segunda-feira, 13 de julho de 2020

DONA LIANE, SINÔNIMO DE DIGNIDADE...


Dona Liane, sinônimo de dignidade...

A disseminação virulenta do ódio e da intolerância como pano de fundo do assassinato com requintes de crueldade de uma incansável mulher que trabalhou com honradez e dignidade até as horas derradeiras de sua exemplar existência.

Por meio de um telefonema emocionado do Amigo Augusto Antelo, sogro de um parente da vítima, é que recebo a trágica notícia do cruel assassinato de Dona Liane Arruda, a incansável proprietária da Espeteria Darmanceff, há décadas referência de frango assado em Corumbá, e nos últimos anos concorrido “point” para os degustadores do bom espeto pantaneiro.

Como num filme, me reportei ao final da década de 1980, quando vivíamos ainda o caos na economia provocado pelos sabotadores do Plano Cruzado (1986). No mesmo endereço em que se encontra hoje a espeteria funcionava havia décadas o armazém Darmanceff, do ex-sogro de Dona Liane, então recém-casada com Estêvão, para onde fui comprar caixas de água mineral em garrafas pet, pois as distribuidoras de bebidas se recusavam a vender o produto, com preço controlado, ainda engarrafado nas antigas embalagens retornáveis de vidro.

Fui atendido, com a gentileza e educação que marcaram sua existência, pela jovem nora de Seu Darmanceff, a quem sempre fiz questão de chamar de senhora. Os anos passaram mas permaneceram a cordialidade e a discrição, creio que unânimes entre os que tiveram a sorte de haver encontrado uma pessoa que, sem exagero, dignifica a espécie humana, sobretudo nestes mesquinhos tempos de tanto ódio, intolerância e preconceito.

Ao retornar de Campo Grande, em um período em que trabalhei por lá, surpreendi-me quando soube da separação do casal, mas ela continuou firme no batente, cuidando dos filhos, ainda adolescentes. Pouco antes do isolamento social, fiz contato telefônico para que reservasse um frango assado e fui pegá-lo, mas por conta de um contratempo demorei um bocado. Chegando lá, ao pegar minha compra pedi desculpas, ao que ela, com a gentileza que lhe era peculiar, me respondeu que não houve incômodo, pois era a hora da faxina.

Como toda pessoa bem sucedida que lida com produção de alimentos, Dona Liane era generosa, e se demonstrava realizada com o que fazia, com amor e dedicação. Por tudo isso, não é compreensível como alguém, em sã consciência, possa ter praticado um crime cruel, torpe e injustificável. Seja latrocínio ou feminicídio, que cabe à polícia desvendar, não há palavras para definir tamanha aberração, desumanidade e sordidez.

Aliás, desde a eleição e posse daquele que se diz presidente mas não faz mais nada que tuitar o tempo todo, os índices de violência com requintes de crueldade aumentaram assustadoramente. Não só pela sensação de impunidade, mas pela apologia ao crime com que os deslumbrados que, por vias indizíveis, alçaram ao poder não para governar, mas para destruir o Estado Democrático de Direito que nossas gerações levaram mais de duas décadas para conquistar milimetricamente.

Embora não haja relação direta, é óbvio que este contexto de bizarrices anacrônicas dignas da imaginação do saudoso Dias Gomes e sua imortal Sucupira (em “O Bem-Amado”, dos idos da década de 1970) tem contribuído para o desplante de mentes obtusas e pervertidas, ávidas de sangue, entre os pretensos justiceiros, em sua maioria praticantes de um fundamentalismo religioso que em nada segue o legado de Cristo, de oferecer a outra face em vez de praticar a lei de Talião, do olho por olho, dente por dente.

Descanse em paz, Dona Liane, e que seu exemplar legado de integridade, honradez e dignidade permaneça vívido e palpitante nos corações, mentes e atitudes destas e próximas gerações, encorajando mulheres de garra a continuar as conquistas infindáveis por uma sociedade melhor, em que a mulher não só seja protagonista, mas respeitada e efetivamente protegida, material e humanamente.

Ahmad Schabib Hany