sexta-feira, 30 de junho de 2023

ENTRE O TITANIC E O TITAN

Entre o Titanic e o Titan

Até parece coisa de tantãs: alguns homens poderosos gastam milhões (senão bilhões) de dólares para fazer turismo surreal nas profundezas do oceano ou no espaço sideral enquanto milhões (senão bilhões) de seres humanos travam luta sem fim sem saber se conseguirão sobreviver àquele dia.

Entre 1912 e 2023 não se passaram ‘apenas’ 111 anos, mas aconteceram inúmeros fatos, transformações indescritíveis -- além, obviamente, das que puderam ter sido registradas pela pretensa inteligência humana -- que mudaram os destinos da humanidade.

No alvorecer do século passado, quando da tragédia daquela que seria a mais eloquente prova da capacidade inventiva humana, o mundo despertava para significativas mudanças do cotidiano, mas também as maiores tragédias que abateram a humanidade causadas por iniciativas humanas.

Os primeiros veículos mais pesados que o ar, isto é, os aviões; as primeiras transmissões radiofônicas; os primeiros carros, caminhões, jardineiras, utilitários; os primeiros trens elétricos; as primeiras usinas hidrelétricas; os primeiros antibióticos, as primeiras vacinas para epidemias temidas, como poliomielite, sarampo, tétano, coqueluche e meningite; as primeiras geladeiras, rádio receptores, toca-discos, alto-falantes; os primeiros periódicos ilustrados, impressos em cores; as primeiras transmissões ao vivo em cadeia mundial; as primeiras fotografias com imagem reproduzida à distância pelo rádio ou por telefone (radiofoto ou telefoto); os primeiros discos as primeiras produções cinematográficas; os primeiros transplantes de coração, rins, córneas e outros órgãos humanos; os primeiros registros da história do processo de urbanização (aumento da população urbana e redução da população rural); os primeiros grandes eventos artísticos, esportivos e de celebrações; a Declaração dos Direitos Humanos da ONU; a Declaração dos Direitos da Criança; a Declaração dos Direitos da Mulher; a Declaração dos Direitos dos Povos Originários; a Carta da ONU contra o Racismo, Contra a Fome, a Agenda 21, a Carta da Terra e tratados sobre o clima e o meio ambiente,  etc.

O chamado ‘período entre guerras’ (de 1914 a 1945) teve como principal fator propulsor a crash, ou queda da Bolsa de Valores de Nova York em 1929, que não poupou vítimas em todo o mundo. A debacle, ou desastre, teve um impacto tão grande quanto o naufrágio do Titanic: centenas de milhares de empresários de todos os tamanhos não resistiram e foram a pique, até porque os governos nacionais não conheciam mecanismos de mitigação para atenuar a repercussão contra a quebra do sistema financeiro internacional.

Nessa época, o mundo era constituído de diversos impérios coloniais -- britânico, francês, belga, japonês, russo e turco-otomano, estes dois últimos derrocados no final da Primeira Guerra Mundial --, e as revoluções Bolchevique, Indiana e Chinesa (que deram origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, República da Índia e República Popular da China, desde a primeira metade do século passado) começava a repercutir por todos os continentes, em especial nas lutas dos movimentos de emancipação nacional na Ásia (Síria, Iêmen, Palestina, Líbano, Iraque, Irã, Coreia e Indochina, sobretudo Vietnã e Camboja), África (África do Sul, Rodésia, Botsuana, Egito, Argélia, Líbia, Tunísia, Tanzânia, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique) e América (Cuba, Panamá, Porto Rico, Nicarágua, Costa Rica, Haiti, El Salvador, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia, Chile, Venezuela, Uruguai e Equador).

Ainda que timidamente, o Brasil deu sua contribuição nos anos 1920 a 1970, mas as ditaduras do estado novo e do regime de 1964, ambas de inspiração fascista, causaram retrocessos (como o experimentado entre 2016 e 2022). Além do reconhecimento de brasileiros como Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, os nomes de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva são vistos com muito respeito, ao lado de Paulo Freire, Oscar Niemayer, Josué de Castro, Milton Santos, Joel Rufino dos Santos, Darcy Ribeiro, Edson Arantes do Nascimento (Pelé), Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Wega Nery, Lígia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz, Cecília Meirelles, Florinda Bolkan, Maurício de Sousa etc.

Mas o pior é que no rastro da crise econômica nasceu a cultura do nacionalismo extremista e a intolerância perniciosa. Na Alemanha e na Itália, os dois Estados tardios a se constituir na Europa, o nazismo e o fascismo delirantes e perversos, são pivô de tragédias da primeira metade do século que deveria ser apenas de bem-estar para todos os habitantes do globo terrestre. Campos de extermínio, Estado policial, perseguições perversas com requintes de crueldade, ufanismo deslavado e delírios supremacistas, armas de destruição em massa teleguiadas. Nos Estados Unidos, a obsessão da minoria puritana branca por dominar o mundo, valendo-se de desertores nazistas, como Werner Von Braun e associados, e assim copiar a nefasta bomba atômica que os nazistas não tiveram coragem nem tempo para despejar sobre seus inimigos durante a guerra, mas os ‘democratas’ estadunidenses, sim.

Por certo, o que mais tenha marcado o século XX, também século da ascensão e colapso de experiências revolucionárias socialistas (mas também de tragédias protagonizadas pelo nazifascismo, como o extermínio, em maior ou menor escala, de Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Stroessner, Medici, Banzer, Pinochet, Videla, Bermúdez e García Meza) tenha sido o desenvolvimento tecnológico, mas restrito a uma reduzida parcela da população. O bem estar proporcionado pelo progresso da ciência e dos valores civilizatórios foi aos poucos se distanciando tanto das amplas maiorias da população humana e o que deveria ser para todos acabou sendo privilégio para uns poucos.

Até a democracia acabou dando lugar à plutocracia. A Europa pretensamente civilizada foi capaz de protagonizar, além dos campos nazistas, as experiências mais indignantes de tráfico de seres humanos para fins de trabalho escravo e de exploração-opressão dos povos originários (o comércio escravista e o saque colonizador que deu às elites ocidentais muito dinheiro e poder ao preço de genocídio, etnocídio e extermínio cultural insólito). Quando a União Soviética chegou ao colapso e os países do Pacto de Varsóvia dissolveram sua união depois de vencer a Alemanha nazista e a Itália fascista, numa espúria expansão da OTAN, como que vivêssemos ainda na guerra fria, imprimiram sua vocação hegemonista colonial para manter todos os povos e nações ‘inferiores’ a serviço deles.

A humanidade, contudo, é generosa tal como a natureza, e sempre dá mais uma chance aos néscios, arrogantes e soberbos. A despeito da tirania impregnada em todos os povos submetidos ao seu jugo, a Europa que depois de viver na miséria durante a Idade Média e desconhecer o legado dos povos que lhe compartilharam o conhecimento da Idade Clássica em bandeja de ouro e as riquezas literalmente de ouro e prata, além dos alimentos que saciaram a fome milenar de suas nações, teima em perpetuar a tirania e a opulência.

O tristemente célebre transatlântico Titanic e a tragédia que interrompeu vidas e sonhos de centenas de seres humanos de diferentes classes sociais, nacionalidades, convicções e credos em 1912 e o trágico fim da tripulação do submersível Titan, dias atrás, perto do que resta daquilo que um dia foi o ‘maior barco de passageiros construído pelo homem’ têm os mesmos contornos de delírio, pretensão e imbecilidade que dominam certa parcela da população humana e sua insana obsessão por ‘dominar o mundo’. Mas a humanidade é maior que a insanidade desses seres soberbos, e a sonhada emancipação de nossa espécie (e das demais, igualmente submetidas ao seu jugo) haverá de iluminar o porvir de nossos descendentes.

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 20 de junho de 2023

CONTRA FATOS NÃO HÁ ARGUMENTOS

Contra fatos não há argumentos

Ainda que os presidentes da Câmara dos Deputados e do Banco Central teimem em atravancar a volta do Brasil ao mundo real, fatos recentes sinalizam a consistência e inexorabilidade desse processo em construção.

“Contra fatos não há argumentos.” Essa frase me remete, com uma dose de saudade, às falas (verdadeiras aulas) de Amigos muito queridos, como o Doutor Carmelino de Arruda Rezende, ex-presidente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul. Mais que competente profissional, trata-se de um Amigo querido que, em minha juventude, nos anos de chumbo, foi um verdadeiro Mestre em Cidadania: em fins da década de 1970 (depois da implosão da candidatura vitoriosa do Doutor Plínio Barbosa Martins ao Senado Federal, em 1978, fraudada pela invencionice da sublegenda imposta pelo Pacote de Abril, a fim de dar sobrevida ao regime de 1964), a posse do Doutor Wilson Barbosa Martins à presidência da recém-criada OAB-MS e o lançamento de memoráveis campanhas pela democratização do país, ora em prol da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte e a campanha inesquecível das Diretas-Já.

A frase ganha ainda maior relevância nestes tempos de pós-verdade (ou mistificação?), quando defensores do indefensável se acham no direito de impor uma absurda disputa de narrativas, mas o que está por trás é a acintosa negação da realidade. É imperativo informar às novas gerações que a disseminação de fakenews, por meio das corporações noticiosas pertencentes a poucas famiglias, é de sua responsabilidade, eis que os ‘bons moços’ surrupiaram cinicamente o manual de Joseph Goebbels (aquele que ensinou que a repetição de uma mentira tantas vezes acaba tornando-a ‘verdade’ perante os mal, ou melhor, desinformados) e o adotaram nas emboloradas redações pelo mundo afora, e depois da guerra fria a transformaram em dogma, presentes nos gabinetes acarpetados e, sobretudo, nos templos opulentos em que parasitas manipuladores da fé espalham mentiras e ódio, impunemente.

Mas vamos aos fatos. Apesar da torcida contra, as taxas de inflação estão baixando como consequência das iniciativas da equipe econômica do Presidente Lula. Ato contínuo, a pontuação de credibilidade do Brasil sobe um ‘degrau’, e depois de sete anos (justo os anos de má gestão dos golpistas!) retorna à categoria de confiança, para desgosto dos abutres do mer(d)cado e seus paus-mandados Roberto Campos Neto e Artur Lira (ou seria Eduardo Cunha Junior?). E as estatísticas referendam o retorno da confiança popular na gestão pública, com a adesão de mais de 600 mil ‘desalentados’ (pessoas desempregadas que já haviam perdido a vontade de procurar emprego), que pela primeira vez desde que a turma de Romero Jucá, Eduardo Cunha, Michel Temer e Moreira Franco deram o golpe em Dilma Rousseff e desmontaram todas as políticas de inclusão econômica, social e educacional.

Isso não é tudo: a política de distribuição de renda por meio de conjunto consistente de programas de habitação (a geração de renda com a oferta de empregos na construção e a inclusão habitacional em um país em que rentistas, verdadeiros latifundiários urbanos, mantêm nas alturas os valores dos aluguéis e loteamentos nas periferias das cidades), de qualificação e requalificação profissional, revigoramento do financiamento dos cursos universitários e técnicos de níveis médio e superior, além do fortalecimento de linhas de crédito ao setor produtivo, seja ele urbano ou rural, do micro ao macro, do produtor familiar às corporações industriais.

Que ironia... Enquanto o palerma inominável passou quatro anos no ócio (que é a oficina do diabo), protegendo milicianos e todo tipo de contraventores e fora de lei ou em suas matociatas de meia pataca, em menos de seis meses Lula não só desinfeta o serviço público civil e militar, livrando-nos do fascismo e todas as suas variantes, como revigora a estrutura estatal abrindo vagas nas carreiras de Estado, o que ajuda a acabar com o clientelismo coronelista (que nos dois desgovernos anteriores, do brimo e do inominável, até graúdos de pijama ganharam suas boquinhas, tirando a oportunidade dos jovens e de carreira assegurarem seu ganha-pão).

Deixemos de hipocrisia. Patriotismo não é bravata, e governar não é exclusividade de uma classe ou categoria profissional (ou até denominação religiosa, como tentaram fazer acreditar por meio de arremedos de sacerdotes com trejeitos de maus samaritanos). Em vez de promover a discórdia, açodar as desavenças, masturbar os endiabrados e fornicar os empedernidos, é hora de trabalhar, de arrumar a casa, de retomar o desenvolvimento de que o Brasil precisa, e merece. Até mesmo os ditos ‘empresários verde-amarelos’ já caíram na real e se deram conta de que só colhe quem semeia, e de quem semeia vento só pode colher tempestade.

Passou a hora da prevaricação, procrastinação, prostração e putrefação. Quem tiver contas com a Justiça, que as resolva com quem de direito. O governo tem que trabalhar, até porque não tem por missão controlar a consciência e o óio cego de ninguém, e muito menos as preferências libidinosas ou afetivas de quem quer que seja. Passaram seis anos de orgia, vilipendiando o patrimônio nacional, entregando as riquezas a verdadeiros bandidos (ou são o que os ‘madeireiros’, ‘garimpeiros’, ‘pescadores’, ‘fazendeiros’, grileiros, milicianos, traficantes, contrabandistas, sonegadores e jagunços que tiveram carta-branca para fazer de tudo, menos cumprir a lei?).

Sem arminhas, sem fakenews, sem terrorismo, sem ameaças, sem canalhice. A hora é de arregaçar as mangas e, com responsabilidade política, social e fiscal, dar passos certos na reconstrução nacional para que as atuais e as futuras gerações possam viver com dignidade, civilidade, harmonia e, sobretudo, paz o tempo que tiverem que existir sobre a face da Terra. Não é mais possível ver jovens na flor da idade, mulheres e pessoas que fazem opção de gênero, indígenas e afrodescendentes e moradores das periferias sendo vítimas da violência fomentada e retroalimentada pelo ódio e pela impunidade. A Vida é princípio de direitos e a ninguém cabe poder sobre ela, ainda mais se se declarar ‘de fé’.

Ahmad Schabib Hany

quinta-feira, 15 de junho de 2023

CATORZE ANOS DE SAUDADE DA PEREGRINA DE DOCE OLHAR

Catorze anos de saudade da Peregrina de doce olhar

Neste 15 de junho completam-se 14 anos de saudade infinita da Peregrina de doce olhar. Uma ausência doída e eterna, em que o tempo apenas atenua o que é impossível de apagar. Em sua homenagem, republico a homenagem feita há quatro anos.

Dona Yoya, em seus dez anos de eternidade

15 de junho de 2009, seis horas e cinquenta minutos, em um dos apartamentos do hospital da Unimed de Campo Grande. Dona Yoya, nossa Mãe -- progenitora de nada menos que nove filhos vivos: seis mulheres e três homens --, dá seu último suspiro sobre o leito em que permaneceu por aproximadamente uma semana, da mesma forma como viveu, estoica e discretamente. Uma mulher que não se valeu de sua prole para justificar qualquer acovardamento: ao contrário, soube lutar com toda a dignidade e coragem, até para despertar entre seus filhos a altivez com que pautou sua Vida.

A Irmã que a assistiu diuturnamente, por ser médica e bastante resiliente, disse que esboçara um discreto sorriso, num misto de gratidão e alívio. Talvez fosse o seu modo de se despedir e ao mesmo tempo induzir estímulo para continuar a luta. Tanto para Dona Yoya como para Seu Schabib, nosso Pai, a Vida foi um chamado à resistência, à luta, não para abocanhar vantagens ou conquistas fáceis, mas para, com dignidade e ética, assumir grandes causas sem abandonar as obrigações de Pais responsáveis (desses com letra maiúscula).

Nascida em 11 de março de 1926, em plena Amazônia boliviana (San Joaquín de las Aguas Dulces, no Departamento de Beni), Wadia Al Hany Ascimani, desde tenra idade chamda de Yoya (tida por segunda mãe de seus Irmãos), era a segunda filha nascida viva de dez filhos do casal constituído pelo dentista libanês Youssef Al Hany e a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany, boliviana de Pai libanês. Além do gosto pela costura e o cuidado com a Família, Dona Yoya herdara da Mãe o autodidatismo, pois, com as limitações impostas às mulheres no início do século XX, ler e escrever em casa era exigência mínima que se fazia às mulheres emancipadas.

Dona Guadalupe Ascimani de Hany, nossa saudosa Avó (com letra maiúscula), viveu intensamente o século XX em todas as suas profundas transformações. Não sem propósito, costumava advertir as filhas menores, que não tiveram sorte com seus respectivos companheiros -- como foi o caso da Tia Nena, May Teresa Hany de Paz, falecida há um ano e meio, a despeito de sua formação em odontologia, igual ao nosso Avô Youssef Al Hany, num tempo em que ser dentista na Bolívia profunda implicava em salvar vidas tal qual médico de campanha. Leitora de clássicos da literatura universal, Dona Guadalupe questionava as filhas por não terem sabido escolher bem seu pretendente: como eu, nascida e criada em um povoado com menos de cinco mil habitantes, pude me casar com um Doutor jovem, bonito e culto, enquanto vocês, com todos os estudos e currículo, só encontraram seres medíocres, sem qualquer atributo e destituídos de companheirismo?

Além da saúde física e psicológica para criar, educar e formar nove filhos em condições adversas, Dona Yoya tirou de seu âmago uma capacidade de resistência que se forjou numa luta interminável desde 1960, ano em que enfrentou praticamente sozinha, uma crise econômica sem precedentes na Bolívia da Revolução de Abril de 1952, quando já estava casada e com três filhos nascidos e um por nascer (dois meninos e duas meninas). Como nosso Pai era perseguido por sua atuação no jornalismo político e na intelectualidade de Cochabamba, nossa Mãe ousou desafiar milícias xenófobas que ameaçavam mulheres sozinhas em nome de um bizarro patriotismo, coisa que em nossos dias aflorou em território deste país-continente, em que o ódio toma conta da racionalidade e a violência sem precedentes toma conta de nosso cotidiano desesperador.

Primeiro no Líbano, para onde partimos de trem e depois de barco no início da década de 1960 em oito irmãos (a caçula nascera no Líbano dois anos depois) com nossos Pais, terra-natal do hoje saudoso Seu Schabib, mas que por razões de sobrevivência precisou se deslocar para a África a fim de cobrir jornalisticamente os movimentos de emancipação da Argélia, Líbia e Sudão (além do Egito, então República Árabe Unida, liderada pelo saudoso líder pan-arabista Gamal Abdel Nasser). Assim como na Bolívia de Victor Paz Estenssoro, no Líbano de Fuad Chehab (sob influência de Camile Chamoun) Dona Yoya soube fazer frente às investidas dos gendarmes que tentavam intimidar seu Companheiro e sua Família: além de ter granjeado a amizade de familiares que só conheceu quando foi para a terra dos ancestrais de seu Pai e do Pai de sua Mãe, os familiares de seu cônjuge fizeram de tudo para que permanecêssemos lá, mas a acuidade política de Seu Schabib já detectava a guerra civil fratricida que viria a eclodir uma década depois para destruir o país.

A escolha de Corumbá, no coração da América do Sul não foi casual: tratava-se de lutar pela sobrevivência num novo país, mas sem perder os vínculos com a Bolívia, em cujo território não só se encontravam vivos os Pais de Dona Yoya mas também a conclusão dos estudos dos filhos mais velhos. No entanto, o ciclo militar da história política da Bolívia (1964-1982), em que sucessivos golpes ensanguentaram o povo boliviano, acabou provocando uma tragédia familiar, que foi a morte aos 25 anos, em circunstâncias não elucidadas, de nosso Irmão mais velho, Mohamed Schabib Hany. De todas as adversidades enfrentadas em Vida, essa por certo foi a mais traumática e irreparável, razão pela qual toda a nossa Família tem “nojo e ódio à ditadura” (nas sábias palavras de Ulysses Guimarães).

A maturidade precoce e uma sabedoria inesgotável fizeram de nossa Mãe a discreta guerreira, determinada em seus generosos propósitos e ao mesmo tempo uma solidária companheira em todos os momentos de sua prole, que a partir de meados da década de 1980 dá início à segunda geração, com a chegada do(a)s neto(a)s ao longo de duas décadas: Igor, Luana, Janen, Hanen, Neder, Pedro, Dunia, Omar e Sofia. Não pôde conhecer a caçulinha dos netos e o primogênito dos bisnetos, o Nícolas (Filho de Igor e Fernanda), mas cujo legado por certo guiará todos os descendentes como fonte inspiradora de caráter inatacável, temperado na incansável lide de emigrantes peregrinos que cruzaram oceanos, percorreram continentes, abriram horizontes e semearam generosos ideais.

Com Dona Yoya e Seu Schabib é que aprendemos desde tenra idade que a humanidade é uma só, e que para o mundo se tornar melhor nós precisamos ser melhor desde nosso interior. Mais que um exemplo concreto, eis uma razão de ser, sobretudo nestes nada generosos tempos. Mas que os levaremos sempre conosco, como as gratas recordações de sua presença em nossas vidas...

Ahmad Schabib Hany

domingo, 11 de junho de 2023

AUGUSTO CÉSAR PROENÇA, REFERÊNCIA SEMPRE PRESENTE

Augusto César Proença, referência sempre presente

Escritor, memorialista, professor, roteirista e cidadão à frente de seu tempo, Augusto César Proença se eterniza no momento em que é necessária a preservação do patrimônio cultural imaterial e seu elegante estilo de registro, como nunca, é imprescindível.

Pelas mensagens consternadas de quatro Amigos queridos -- Armando Lacerda, Raquel Paulino, Luiz Taques e Edson Moraes -- acabo por me inteirar da fatídica notícia sobre a eternização do querido e agora saudoso Amigo e Companheiro de grandes causas Augusto César Proença.

Por meio do Armando Lacerda (então diretor da Urucum Mineração), em 1991, tive a honra de conhecer pessoalmente esse gigante, ser humano à frente de seu tempo. Estávamos em junho daquele ano, sob o governo faraônico de Pedro Pedrossian, que usava toda a sua sanha para antagonizar com a administração do Doutor Fadah Scaff Gattass, então prefeito de Corumbá.

A Casa de Cultura Luiz de Albuquerque (popular ILA) não apenas estava parecendo um mausoléu, como a gestão do principal centro cultural era prejudicada pelas disputas entre as diferentes forças políticas que se haviam aliado para derrotar os partidos progressistas que vinham administrando o estado desde a vitória do Doutor Wilson Barbosa Martins, em 1982.

A primeira vítima dessas disputas internas foi o saudoso Doutor Lécio Gomes de Souza, diretor do inicialmente (em 1978) Instituto de Estudos e Pesquisas Regionais Luiz de Albuquerque (ILA) e depois Casa de Cultura Luiz de Albuquerque (a partir de 1983, com a criação da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, pelo Doutor Wilson Barbosa Martins, e por seu primeiro presidente, o saudoso advogado e pesquisador José Octávio Guizzo).

Numa tentativa consenso, o saudoso Doutor Salomão Baruki foi nomeado para o ILA pela representatividade que detinha (afinal, como titular da Secretaria de Educação e Cultura do governo do Doutor Cássio Leite de Barros, último governador de Mato Grosso uno, foi ele que nomeara o Doutor Lécio Gomes de Souza diretor do ILA tão logo de sua criação). No entanto, em menos de 50 dias, foi publicada sua exoneração no Diário Oficial, sem ter sido previamente comunicado, num gesto de grosseria absurda.

Essa sucessão de nomeações e exonerações foi tão desgastante e o estado de abandono do prédio e do acervo bibliotecário e documental do ILA me incentivou a tomar a iniciativa de conversar com um saudoso Amigo herdado de meu Pai, o Senhor Lincoln Gomes de Souza, então responsável pela Carteira de Comércio Exterior da Agência do Banco do Brasil em Corumbá, além de aficionado da cultura.

Ex-colega de meu saudoso Irmão Mohamed no curso de Psicologia do então CPC/UEMT, o Senhor Lincoln Gomes não titubeou a aceitar o desafio de integrar uma comissão do que viria a ser a Sociedade dos Amigos da Cultura. Fomos às duas emissoras de rádio AM de então e nos dois programas de entrevistas do meio-dia o Senhor Lincoln e eu fizemos um apelo às pessoas sensíveis à questão da cultura e do patrimônio histórico regional. Ao tempo em que fomos ao gabinete do Prefeito e ao escritório político do deputado Armando Anache para convidá-los para integrar os esforços pela revitalização de nosso maior centro cultural regional, visitamos os consultórios do Doutor Salomão Baruki e do então vereador, saudoso Doutor Lamartine Figueiredo Costa (parente distante do então sucessor do Doutor Salomão na direção do ILA, embora em campos políticos diferentes).

Logo na primeira reunião, lá estava o Senhor Augusto César Proença, que não só apoiou todas as iniciativas como colocou seu nome para integrar a coordenação. Ele era uma referência nas letras desde a juventude: foi secretário de redação do diário O Momento em meados da década de 1950, antes de se mudar para o Rio de Janeiro, onde fez Letras e trabalhou com seu Padrinho de ofício (e Tio pelo lado materno), o renomado crítico literário M. (de Manoel) Cavalcanti Proença.

Humilde, disciplinado e generoso, Augusto César se revelou, ao lado do Senhor Lincoln Gomes, um incansável e dedicado sensibilizador. Com a consigna “Abra seu coração para a Cultura: adote o ILA”, a Primeira Semana da Cultura, entre 14 e 20 de setembro, das 16 horas às 21 horas, as diversas atividades artístico-culturais foram determinantes para alavancar um novo momento para a Casa de Cultura, que em menos de um ano passou por uma primeira reforma, para ser revitalizada em 1995, primeiro ano do segundo mandato do Doutor Wilson Martins, com a eficiente participação da Professora Idara Duncan Negreiros, então presidente da Fundação de Cultura de MS.

Além de ter sido vencedor de um concurso nacional em Brasília com seu primeiro livro de contos, Snack Bar (1979), Proença foi colaborador e integrante da primeira turma do O Pasquim (tempo da emblemática Editora Codecri, sigla do irreverente Comitê de Defesa do Crioléu), em Ipanema. Nesse período é que decidiu viver em Nova York por algum tempo, quando começou a elaborar as ideias gerais do que seria mais tarde o seu extraordinário Pantanal: gente, tradição e história, inicialmente lançado pela Editora da UFMS (1993), tendo-me dado a generosa oportunidade de ser seu revisor.

Discreto e profundamente introvertido, essas conquistas suas foram reveladas por seus queridos Amigos como os Senhores Celso e José Luiz (cujos sobrenomes não posso grafá-los por ora) e são confirmadas por contemporâneos que têm uma admiração inequívoca. No entanto, sou testemunha de sua vitória no concurso da Rádio França Internacional do conto Nessa poeira não vem seu pai (1993). Nas poucas, mas inesquecíveis, visitas que fiz à sua gigantesca biblioteca, herdada de seu igualmente saudoso Pai, o Doutor Nheco Gomes da Silva, há uma inesgotável fonte de conhecimento e de saber, próprio dos seres alados que fazem de sua existência uma via iluminada para décadas, séculos e, provavelmente, milênios vindouros.

Sua gestão no ILA, a pesquisa que resultou no Corumbá de todas as graças e a incansável participação na fundação do CENPER e da OCCA, na construção do Pacto pela Cidadania e no Comitê de Monitoramento do Programa Pantanal são a prova cabal e inquestionável de seu desapego por cargos, vaidades e veleidades. Sincero, sempre, em tudo o que o cativava e sem qualquer outro propósito que o compromisso com o coletivo, o senhor Augusto César Proença escreveu de modo universal e consistente os maiores passos que nos últimos 50 anos pudemos dar para a humanidade, ou melhor, para a História.

Afinal, a terra que fecundou a cosmovisão de Manoel de Barros, Lobivar Mattos, Wega Nery, Carmen Portinho, Graziela Barroso, Jorapimo, Augusto César Proença, Apolônio de Carvalho, Augusto Alexandrino dos Santos (Malah), Heloísa Urt e tantas outras cabeças iluminadas não menos importantes (e me desculpem não citar os que estão entre nós), é e será um celeiro, fonte inesgotável de talento sem fim. Mas, confesso, minha maior frustração foi ter visto em sua terra natal, para a qual Proença retornou há mais de 30 anos, um certo ar de indiferença quando ele, nas ruas ao lado do povo que tanto amava e pelo qual dedicou seu talento gigantesco, passeava solitário e compenetrado, mas sempre gentil, educado e atento, não lhe foi dado o afeto e o reconhecimento que tanto merecia.

Até sempre, querido Amigo Augusto César Proença! O Senhor e suas virtudes germinam e continuarão a germinar enquanto a humanidade trilhar pelo caminho da civilização. Obrigado pelas inesgotáveis lições de inabalável compromisso com o seu semelhante e de desapego da frivolidade com que marcou sua presença perene entre nós e nossos descendentes!

Ahmad Schabib Hany