Rodrigo Paz Pereira ganha da extrema-direita trumpista na Bolívia
Filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora e sobrinho-neto de ex-presidente Victor Paz Estenssoro, derrota Jorge Tuto Quiroga, candidato trompista na Bolívia, por mais de 8 pontos percentuais e as hordas fascistas já se aglomeravam diante dos comitês eleitorais e meios de comunicação para fazer distúrbios, agredir jornalistas, "denunciar" fraude e dizer que o candidato da Democracia Cristã é "socialista".
Diante de um cenário adverso deixado pelo desleal presidente Luis Arce, o senador Rodrigo Paz Pereira (PDC) -- bacharel em relações internacionais por uma universidade privada dos EUA, fiho do ex-presidente Jaime Paz Zamora (MIR), entre 1990 e 1993, e ex-vice-presidente eleito pela Unidad Democrática Popular (UDP) entre 1982 e 1985 com o "Ulysses Guimarães boliviano", duas vezes presidente Hernán Siles Suazo (MNRI) --, impôs derrota acachapante ao ex-presidente ultradireitista Jorge Tuto Quiroga (LIBRE), ex-vice-presidente eleito com o ex-ditador sanguinário e narcogeneral Hugo Banzer Suárez (ADN) e que o substituiu por um ano, no final de seu mandato, entre 2000 e 2001.
Assim que o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) anunciou, às 20 horas deste domingo, 19 de outubro, os resultados das eleições com base em 97,8% dos escrutínios das urnas, os comitês eleitorais de La Paz, Oruro e Santa Cruz, onde os apoiadores da extrema-direita acompanhavam o anúncio do vencedor do segundo turno, gritavam "fraude, fraude, fraude!", promoviam distúrbios e agrediam jornalistas que cobriam a jornada eleitoral -- reação típica dos trumpistas quando não vencem as eleições, como nos Estados Unidos em 2020, no Brasil em 2022 e 2023 e na Venezuela em 2024.
Por mais de 8 pontos percentuais, o democrata cristão Rodrigo Paz venceu, com 54,45%, seu concorrente da extrema-direita Jorge Tuto Quiroga, um trumpista que só virou presidente quando o ex-ditador fascista e narcogeneral Hugo Banzer Suárez, em estado terminal, transmitiu-lhe a faixa presidencial. Seu mandato de um ano apenas foi caracterizado pela invasão da Bolívia por agentes do FBI e da CIA e por tropas da DEA (órgão estadunidense de combate às drogas), que agiam como que estivessem em território dos EUA, sem observar as leis bolivianas.
"LA MISMA CHOLA CON OTRA POLLERA"
Em explícita demonstração de racismo político e esnobismo colonial, o candidato Jorge Tuto Quiroga (LIBRE), empresário nos Estados Unidos (onde concluiu seu curso universitário e há décadas mora com a família, que administra um patrimônio milionário), deixou claro o apoio a Donald Trump e que, eleito, ele faria um governo nos moldes do desgoverno argentino de Javier Milei, que também o apoiou.
"La misma chola con otra pollera." Em outras palavras, para Tuto Quiroga, o candidato democrata-cristão Rodrigo Paz não passaria de "socialista", como os candidatos do MAS e dissidentes nestas eleições. Bem ao estilo fascista, tudo que não é "do nosso grupo" é suspeito, indesejável e até reprovável. Foi esse o tom de sua campanha, marcada pela escancarada rejeição racista ao nativo e ao mestiço, em um país cuja maioria absoluta tem ascendência originária ou de "cholos" e "cambas".
Assim a campanha, por todos os meios, desqualificava o adversário, usando um despótico ditado hispânico, por sinal em tom pejorativo ao se referir à origem da maioria da população do país [o originário é "índio", o mestiço nos Andes é "cholo" e no Oriente é "camba"]. Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), os originários e mestiços somados formam quase 96% da população boliviana. Ainda assim, nesta campanha, que não hesitou em recorrer à compra de votos, obteve quase 45,47% dos votos válidos.
Como se vê, a "guerra suja" da extrema-direita marcou a campanha do segundo turno, a despeito da ausência do "inimigo ideológico" (a esquerda massista, desde 2005, tem ganhado todas as eleições com uma diferença de mais de 20% sobre a direita, que em 2019 recorreu ao golpe policial-militar). Além do apoio dos trumpistas, desde Miami, com a tradicional rajada de fakenews em que vinculavam o oponente Rodrigo Paz, que também é de direita -- diferentemente do pai, Jaime Paz Zamora, e do tio-avô, Victor Paz Estenssoro, Rodrigo, desde que perdeu a legenda herdada pelo pai, sempre foi filiado ao conservador Partido de la Democracia Cristiana, o rançoso PDC, que somente na luta pela redemocratização, nas eleições de 1979 e 1980, parte dos democratas-cristãos estiveram apoiando (e integrando a UDP) de Hernán Siles Suazo e Jaime Paz Zamora, que governaram, sob ameaça constante de golpes, entre 1982 e 1985.
APOIO TÁCITO DA ESQUERDA
A vitória acachapante do senador democrata-cristão Rodrigo Paz Pereira, que no domingo acompanhara o pai, ex-presidente Jaime Paz Zamora, para votar, se deveu, sobretudo, ao apoio tácito, de última hora, da esquerda boliviana. O democrata-cristão recebeu os votos do eleitorado de Evo Morales e dos três candidatos de esquerda nestas eleições, em que concorreram divididos (Evo Morales, proscrito arbitrariamente pelo Tribunal Constitucional, fez campanha pelo "voto nulo" no primeiro e segundo turnos).
Embora o presidente Luis Arce Catacora (MAS) e o ex-presidente Evo Morales Aima mantivessem o mesmo discurso do primeiro turno, muitos dirigentes departamentais e provinciais da esquerda boliviana saíram do muro (no caso de Arce Catacora) e do "voto nulo" (os leais à liderança de Morales) e fizeram questão de se somar à campanha do "voto útil ao menos pior", isto é, o candidato democrata-cristão Rodrigo Paz.
Em sua história familiar, Rodrigo Paz tem pai, tios e tios-avôs com passado na esquerda revolucionária. Jaime Paz Zamora, o pai, além de presidente e vice-presidente, é histórico dirigente do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), que durante a ditadura sanguinária do narcogeneral Hugo Banzer Suárez foi crucial para a luta pela redemocratização do país. Durante a campanha eleitoral em que foi eleito vice-presidente do líder Hernán Siles Suazo, do Movimiento Nacionalista Revolucionario de Izquierda (MNRI), foi vítima atentado do qual se salvou como por milagre, pois o avião que o levaria havia sido sabotado e todos os demais ocupantes morreram no incêndio (passou todo o resto da campanha internado fora da Bolívia por ter sofrido queimaduras graves, tendo feito, inclusive, diversas cirurgias plásticas).
Néstor Paz Zamora, irmão mais velho que Jaime Paz, morreu de inanição em Teoponte em outubro de 1970, depois de um confronto com tropas militares na repressão à resistência armada contra o governo títere e sanguinário de René Barrientos, o general vice-presidente que golpeou Paz Estenssoro em novembro de 1964. Foi guerrilheiro do Ejército de Liberación Nacional (ELN), organização fundada por Che Guevara. Ex-seminarista, ele sempre se declarou cristão e se sentia na obrigação de lutar contra as desigualdades e a opressão do proletariado, segundo a carta que teria deixado à sua Companheira, Cecilia Ávila Seifert.
Tio de Néstor e Jaime Paz Zamora, Óscar Zamora Medinacelli, secretário-geral do Partido Comunista Marxista-Leninista (PCML), dissidência maoísta do Partido Comunista de Bolivia (PCB) e comandante da guerrilha de Ñancawazú, no final da vida se aliou ao sobrinho, Jaime Paz. Também Rodrigo é sobrinho-neto do patriarca Victor Paz Estenssoro, líder, ao lado de Hernán Siles Suazo (MNRI) e Juan Lechín Oquendo (líder da Central Operária Boliviana, COB), da Revolução Nacionalista de 9 de Abril de 1952 -- responsável pelo fim da escravidão ainda reinante na Bolívia, o "pongaje"; pela conquista do voto do analfabeto; pela Reforma Agrária; pela Reforma Urbana; pelas leis trabalhistas e, sobretudo, pela participação dos trabalhadores na disputas eleitorais --, mas que depois de ter sido cooptado pelo governo de John Kennedy no início da década de 1960, na maturidade ficou à direita do espectro político, mesmo assim conseguindo o terceiro mandato e elegendo seu sucessor, o neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada, Goni, que renunciou seguido pela renúncia, meses depois, do vice Carlos D. Mesa Gisbert, pelas medidas antipopulares e ter perdido a governabilidade e levando o MAS de Evo Morales ao governo por quase duas décadas.
A grande dúvida é que, com esse histórico de familiares ligados à esquerda e que promoveram importantes transformações no século XX, o recém-eleito, cuja consigna é "capitalismo para todos" (nós sabemos o que é isso para a classe trabalhadora, que votou nele por falta de opção diante do equívoco estratégico da esquerda boliviana, sobretudo de Evo Morales e seu "voto nulo") conseguiria manter esse apoio popular durante seu mandato presidencial de cinco anos?
Como não houve um diálogo com os setores de esquerda, corre-se o risco de ser um mandato com o mesmo fim do liberal Tuto Quiroga em 2001, dos neoliberais Gonzalo Sánchez de Lozada em 2003 e Carlos Mesa Gisbert em 2004 -- que renunciaram aos cargos antes da eleição por três mandatos sucessivos de Evo Morales a partir de 2005 e as inegáveis transformações históricas promovidas na Bolívia, cujo ex-ministro da Economia no cargo de presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, ao ser cooptado pelas elites, traiu e arruinou todo o processo de transformações democráticas -- e a golpista Jeanine Áñez em 2020, também marcado por medidas antipopulares, entreguistas e liberais.
Quem viver verá.
Ahmad Schabib Hany
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