Orcírio Miranda dos Santos, pede socorro, mas as autoridades estaduais, as mesmas que vêm fazendo das tripas coração para concluir um projeto caríssimo e, se não houver a adoção de um conjunto de medidas para dinamizar essa futura via, será mais um elefante branco para ser visto pela população de Porto Murtinho, lá debaixo...

Ora, qual a menor distância entre dois pontos? A linha reta, óbvio! Empresários e políticos de horizontes estreitos não se dão conta do aumento da distância ao dar a volta para não passar pela Bolívia. Gostem ou não, a Bolívia não só é uma velha parceira (desde antes da construção da ferrovia Corumbá -- Santa Cruz de la Sierra), basta estudar um pouco de História, Economia e Geopolítica latino-americana. O problema é que os autoproclamados paladinos da ‘RILA’ estão ávidos de mostrar serviço, ou melhor, obras às suas paróquias, que não se dão conta dos absurdos que estão fazendo.

Morei, estudei, trabalhei e pesquisei entre dezembro de 1978 e outubro de 1984 em Campo Grande e -- à exceção de cidadãos brilhantes como Plínio Barbosa Martins, Wilson Barbosa Martins, Wilson Fadul, Ricardo Brandão, Alberto Neder, Fausto Matto Grosso, Celso Costa, Eudes Costa, Carmelino Rezende, Aleixo Paraguassú Netto, Leonardo Nunes da Cunha, José Otávio Guizzo, Roberto Moaccar Orro, Sérgio Manoel da Cruz, Mário Corrêa Albernaz, Augusto Assis Filho, Onofre da Costa Lima Filho, Manoel Sebastião da Costa Lima, Maria Augusta Rahe Pereira, Paulo Corrêa da Costa, José Rodrigues dos Santos, Marcelo Barbosa Martins, José Márcio Licerre, Mário Ramires, Yone Ribeiro Orro, Yara Maria Blum Penteado, Paulo Eduardo Cabral, Berto Curvo, Marília Leite, Margarida Gomes Marques, Luiz Eduardo de Resende Vale, Paulo Roberto Cimó Queiroz, Marisa Bittar, Amarílio Ferreira Jr., José Carlos Ziliani, Tito Carlos Machado de Oliveira, Mário Sérgio Maciel Lorenzetto, Flávio Teixeira, Lúcia da Silva Santos, Caio Sobral e Paulo Marcos Esselin, entre outro(a)s -- constatei um elevado número de pessoas profundamente provincianas (sem qualquer preconceito: uma cosmovisão bem aquém do horizonte que poderia se abrir para a nova unidade da federação).

Quando decidi retornar a Corumbá, em fins de 1984, como primeiro correspondente com carteira assinada, devidamente assalariado, do jornalão que alega ter a maior tiragem do estado (outra coisa é ter, de fato, essa circulação, sobretudo em tempos de plataformas multimídia), muito(a)s Amigo(a)s ficaram, no mínimo, perplexos. Alguns questionaram a minha decisão, mas não entenderam, pois achavam retrocesso. Passadas quatro décadas, praticamente, tomo a liberdade de justificar com este modesto texto, cuja síntese tenta justificar, senão explicar, aquela decisão: o cosmopolitismo, ainda presente, de Corumbá, a despeito do abandono ostensivo do novo estado, fez com que não titubeasse. Não por acaso, o entreposto comercial que propiciou uma miscigenação intensa e um desabrochar cosmopolita no âmbito das culturas e das artes sofreu duras perdas durante os primeiros quatro anos de Mato Grosso do Sul.

Somente durante o primeiro mandato do Governador Wilson Barbosa Martins e dos dois mandatos do Governador José Orcírio Miranda dos Santos é que todo o ‘interior’ do estado conseguiu uma tênue reconquista de seu potencial cultural. Corumbá (e Ladário) pôde (puderam) irradiar sua exuberância cosmopolita por meio de diferentes eixos de progresso e reafirmação de seu protagonismo cidadão. O lamentável é que esse processo teve apenas dez anos de esplendor, o que, para efeitos históricos, não quer dizer muito. Mas é o que foi possível. E fica o recado: se a ‘intelligentsia’ de Campo Grande não permitir que as diversas regiões do estado possam resgatar seu tempo histórico, o Pantanal vai retomar o seu vínculo cultural com a parte que permaneceu no território de Mato Grosso. Aliás, um direito inalienável e histórico. Só depende da postura excludente e gananciosa da capital, que esqueceu rapidamente a dureza de ser ‘interior’ e passou a se comportar ainda mais ávida que a Cuiabá de outrora.

Ahmad Schabib Hany