sexta-feira, 29 de abril de 2016

1964 NUNCA MAIS!



Num dia como hoje, 52 anos atrás, era consumada uma ardilosa conspiração que, na calada da noite de 31 de março para 1º de abril, levou o Brasil para um longo período de exceção de 21 anos. Foram perdidas pelo menos três gerações, inúmeras conquistas sociais e parte da soberania do País. Retrocesso, perseguições, delações, censura, medo, torturas, cassações, prisões, desaparecimentos, execuções e mortes misteriosas não esclarecidas que passaram a fazer parte do cotidiano de todo(a)s.
Sob a batuta da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, ligada à Opus Dei, fundada e presidida por Plínio Corrêa de Oliveira), entidades como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) integraram as tenebrosas e repetitivas jornadas da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” –- esqueceram-se, os organizadores, de um dos Dez Mandamentos, aquele que recomenda não usar o santo nome d’Ele vão. Jornais e revistas também entoaram a mesma ladainha, e então víamos a “Tribuna da Imprensa”, o “Correio da Manhã”, “O Estado de S. Paulo”, a “Folha de S. Paulo”, o “Jornal do Brasil” com igual cantilena: era preciso violentar a democracia, com apenas 18 anos, para “defendê-la”.
Enquanto a classe média, como lhe é peculiar, fazia o jogo do empresariado e, sobretudo, do grande capital (que não tem nacionalidade nem lei além da do mercado), o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, atuava com uma desenvoltura indignante no planejamento e na logística do golpe em curso, como o brasilianista Thomas Skidmore –- “Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64)” –- documenta no apêndice de seu emblemático livro. E a participação dos EUA não fora como reles figurante -– ou mesmo coadjuvante –-, mas como protagonista, como registra o artigo do pesquisador Celso Castro sobre o tema no portal sobre fatos e imagens do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (disponível em ). Além da preparação e financiamento, a CIA, a USAID e multinacionais americanas se empenharam na consecução desse plano sórdido.
A Constituição Federal então vigente, de 1946, fora rasgada tão logo os assaltantes ávidos de poder usurparam ilegalmente os principais cargos diretivos do Brasil, em nome do combate à “corrupção” e à “subversão”. Primeiro, por meio dos abomináveis Atos Institucionais e Decretos-Lei levados à gráfica da Imprensa Nacional, para cassar mandatos de brasileiros idôneos que haviam cometido o “crime” de trabalhar por um país socialmente justo e politicamente democrático, no sentido mais amplo, e mais alguns para criar cargos e instituições dentro da concepção da nova ordem institucional, ainda não totalmente explicitada para a opinião pública, como sempre, manipulada.
O marechal Castelo Branco, de convicções institucionais firmes (embora inicialmente apoiasse o presidente João Goulart, havia sido convencido por Golbery do Couto e Silva a aderir, até para não deixar a chamada “linha-dura” tomar conta do “processo revolucionário”), quando tomou posse como primeiro general-presidente, deixara clara a sua determinação de devolver aos civis, e por meio de eleições diretas, todos os mandatos eletivos. Não conseguiu, pois, ao entregar a faixa presidencial ao também marechal Arthur da Costa e Silva, em 1967, nem teve tempo de “vestir o pijama”: sofreu um acidente aéreo em sua terra, afastando com ele a então forte influência do estrategista Golbery, que retornaria à cena política somente oito anos depois, com o general Ernesto Geisel.
Em 1967, houve uma versão de Constituição Federal timidamente autoritária, substituída pela Emenda Constitucional nº 1 (depois Constituição de 1969), em que o regime começara a perenizar as medidas transitórias e emergenciais. Quando, ao final de 1968, fora editado o temido Ato Institucional nº 5 (AI-5), os famigerados decretos da repressão ao movimento estudantil secundário e universitário ganhavam inversa popularidade – 228 e 477 –, tendo selado o destino de muitos jovens, como o de Honestino Guimarães, presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) cujo corpo jamais foi encontrado depois de ter sido conduzido coercitivamente a um dos centros de detenção espalhados pelo país.
Mas a crescente resistência ao regime militar, entre 1968 e 1971, acabara por fortalecer os setores extremistas do núcleo de poder golpista e unificara todos os partidários do regime de 1964, tornando medidas excepcionais em atos rotineiros. Em nome da defesa da segurança nacional, o que parecia ser um breve período de exceção acabou virando uma ditadura intolerante e violenta: até o Congresso Nacional fora fechado para cassar políticos liberais e moderados, alguns deles oriundos da UDN (União Democrática Nacional), o partido que não conseguia ganhar as eleições presidenciais e por isso partira para a aventura golpista – tomado que fora pela mesma síndrome de abstinência (de poder) que hoje entorpece os principais líderes do PSDB (dissidência à época de setores progressistas do PMDB), PPS (sucedâneo do Partido Comunista Brasileiro, hoje com posição neoliberal, e entre seus atuais líderes há parlamentares de direita e, pasmem, até anticomunistas) e DEM (este último sucedâneo do PFL, que foi uma dissidência do PDS, sucedâneo da ARENA, a Aliança Renovadora Nacional, de triste memória).
Da lista de cassações, constam nomes como Wilson Barbosa Martins e Mário Covas, por exemplo, que nada tinham de “subversivos”, mas haviam se posicionado claramente contra o regime de arbítrio que se anunciava. Não tivera essa mesma sorte o então líder do MDB, deputado Rubem Paiva, que fora sequestrado por forças da ordem e desaparecido, cujo corpo até hoje a família está a reclamar. Nessa onda de intolerância, nem o “paladino” do golpe de 1964 escapara incólume: Carlos Lacerda, o líder civil ao lado de José Magalhães Pinto, também tivera seus direitos políticos cassados, em nome da (sic) segurança nacional. Só então os conservadores se apercebiam do monstro que haviam criado, mas já era tarde. Até Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, que jamais representaram qualquer ameaça “subversiva” à segurança nacional, foram alvo desse instrumento de perseguição de inimigos políticos.
A não aceitação da divergência tornara-se recorrente: nem mesmo Ernesto Geisel – um general publicamente avesso à chamada “linha-dura” de Emílio Garrastazu Médici, Ednardo D’Ávila, Sílvio Frota, Hugo Abreu e Octávio Medeiros, entre outros – deixou de ceder à tentação de, até ele, fechar por duas semanas o Congresso Nacional, em abril de 1977, para impor um conjunto de medidas que haviam sido derrotadas pelo MDB, o partido da oposição (reforma do Judiciário sem as garantias constitucionais; introdução de 1/3 de senadores biônicos, isto é, nomeados sem terem sido eleitos; fim do quórum qualificado de 2/3 para a aprovação pelo Congresso Nacional de emendas constitucionais; institucionalização das eleições indiretas para presidente, governadores e prefeitos de capitais e municípios de fronteira e de estâncias hidrominerais), além de voltar a cassar mandato de deputados líderes da oposição, como Lysâneas Maciel, Alencar Furtado e Francisco Pinto, sob acusação de serem “comunistas”, e por isso ameaçar a segurança nacional.
A dívida externa, de menos de quatro bilhões de dólares no governo de João Goulart, ilegalmente deposto em 1964, pularia para inimagináveis 120 bilhões de dólares em 1985, quando a equipe da Nova República escolhida por Tancredo Neves e comandada por José Sarney, tomou as rédeas de uma economia totalmente fragilizada –- somente dez anos depois é que Itamar Franco, o até hoje incompreendido e ridicularizado democrata que deu rumo ao Brasil, permitiria a tão sonhada estabilidade econômica. Os três ministros da Fazenda e do Planejamento mais célebres do regime ditatorial –- Roberto Campos, Delfin Netto, Paulo Henrique Simonsen e João Paulo dos Reis Velloso –-, apesar de alardearem certa “intimidade” com o Fundo Monetário Internacional (FMI), negociaram de joelhos a dívida externa brasileira, cujos juros exorbitantes causaram uma recessão e uma escalada inflacionária jamais vistas até então na história do Brasil republicano -– isso só se repetiria, em proporções maiores, no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, como ressaca da farra das privatizações das maiores estatais, vendidas a preço de galinha morta (Companhia Vale do Rio Doce, Usiminas, Siderúrgica de Volta Redonda, Embraer, Embratel, Sistema Telebrás -– Telesp, Telerj, Telems, Telemat, Telemig, Telepar etc -– e Sistema Eletrobrás –- Chesf, Cesp, Cemat, Enersul, Light etc), além do escândalo do socorro bilionário aos bancos privados, o famigerado PROER.
Se isso fosse pouco, a censura instituída no regime de 1964 encobriu inomináveis golpes financeiros impunes – os seus responsáveis não foram punidos porque simplesmente não foram investigados –, entre os quais a suspensão dos serviços aéreos da Panair do Brasil, empresa superavitária e em franca expansão; falência fraudulenta do Banco Halles de Investimento e os sucessivos escândalos do Grupo HASPA, do Lutfalla, do Grupo Delfin, do Banco Nacional de Habitação (BNH), da Coroa-Brastel, da Capemi, do Comind, Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, Itaipu, Tucuruí, Codrasa e Transpantaneira, Projeto Jari, Polocentro, Poloeste, Polonorte, Polonordeste, Polosudeste, Polosul, Alcan e Finor, entre tantos outros.
Apesar de toda a censura imposta a todos os meios de comunicação existentes então, não havia como esconder para baixo de abismais tapetes da hipocrisia, os escândalos políticos e financeiros que se sucediam, sempre em nome da segurança nacional: além da privação das liberdades mais comezinhas (direito de ir e vir, de manifestar o pensamento, de reunir e organizar e até de estampar uma verdade, um fato de conhecimento público), prisões arbitrárias e desaparecimentos passaram a contar com o “ajutório” de empresários frios como os donos da “Folha de S.Paulo” na abominável Operação Bandeirantes (a temida OBAN, de funesta memória), em que veículos aparentemente inocentes eram usados para o sumiço de sequestrados ou da desova de cadáveres de presos na tortura.
Pois é, ao lado do Esquadrão da Morte, lado a lado de outro Sérgio – aquele era delegado –, de sobrenome Paranhos Fleury, do temido Departamento da Ordem Social e Política (DOPS), ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra (seu antecessor), ao lado do coronel Antônio Erasmo Dias, do nefasto médico Harry Shibata (que se prestava a dar atestados de óbito com causa mortis falsa, para assegurar a impunidade dos torturadores e seus chefes imediatos), há roubos bilionários, como na Itaipu e Tucuruí (todos enumerados pelo Dossiê de Alexandre von Baumgarten, um “jornalista” – na verdade, dedo-duro – que tentou chantagear ameaçando denunciar, mas que acabou sendo encontrado morto em circunstâncias muito suspeitas, numa situação muito parecida à morte do delegado Sérgio Fleury, os dois verdadeiros arquivos mortos do regime).
Para saber o que esse regime foi capaz de causar à vida de milhões de brasileiros anônimos e à história do Brasil, efetivamente, só mesmo tendo vivido esse período e, obviamente, tendo acompanhado atentamente os seus desdobramentos. Até porque há muitos desavisados que jamais abriram um jornal ou uma revista confiável que respeitasse a ética jornalística e acreditam piamente o que a Globo e seus satélites vomitam o tempo todo, de que, então, “você era feliz e não sabia”. O fato, nesse mote, era de que, no geral, não se sabia, não se podia saber (porque a censura não deixava) – agora, se se era feliz, isso são outros quinhentos...
As cicatrizes desse período são abismais: liberdade total, só para as multinacionais; facilitação da remessa de lucros para o exterior, sem tributação, só para o empresariado; crescimento da dívida e(x)terna, alegria só para os banqueiros, que desde então vêm contabilizando lucros; aumento vertiginoso da concentração da renda, como forma de premiar os apoiadores do regime que se instalara; achatamento vergonhoso do poder aquisitivo das camadas populares; escalada inflacionária criminosa, ciranda financeira invejável, recessão econômica sem precedentes; taxação individual para os brasileiros que saíssem em viagem do país, fosse para estudar, fazer turismo ou negócios; escândalos financeiros e políticos impunes; certeza da impunidade: “aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”; estigmas e preconceitos sem qualquer fundamentação; condenações sem julgamentos, prisões sem acusação formal, sequestros institucionais inexplicáveis; supressão de garantias e direitos fundamentais e coletivos, como da livre manifestação do pensamento, da liberdade de organização, da liberdade de expressão, da presunção de inocência, da inviolabilidade do domicílio, do habeas corpus, exigência de apresentação de atestado ideológico para poder trabalhar ou fazer concursos públicos, entre outros absurdos.
O que dizer, então, no campo da educação, cultura, ciência e tecnologia? Fim do ensino público gratuito (adoção de “taxas escolares” para maquiar a institucionalização da cobrança de mensalidades nas escolas públicas, em todos os níveis – do fundamental ao universitário); proibição da representação estudantil em todos os níveis (desde representante discente nos colegiados até a eleição e o funcionamento de entidades estudantis como CAs, DSEs, DCEs, UEEs e UNE, que teve a sua sede histórica, no Rio de Janeiro, incendiada e demolida impunemente); fim das eleições livres para reitores e dirigentes de instituições de pesquisa e de ensino superior; fechamento sumário de projetos pioneiros de desenvolvimento científico e tecnológico em todas as áreas do conhecimento por ameaçar os interesses das multinacionais; censura e controle da criação de obras literárias e artísticas de toda natureza.
E como desgraça pouca é besteira, a coisa não parou por aí: proibição da representação sindical, desde o representante eleito para as comissões de fábrica e de prevenção de acidentes, a supressão da representação sindical nos órgãos ministeriais de interesse da classe trabalhadora – como na gestão do FGTS e da Previdência Social –, intervenção e nomeação ad referendum dos dirigentes de sindicatos e federações de trabalhadores e extinção das Centrais Sindicais; fim das eleições diretas em vários níveis do Executivo e no Senado, para presidente e vice-presidente da República, governadores e vice-governadores de estados, territórios e distrito federal, prefeitos e vice-prefeitos das capitais e de municípios enquadrados como “do interesse da segurança nacional e estâncias hidrominerais”, além da bizarra criação da figura do “senador biônico”, isto é, do senador sem voto, “eleito” pelo partido do regime, a ARENA, para um terço do Senado Federal. Qual a justificativa? “O povo não está preparado para votar...”
Foi um longo período de ufanismo (fanatismo pseudonacionalista, enquanto as multinacionais faziam o que quisessem sem qualquer empecilho): era tempo do “Brasil: ame-o ou deixe-o”, “O Brasil é feito por nós”, “Ontem, hoje, sempre Brasil”, “Brasil, potência do futuro”, “O Brasil é nosso”, “O Brasil espera que cada um cumpra com o seu dever”, “Ordem, Paz e Trabalho”, “O Brasil tem pressa”, “Tudo pelo Brasil”, “Exportar é o que importa”, e por aí afora. A propósito, entre os anos 1976 e 1986, a “Folha de S.Paulo” editou um suplemento dominical denominado “Folhetim” (criado por ex-integrantes do irreverente semanário carioca “O Pasquim”, como Tarso de Castro, Martha Alencar, Fortuna, Plínio Marcos, Sérgio Augusto e Paulo Francis) que, em tom de sátira, fazia verdadeiras paródias com as logomarcas e slogans do regime e de seu partido, a ARENA (sobretudo em sua fase mais criativa e irreverente, entre 1976 e 1979) – vale a pena consultar em sua hemeroteca virtual, no portal do jornal, chamada de “Acervo”.
E o pior disso tudo é que muitos dos “democratas” de hoje são, nas sábias palavras do ex-governador Leonel Brizola, “filhotes da ditadura”: Paulo Maluf, Agripino Maia, José Sarney, Roseane Sarney, Zequinha Sarney, Antônio Carlos Magalhães Neto, Nelson Marchezan Júnior, Paulo Abi-Ackel, Alysson Paulinelli, Heráclito Fortes e Demóstenes Torres, para citar alguns. Se, de fato, o mesmo rigor aplicado à atual inquilina do Palácio do Planalto tivesse sido aplicado aos caciques políticos de norte a sul, leste a oeste, aí sim o Congresso Nacional estaria representando o povo brasileiro. Não que a jovem democracia construída a partir da Constituinte de 1986 não tivesse sido suficientemente efetiva e competente: acontece que os remanescentes do regime de 1964 conhecem, como ninguém, as entranhas dos três Poderes e atuam com a maior desenvoltura para atravancar qualquer tentativa de implementação da soberania popular, como consignado na Constituição Federal de 1988, sobretudo em seu Título da Ordem Social, que dá à sociedade organizada a prerrogativa de efetuar o Controle Social, isto é, efetivar a chamada democracia participativa.
Para concluir, é fundamental que a juventude – que, em sua esmagadora maioria, desconhece esse período nefasto da história do Brasil, até porque não são muito(a)s o(a)s historiadore(a)s e demais autore(a)s de livros que tratam dessa temática – se liberte dos grilhões da ignorância e busquem conhecer, inclusive pela internet, fontes confiáveis que relatam com isenção esse período de trevas e medo da vida nacional. As diferentes gerações que lutaram pela redemocratização do País não só expuseram a sua vida a prêmio como deixaram generosamente o melhor de si e de sua vida para escrever um novo capítulo da história contemporânea, cujo maior legado é o ordenamento jurídico vigente a partir da promulgação da Constituição Cidadã de 1988. No dizer do grande sociólogo brasileiro Herbert de Souza (o Betinho, da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, que foi um dos cassados e exilados durante a ditadura), “é preciso ser cidadão para conferir cidadania aos brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza”.
1964 nunca mais!
Corumbá (MS), 31 de março de 2016.

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