"Se va como se puede, no como se quiere..."
Misto de poeta e profeta, Don Ciriaco era um trabalhador rural de nacionalidade paraguaia nos tempos do cosmopolitismo local. Se ele tinha alguma propriedade? Não, do mesmo jeito que veio se foi, não sem deixar um legado para a posteridade, graças à generosidade do saudoso Doutor Lício.
"Se va como se puede, no como se quiere..." Sábias palavras de Don Ciriaco, primeiro cliente como "advogado dativo" do saudoso Amigo e Advogado Lício Benzi Paiva Garcia, diversas vezes presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB local. Ele me contara essa quase parábola pouco antes de sua eternização, no início deste milênio.
Embora trágica (a história de Don Ciriaco), é emblemática: em fins da década dos cinquenta do século XX, o então recém-formado bacharel em Direito retorna à sua terra para se preparar para o Exame da Ordem e abrir seu escritório jurídico. Trabalhista histórico, o Advogado Lício Benzi, antes de atender clientes endinheirados (ou minimamente solventes para pagar pelos seus serviços de profissional liberal), é chamado para atender um caso como "advogado dativo", isto é, de graça. E quem era o cliente?
Um capataz paraguaio de meia-idade que, de três em três meses, vinha à urbe para receber seus haveres, pagar suas contas, fazer compras e, como "ninguém é de ferro", pagar por seus momentos "íntimos". Acontece que "nas quebradas" conhecera havia um ou dois anos uma jovem profissional do sexo que lhe aflorara os sentimentos e, mesmo não revelando isso à jovem, ele fazia questão de procurá-la na casa de Dona Maria Mulata em todas as suas vindas para a cidade.
Em sua derradeira vinda, porém, se dera mal: a jovem já estava atendendo com seus cobiçados préstimos outro cliente. Tomado de ira, entre a frustração e a indignação, decidiu expor sua contrariedade dando uns tiros para o alto, não para alvejar alguém, mas para deixar patente seu descontentamento com a falta de sorte, essa sina que o perseguia desde a juventude. O problema é que um dos projéteis ricocheteara no caibro do salão, tomado de gente com esse mesmo propósito, o de procurar consolo e prazer para as decepções do cotidiano.
Para azar do atingido e do próprio Don Ciriaco, a munição não tomou conhecimento do seu desinteresse de alvejar alguém, e, de pronto, lá estava um corpo estendido no chão. Como ele não era de fugir de suas responsabilidades, até que tentaram as suas conhecidas que ele desse uma saída à francesa. Recusou-se peremptoriamente, e aguardou pela chegada dos policiais. Não resistiu à prisão, foi passivamente para a Cadeia Pública, hoje "Casa do Artesão", na rua Dom Aquino, defronte à escola estadual que leva o nome da mãe do ministro da Educação da ditadura mesmo ela estando viva e nunca tendo visitado a cidade (na época a apoteótica Praça Uruguai, local de encontros amorosos de todas as classes sociais).
Pois coube ao Advogado Lício Benzi atendê-lo como Advogado Dativo. Desde o primeiro encontro, Don Ciriaco o recebia com o emblemático "se va como se puede, no como se quiere" como cumprimento, um mantra que martelava a consciência do jovem advogado e seguidor da causa trabalhista, isso até o último dia de sua existência.
Talvez mais que a qualquer outro cliente, o jovem advogado dedicou sua consciência e seu denodo profissional para conseguir abreviar seu martírio naquele espaço nada acolhedor: como Don Ciriaco não tinha família no Brasil (ele era paraguaio e se recusava a dizer onde estavam os seus familiares mais próximos), o Advogado Lício Benzi era quem o visitava todas as quartas-feiras, ininterruptamente. Levava-lhe, como se parente fosse, biscoitos, frutas, material de higiene e roupas de seu gosto. Ofereceu-se diversas vezes para ligar ou fazer carta -- ou enviar carta -- a seus parentes, mas Don Ciriaco era de opinião, e nunca revelou esses familiares e, mais, de onde ele procedera, pois a coletividade paraguaia não o conhecia, somente o "patroncito" que também reclamava pela falta do capataz fiel e incansável.
O que mais impressionara o jovem advogado era a sinceridade do capataz, que em momento algum aceitara negar a autoria dos disparos. Eis a emblemática resposta: "Eu não nego ter disparado todos os tiros. Mas eu não matei aquele infeliz, ele é que atravessou na hora errada. Como posso matar alguém que nem o nome conheço?" Mesmo difícil de conseguir uma brecha para encurtar sua penúria, o jovem advogado conseguiu sensibilizar o corpo de jurados no Tribunal do Júri, e com sua emocionante e eloquente oratória, conseguiu uma pena pequena diante da gravidade do caso, afinal uma vida havia sido ceifada, e por motivo torpe. Dois anos depois da condenação, em que semanalmente o jovem advogado fazia questão de visitá-lo com toda a atenção que não tinha de seus familiares, lá estava em liberdade o sábio Don Ciriaco. Ficaram amigos até o final da Vida do capataz, que se eternizou sem ter revelado a localidade de sua Família no Paraguai.
Mas o Advogado Lício Benzi Paiva Garcia levou consigo o aprendizado: "Se va como se puede, no como se quiere..." Era, desde que me contara essa história, a maneira como nos cumprimentávamos quando nos encontrávamos, fosse na rua ou nos compromissos em que tínhamos em comum. Saudades, Doutor Lício.
Nem Macondo, nem Sucupira: é Burácom o que inspira.
É o que temos...
Ahmad Schabib Hany