segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

POR QUEM OS SINOS DOBRAM (uma reflexão sobre a solidariedade)


POR QUEM OS SINOS DOBRAM (uma reflexão sobre a solidariedade)

Por José Gonçalves do Nascimento (*)

Começo recorrendo ao mestre John Donne, citado por Ernest Hemingway, no clássico "Por Quem os Sinos Dobram": “Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

Costuma-se dizer que o que nos une, enquanto humanidade, é maior do que aquilo que nos divide. E é verdade. Pelo menos nestes aspectos: habitamos sob o mesmo teto, respiramos o mesmo ar, bebemos a mesma água; vivemos sob o mesmo céu, nos banhamos no mesmo mar, nos alimentamos dos mesmos nutrientes; temos em comum o nascer, o viver e o morrer; partilhamos dos mesmos problemas, das mesmas inquietações, das mesmas incertezas; somos semelhantes em tudo, inclusive na finitude; participamos dos mesmos destinos, viajamos na mesma embarcação, estamos sujeitos aos mesmos limites.

Destinos comuns, inquietações comuns, problemas comuns, desafios comuns exigem dos humanos gestos, atitudes, caminhos igualmente comuns. Isso implica a capacidade de ver o que se passa no entorno, de olhar para além do próprio umbigo, de atentar para as angústias do outro, de deixar o outro falar, de ir além do que se é cobrado, de romper preconceitos, de ultrapassar fronteiras, de ousar, de provocar, de questionar. Significa assumir a defesa do outro; mais do que isso: colocar-se no lugar do outro, sentir a dor do outro, interessar-se pelo outro; correr risco pelo outro. Implica, às vezes, não apenas ensinar o caminho, mas pegar na mão do outro e levá-lo até o caminho; não apenas ensinar a pescar, mas também pegar no anzol e ajudar o outro a pescar; é colocar “o coração na miséria alheia”, no dizer de Guimarães Rosa; é Ir junto, fazer junto, incomodar-se junto, resistir junto, lutar junto, celebrar junto...

Carregamos em nós infinitas possibilidades, entre as quais a de superar o individualismo tacanho que nos avilta e nos distancia do nosso real papel enquanto membros de uma comunidade de semelhantes. Carregamos em nós, igualmente, a disposição para práticas concretas de altruísmo e de dedicação ao serviço da causa humana, bem como do ambiente em que vivemos, nele incluídos outros seres vivos, a terra, o mar, o ar, os rios, as florestas.

Só a solidariedade, como valor universal e intrínseco à natureza humana, é capaz de conceber relações de paz, de justiça, de tolerância, de respeito às diferenças (individuais e coletivas), de acolhimento ao migrante, ao refugiado, aos que se encontram à margem da sociedade, aos excluídos de tudo e de todos.

A solidariedade está na luta dos defensores do acesso à terra por parte daqueles que dela dependem para morar, trabalhar, cultivar sua lavoura, alimentar sua criação, comer, beber, educar seus filhos.

A solidariedade está na luta dos defensores do uso da moradia por parte de quem não dispõe de um lar digno onde possa repousar com o mínimo de conforto e segurança.

A solidariedade está na luta dos defensores das populações de rua, habitantes de outra cidade dentro da mesma cidade, cidadãos de papel, reféns da culpa de terem nascidos pobres, pretos, gays, lésbicas, analfabetos, nordestinos, alcoólatras.

A solidariedade está na luta do povo indígena em defesa do seu direito à terra, aos rios, às florestas, à caça, à pesca; bem como ao pleno usufruto das suas culturas, das suas línguas, das suas religiões, dos seus saberes, das suas filosofias, dos seus mistérios, dos seus feitiços.

A solidariedade está na luta do povo afrodescendente que a todo momento busca impor-se, ocupar espaços de decisão, e usufruir de oportunidades iguais em relação aos outros, apesar dos estigmas do preconceito racial (e classial) de que foi e continua sendo vítima.

A solidariedade está na luta política em defesa das liberdades democráticas, na promoção dos direitos humanos e sociais, na afirmação das minorias, na preservação do meio ambiente, no fomento de iniciativas que proporcionam o pleno exercício da cidadania.

A solidariedade está na luta pela construção de uma nova ordem econômica, com base nos princípios do cooperativismo, e sem submeter-se à concorrência desleal e selvagem imposta pela lógica do capitalismo.

A solidariedade está no sangue dos mártires, semente da nova terra, certeza do novo amanhã, rastro de luz a dissipar toda a escuridão.

A solidariedade está no testemunho dos profetas do povo, anunciadores da Boa Nova da paz, da justiça, e co-construtores de uma sociedade de fato civilizada, ética, fraterna e inclusiva.

A solidariedade liberta, transforma, move montanhas, opera milagres, mexe com velhas estruturas, destrona a estupidez, o egoísmo, o orgulho, o rancor; constrói mundos solidamente saudáveis, forja espaços de exercício da liberdade, de promoção da vida, de devoção à dignidade dos seres humanos; de cuidado com tudo o que existe.

Comecei com John Donne e termino como Paulo Freire: “A solidariedade tem de ser construída em nossos corpos, em nossos comportamentos, em nossas convicções”.



(*) Professor José Gonçalves do Nascimento, de Monte Santo (BA), reside em Osasco (SP) e trabalha na rede municipal de ensino de São Paulo. Estudou na Universidade Católica de Salvador, no Instituto de Teologia de Ilhéus e na Pontifícia Universitá Urbaniana di Roma. Autor de diversos textos e livros de temática social. Este texto foi postado numa rede social (Facebook), de onde foi retirado na íntegra (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10211104946453252&set=a.2579447499179&type=3&theater). Correio eletrônico: jotagoncalves_66@yahoo.com.br

DO LADO ESQUERDO DO PEITO (Edson Moraes)


DO LADO ESQUERDO DO PEITO


Edson Moraes


Sexta-feira, 14, na sede da Federação dos Trabalhadores da Educação Publica (Fetems), concorridíssimo lançamento de “Zé Dirceu: Memórias”, em seu Volume I.



Apesar do cansaço, da tosse incômoda e dos reflexos dolorosos de um tombo, ele esteve como sempre o vi: altivo, sereno, universal. Não parecia ter sobre seus ombros a dor de um perverso linchamento midiático e político, muito mais impactante que a angústia eventual da privação de liberdade.



O encarceramento que o incomoda ainda é o do mundo que o contempla, sobretudo pelos que escarnecem sobre seu sofrimento e fazem o butim de suas lágrimas.



José Dirceu em nenhum momento posou de vítima. Faz isso desde que voltou do exílio. Deixa o coitadismo para que os pobres de espírito se fartem à mesa dos torquemadas de ocasião no lauto banquete da hipocrisia.



Mas... que é isso, companheiro? Nada desse ranço saiu de sua boca e de sua cabeça.



Eu ouvi de você a palavra serena, da reflexão, do equilíbrio. A recomendação para reconhecer que erramos, sim, e não erramos pouco. Precisamos ser rigorosos, mais do que temos sido, em nossa autocrítica. Nós – esquerda, PT, campo progressista – contribuímos para que o ventre do bolsonarismo o lançasse à luz, embora seja esta uma prole amante do breu e da obscuridade.



Grato, companheiro, por remeter minha cabeça ao vão fundo e cinzento da coragem pequena que não deixa ver o quanto é forte e capilarizada a ascensão do governo que a maioria dos eleitores de outubro elegeu.



Grato, companheiro, por me reforçar a consciência de não culpar nem maldizer os evangélicos que malafaiaram e macedaram para garantir a vitória do capitão.



É verdade, muito bem lembrado Zé: nós fomos também malafaias e macedos na catolicagem das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e pastorais. Ainda que tivéssemos outro enredo para os temas da exclusão fundiária, do genocídio indígena, da segregação racial, da misoginia, éramos precursores de Silas e Edir na versão apostólica romana. O que não soubemos foi construir essa caitituagem social para torná-la consistente, densa e, sobretudo, duradoura.



Grato, enfim, companheiro, por submeter-se à lei dos homens sem acocorar-se diante da injustiça!
Sei que a legalidade não é ciência exata.



Grato, por último, pela poesia que o ambiente democrático escreve e desenha, garrancheia e borra, limpa-suja as nuvens e o chão da história que estamos fazendo, da história que estamos contando, da história que vai nos contar.



Grato, companheiro! Você veio aqui para nos mostrar que perdemos!



É assim que se ganha!



(Edson Moraes)



***** Zé Dirceu recebe o livro “Bugre Rima com Estrelas”, do autor Edson Moraes, seu amigo e correligionário, na sede da Fetems em 14/12/2018 (Foto Andréia Cercariolli)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

POESIA E SORVETE DE GUAVIRA (Luiz Taques)


Poesia e sorvete de guavira

Luiz Taques

A tarde chegava. Eu pensava nele, em sua risada gostosa, quando, de repente, começou a chover forte em Londrina.
 
Fui fechar a janela da sala e vi, do outro lado da rua, um carteiro prestes a ficar ensopado.
Então, desci rápido pelos degraus da casa, abri o portão da garagem e o convidei para entrar.
O carteiro aceitou, mas preferiu ficar na varanda. Arranjei-lhe um banquinho e um livro. Sim, um livro dele, Manoel de Barros.
Quando o temporal passou, vinte ou trinta minutos depois, o carteiro me chamou, agradeceu pela acolhida e, quando se preparava para me devolver o exemplar, eu disse que ele podia levá-lo, pois era um presente de Natal, dado de coração.
O carteiro agradeceu e saiu feliz, sorrindo, a falar: - Vou continuar a ler ainda hoje, porque - sabe, moço? - sou formado em Letras aqui mesmo no campus da UEL e já devorei mais de trezentos livros, e este aqui, ó, está entre os melhores que li.
E o carteiro foi embora carregando junto a suas cartas "O Guardador de Águas", um dos grandes livros de Manoel de Barros.
Não tive dúvida: na mesma hora, liguei para a casa do poeta, lá em Campo Grande, e contei-lhe o ocorrido.

O poeta riu com aquela sua risada gostosa, com aquela mesma risada gostosa que me fez lembrar dele no início da tarde, e, em seguida, veio com essa na invencionice deste conto curto:
- Para demonstrar sua eterna gratidão por não ter levado chuva intensa nas costas, o que um danado de um carteiro não é capaz de nos dizer logo após um aguaceiro, não é mesmo?
"Ô, poeta!", respondi-lhe de imediato e ainda ficcionalmente: "Como esse carteiro, dezenas e centenas e milhares de outras pessoas pelo Brasil afora apreciam a sua literatura e sorvete de guavira".
- Passar bem, Barros gentilmente me respondeu.
Porém, acrescentou:
- Acredito no que você fala, já que sei que quem aprecia sorvete de guavira e que lê poesia de boa qualidade é como pássaro criado solto na natureza: nunca perde o paladar refinado!

Desconfio ter retrucado:
"Antigamente, entre um chope e outro, você sempre me dizia que era tímido e fraco para elogios."
Sim, desconfio ter realmente retrucado isso.
Porque, do outro lado da linha, o poeta continuava soltando aquela sua risada gostosa.

PUBLICADO NA "FOLHA DE LONDRINA" (19 DE DEZEMBRO DE 2018, QUANDO O POETA FARIA 102 ANOS DE NASCIMENTO)


MEMÓRIA

Um conto para Manoel de Barros


O poeta mato-grossense faria 102 anos nesta quinta-feira(19), a Folha 2 publica um conto em sua homenagem


O poeta Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT) em 19 de dezembro de 1916. Passou a infância e adolescência em Corumbá (MS). Estudou direito e morou no Rio de Janeiro, antes de fixar residência em Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, onde veio a falecer em 13 de novembro de 2014. 

Manoel de Barros tem mais de vinte livros publicados. Alguns deles: "Gramática Expositiva do Chão", "Retrato do Artista Quando Coisa", "Compêndio Para Uso de Pássaros" e "O Fazedor de Amanhecer". Também ganhou os principais prêmios literários, como o Jabuti e o APCA (Associação Paulista de Crítico de Artes).
Há três filmes/documentários sobre a vida e a obra do poeta: "Caramujo-flor", de Joel Pizzini; "Só Dez Por Cento é Mentira", de Pedro Cezar, e "O Poeta é um Ente que Lambe as Palavras e se Alucina", de Arlindo Fernandes de Almeida.
Em homenagem ao dia de nascimento do poeta, a Folha 2 publica o conto "Poesia e Sorvete de Guavira", escrito por Luiz Taques. Autor do livro "Vaso de Colher Chuvas - Contos-reportagem com Manoel de Barros" (editora Letradágua), Taques era amigo do poeta. O conto, "Poesia e sorvete de guavira", ele dedica à sua sobrinha Taís Satiko. 

FOLHA DE LONDRINA, 19 DE DEZEMBRO DE 2018 (CADERNO B)