sábado, 10 de julho de 2021

TRIBUTO PARA MARIA IMACULADA GOMES

TRIBUTO PARA MARIA IMACULADA GOMES

Um ano e quatro meses depois de sua eternização, perplexo com essa revelação, faço este tributo para a Amiga que a Vida me presenteou e que me deu importantes lições para viver.

Estávamos em fevereiro de 1981, e logo que embarquei na Ferroviária Internacional de Corumbá, depois de ter passado as primeiras férias sem a minha Avó Guadalupe Ascimani de Hany (que havia se eternizado em dezembro de 1980, durante o estado de sítio na Bolívia sob o general narcotraficante Luis García Meza), deparei-me com duas até então colegas comensais no pensionato da querida e saudosa Dona Raimunda, situado na Rua Aquidauana, 66, centro de Campo Grande.

Maria Imaculada Gomes e Alice Gonçalves eram vendedoras de uma das lojas das Casas Pernambucanas da capital, e também haviam embarcado no emblemático trem noturno da Noroeste depois de passar o feriado de carnaval na casa da Família de Imaculada, como sempre a chamamos. No início da viagem fomos ao vagão-restaurante para passar o tempo até conseguir conciliar o sono, no embalo e na percussão das rodas do trem em contato com os trilhos.

No pensionato de Dona Raimunda - generosa senhora do Pará a mim apresentada pelo querido Donizete Cardoso, colega na pensão de Dona Horiza e seu Hotel dos Fazendeiros -, sempre que possível, trocávamos meia-dúzia de palavras enquanto aguardávamos a vez de almoçar. Por conta disso, nos conhecíamos de nome, mas nunca havia calhado de nos perguntarmos de onde éramos oriundos. Mato Grosso do Sul então contava com apenas dois anos de existência institucional, e Campo Grande era destino de migrantes de todo o Brasil, daí porque perguntar sobre a procedência do interlocutor não era de bom tom.

Eu costumava comer ‘aquele’ bife a cavalo servido no trem, mas Imaculada e Alice não quiseram pedir, o que me fez demover daquela decisão. Alice propôs um brinde ao nosso inusitado encontro: pela primeira vez ela vinha para o Pantanal e tanto Imaculada como eu jamais imaginávamos sermos de Corumbá, ainda que ambos oriundos de outras localidades (ela era de Minas Gerais e chegara ainda criança ao coração do Pantanal e da América do Sul). A conversa regada a refrigerante fez efeito, e logo nos baixou o sono...

Voltamos para nosso vagão. As duas Amigas encontraram suas poltronas intactas. Eu não: havia uma moça literalmente apagada na minha. Envergonhado, não quis acordá-la e me encostei próximo do espaço dos lavabos, ao final do vagão. Imaculada, observadora, veio ao meu encontro para me convidar para ficar no recosto de sua poltrona, mas recusei agradecido. Naquela época, mais que timidez, era fundamental reiterar o respeito pelas Amigas, mas seu gesto me marcou profundamente, como depois lhe revelei.

De volta à rotina, em Campo Grande, voltamos a nos encontrar no pensionato de Dona Raimunda. Na hora do almoço, como de hábito. Acompanhada da Amiga inseparável, Alice, uma catarinense que adotara Campo Grande na infância. Para não constranger Imaculada, pois eu passei a morar no pensionato, costumávamos conversar no corredor externo até serem liberadas as vagas nas longas mesas com os comensais, mais de cento e cinquenta só na hora do almoço. Além de Alice, outros colegas da mesma loja vinham almoçar no pensionato e não podíamos dar asas a maledicências de eventuais desafetos.

Em poucas semanas nos tornamos grandes Amigos, a ponto de passarmos a trocar muitas confidências: tínhamos em comum a realização pessoal e profissional como jovens ávidos de novos horizontes. Além dos estudos, nossas conversas tratavam de desabafos, em especial no ambiente de trabalho, onde chefes ou encarregados assediavam as colegas mais jovens, em sua maioria solteiras. Tanto que acordamos, para esse efeito, que ela me apresentaria como ‘namorado’.

Em Campo Grande ela morava com sua Irmã, já casada e Mãe de um casal de Filhos. No Conjunto dos Ferroviários, Bairro São Francisco. Por sinal, bem perto do Patronato São Francisco, onde estudava sua Sobrinha mais velha e um ano antes eu havia dado aulas. A Irmã Maria Lucion, querida e generosa Diretora do educandário, logo que nos viu, veio a nosso encontro, e não escondeu a felicidade de ver a Família de Imaculada em minha companhia. Parece que a sábia franciscana interpretava os olhares de jovens como nós. Não demorou muito, nossa Amizade se intensificou.

Quando a apresentei ao querido e saudoso Amigo Senhor Mário Albernaz, ele a convidou para participar, na medida do possível, das atividades que realizávamos. O problema é que viajávamos muito para o interior do estado por causa do projeto que desenvolvíamos então, que me levou a trancar matrícula na FUCMT. Ela estava concluindo o ensino médio (segundo grau, na época), na Escola Raul Sans de Matos (entre Vila Carvalho e São Bento). Acompanhei-a algumas vezes às aulas, que coincidiam com as minhas, do lado oposto da cidade. Ela também me acompanhou em algumas viagens curtas, como a Bandeirantes e Jaraguari, tendo encantado todas as pessoas Amigas que a conheceram. Sua discrição e meiguice chamavam a atenção das pessoas. Seu Juarez, de Bandeirantes, que nos recebeu em sua casa, disse estar encantado com ela, por sua maneira de ser.

No início de 1982, acredito que em abril, me surpreendeu com sua decisão de retornar a Corumbá em caráter definitivo. Disse-me de sua desistência de seu projeto de Campo Grande, agradecendo por nossa Amizade (dessas com letra maiúscula), que disse levar para toda a Vida. Sempre como Amigos, voltamos a nos ver, em breves encontros, e em um dos derradeiros me fez o impactante convite, de que fosse um dos seus padrinhos de casamento, pois decidira voltar com um ex-namorado que a pediu em casamento, a ser celebrado na Primeira Igreja Batista de Corumbá.

Senti-me lisonjeado com o convite (logo naquela em cuja escola, em 1969, me preparei para o exame de Admissão, isto é, para o ingresso ao ginásio, e guardava lembranças muito caras, como o Pastor Cosmo Gomes de Souza, a Professora Irlene Santos e seu Cunhado Roque Bareiro, meu colega de turma), mas declinei dele. Confesso: não me sentia à altura de ser padrinho de casamento, mesmo que a considerasse Amiga muito especial, pois eu nem era casado. Ela compreendeu, como de hábito: conversando, tínhamos essa conexão, o que fortalecia nossa Amizade.

Cinco anos depois, em 1987, encontramo-nos por acaso, na quadra anterior ao Colégio Santa Teresa, em Corumbá. Emocionados, pusemos nossa conversa em dia, da maneira mais telegráfica (hoje seria tuiteriana), concluída com a chegada do Pastor Cosmo, que vinha ao encontro dela. À época já era Mãe de um casal de Filhos. Passaram-se mais 16 anos, e nos reencontramos na Cidade Dom Bosco, em 2004: ela estava indo ao encontro de seu terceiro Filho, então de 9 anos, aluno do fundamental. Aproveitei a oportunidade para lhe apresentar minha então futura Companheira, quando visivelmente feliz nos desejou muita felicidade. Foi esse o nosso encontro derradeiro.

Para minha surpresa, quatro anos depois, por meio de meu agora saudoso Amigo Franz Wünder Arza, tomo conhecimento, num encontro casual em um antigo supermercado local, que o Filho mais velho de Imaculada se casara naquela semana com a Filha caçula dele. Era 2008. Visivelmente desconcertado, ele se desculpara por não termos sido convidados para a celebração, ao se lembrar da nossa, ocorrida três anos antes e para a qual ele fizera questão de estar presente com a Família - “para testemunhar o casório do solteirão”, como costumava caçoar comigo.

Por ironia, no mês em que Franz se eterniza sou impactado também pela eternização da querida Imaculada, ocorrida um ano e quatro meses antes. Sua discrição, meiguice e, sobretudo, seu legado de Amizade, compreensão e lealdade ficarão na memória e no coração.

Até sempre, querida Imaculada, e obrigado por sua Amizade, ter existido e me ensinado a viver como adulto!

Ahmad Schabib Hany

Nenhum comentário: