quinta-feira, 1 de março de 2018

Dona Gabriela Soeiro, retrato da cidadã do século XXI



Dona Gabriela Soeiro, retrato da cidadã do século XXI
Dona Gabriela Soeiro é o protótipo da mulher guerreira do início da segunda metade do século XX. Estoica, corajosa, determinada, mas sem perder a ternura, a meiguice e a feminilidade. Dona Gabi, para os amigos, era filha de boliviana com português e se casou bem nova com um homem distinto, estudado, funcionário público federal, bem mais velho que ela. Ficou viúva bem jovem, vindo da Amazônia para Corumbá com os seus filhos, em fins da década de 1950.
Corumbá, então, era a mais cosmopolita das cidades do Centro-Oeste brasileiro. Tão logo chegou, encontrou emprego no imponente Grande Hotel Corumbá, na esquina do Jardim Independência. Era a telefonista, e dividia a função com a desde logo sua melhor Amiga até o final da Vida, Dona Genil da Silva Ojeda. Hotéis com aquele padrão, na época, dispunham de uma central telefônica (os veteranos “PBX”, uma geração anterior aos “PABX”), cuja operadora direcionava manualmente as ligações solicitadas ou recebidas para os ramais dos apartamentos ou dos diferentes setores da administração. As pessoas escolhidas, mais que hábeis, tinham que ser discretas e, sobretudo, de extrema confiança, pois acidentalmente podia se ouvir parte da conversa entre um e outro interlocutor.
Ela contava que, no tempo em que trabalhou naquele hotel, conheceu as pessoas mais ilustres da sociedade corumbaense, além de muitas pessoas públicas (políticos, empresários e artistas) que vinham visitar a Cidade Branca. Muito discreta, nunca revelou os bastidores da rotina dos funcionários quando, por exemplo, chegavam autoridades nacionais ou estaduais (geralmente em período eleitoral para apoiar os seus aliados regionais), tamanha a importância que detinha o então primeiro centro comercial da Região Centro-Oeste. Embora fosse conservadora na política (declaradamente fã do recém-falecido Doutor Wilson Barbosa Martins, à época na UDN), tinha um carinho especial pelo Doutor Wilson Fadul, deputado trabalhista e ex-ministro da Saúde do Presidente João Goulart, responsável pela criação do Serviço de Assistência Médica de Urgência (SAMDU), sendo Corumbá um dos municípios pioneiros a implantá-lo, com o Doutor Cleto Leite de Barros à frente.
Com Dona Genil partilhou de outras experiências laborais, sempre em empresas ligadas ao mesmo grupo proprietário do célebre hotel: funcionária dos glamourosos cines Tupi e Santa Cruz, e mais tarde, com a implantação da pioneira Cooperativa Telefônica Corumbaense (COTECO), das primeiras telefonistas, cujo salário permitiu dar um futuro melhor às suas três crianças, todas elas com formação universitária. Os dois filhos foram cedo estudar em Campinas, e a única filha, a querida Amiga Maria Auxiliadora Figueiredo, ex-colega de minha Irmã caçula, ficou para acompanhar Dona Gabi até concluir o ensino médio em Corumbá, em fins da década de 1970, depois tendo também rumado para a região de Campinas, onde reside e trabalha até a presente data.
Durante muitos anos ela foi proprietária de uma mercearia situada na esquina das ruas Cuiabá e Antônio João. Com a inflação descontrolada no governo do general João Figueiredo, o último do regime de 1964, ela foi obrigada a fechar seu comércio, passando a ser vendedora autônoma de produtos de catálogos, sobrevivendo com dignidade e altivez até fins da década de 1980. Para complementar sua renda, dedicava-se ao trabalho de manicura e pedicura, restrito a poucos clientes, atividade que exercia como uma verdadeira doutora, rigorosamente higiênica e delicada (jamais alguém reclamou de algum “bife”, como se sói dizer dos acidentes nessa atividade profissional). Sua conduta altiva, e ao mesmo tempo humilde, a tornou uma referência na cidade.
Em 1996 sobreviveu a um câncer depois de se submeter a diversas cirurgias e longo tratamento no hospital-escola da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp). O fato de ter um filho farmacêutico com vasto relacionamento no estado de São Paulo muito contribuiu para que, graças a seu espírito empreendedor, seguisse em frente em sua Vida de guerreira e batalhadora incansável. Permaneceu algo como dez meses morando praticamente em São José do Rio Preto, em razão da complexidade do tratamento. Como o hospital-escola dispõe de equipe interdisciplinar para atender aos pacientes no final do tratamento -- ao ficar ostomizada em caráter definitivo, recebeu apoio psicológico e socioassistencial, em que aprendeu a conviver com a nova realidade --, voltou a Mato Grosso do Sul com a determinação de multiplicar os benefícios conquistados por meio daquela equipe.
Dona Gabi, com o apoio da enfermeira e professora Margarete Knock Mendonça, do curso de enfermagem da UFMS em Campo Grande, e outros colegas da área de saúde, criou o GARPO/MS (Grupo de Apoio e Reabilitação da Pessoa Ostomizada de Mato Grosso do Sul). Primeiro, dedicou-se à viabilização da entidade na capital, cujos ostomizados, em sua totalidade, passaram a ser atendidos dentro de um protocolo com muita dignidade e cidadania. Em 1998, como primeira região do interior do estado, passou a priorizar o Pantanal (GARPOPAN), por duas vezes tendo sido criada uma comissão provisória, mas a falta de apoio dos gestores naquela época inviabilizou o trabalho.
Nem por isso desistiu. Com o apoio do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário, criou um ponto-focal constituído de profissionais autônomos (psicóloga, assistente social, nutricionista, enfermeira, técnico de enfermagem, advogada e outros voluntários) e com o GARPO/MS, que era entidade de âmbito estadual, definiu um protocolo de encaminhamento direcionado para a Secretaria de Estado de Saúde, de modo que todos os pacientes recém-ostomizados na região do Pantanal pudessem receber as órteses e demais recursos de apoio às pessoas que, por acidente, doença ou nascença, precisassem desses instrumentos, considerados de altos custos, para manter sua saúde, com qualidade de vida e cidadania.
Dona Gabi era didática para explicar que, diante da iminência de uma cirurgia que levasse a uma ostomia (urostomia, colostomia, hiliostomia ou até uma traqueostomia), cabia ao ex-paciente (agora usuário do SUS) a capacidade de “dar a volta por cima”. É que muitos ostomizados ou ostomizadas perderam seus casamentos, empregos e até a vida por não poderem contar com um grupo de ajuda mútua como o GARPO/MS, que ela fundou e dirigiu como se fosse mais um filho em sua Vida. Além do risco de depressão, o desconhecimento de como lidar com a nova realidade e os dispositivos, higienizar-se, cuidar-se, alimentar-se adequadamente, saber até como relacionar-se com seu parceiro (ou sua parceira), era um desafio. Por isso a importância do empoderamento do usuário do SUS.
E Dona Gabi foi uma verdadeira cidadã para a consolidação do controle social, tanto em Corumbá e Ladário, como em Mato Grosso do Sul. Com a altivez que lhe era peculiar -- e a humildade igualmente indissociável à sua cativante personalidade --, entra para a história da cidadania pós-Constituição de 1988 como uma protagonista exemplar, digna de ser o retrato da cidadã do século XXI, sempre à frente de seu tempo.
Ahmad Schabib Hany

2 comentários:

O caminho se faz ao caminhar disse...

Estimado(a)s Amigo(a)s,

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher (8 de março), depois de homenagear (graças à gentil colaboração de vários/as Amigos/as, entre eles/as, Mayra Da Paz Wegrzyn, José Finocchio e Angélica Bezerra) Carmen Velasco Portinho, Wega Nery e Graziela Maciel Barroso, gostaria partilhar com Vocês a memória digna e altiva de Dona Gabriel Soeiro, de cujo falecimento, ocorrido há dois anos, somente tomei conhecimento alguns dias atrás, por meio de uma querida Amiga conhecida por Sandrinha.

Grande abraço!

Fraternalmente,

Schabib

Schabib Hany disse...

Ainda que tardiamente, fiquei feliz de ver que o registro feito por nós, entre 9 de fevereiro e 1º de março de 2018, sobre o pioneirismo de três grandes mulheres corumbaenses do início do século XX, com o fundamental e imprescindível apoio das/o Professoras/or Mayra da Paz Wegrzyn, José Finocchio e Maria Angélica de Oliveira Bezerra (todos da UFMS), serviu para celebrar o Dia Internacional da Mulher em Corumbá: graças à Jornalista e Mestra Lívia Gaertner, o "Diário Corumbaense" da Rosana Nunes (https://diarionline.com.br/?s=noticia&id=100777) publicou uma reportagem a propósito, intitulada "Mulheres corumbaenses que marcaram nome no país". Na reportagem, breves mas relevantes dados da inovadora e cosmopolita artista plástica Wega Nery (inclusive por ter ousado talentosas técnicas em suas criações e de ter sido a Mãe singular do grande Jornalista Tão Gomes Pinto, ex-companheiro de aventuras do genial Jornalista ítalo-brasileiro Mino Carta, desde os tempos da "Veja", "IstoÉ", "Jornal da República", "Senhor". "Istoé/Senhor" e "CartaCapital"), da revolucionária e ousada arquiteta e urbanista Carmen Velasco Portinho (que, além de ter ajudado a formar suas irmãs e lutar pela emancipação da mulher, foi responsável pelo primeiro programa habitacional popular da história do Brasil, no então Distrito Federal, Rio de Janeiro) e a determinada e incansável botânica Graziela Maciel Barroso (não tendo se limitado a fazer ciência, mas a transformá-la, em conceitos e práticas, tendo sido a única dela a receber homenagem em vida em sua terra natal, por iniciativa de colegas seus "de esquerda" da UFMS).

Mas o importante é que a cidadania local, isto é, a população como um todo comece a se apropriar dessas informações, e ao lado de outras grandes mulheres, como a procuradora de Justiça Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner (a primeira mulher na Corregedoria-Geral do Ministério Público de São Paulo), a artista plástica, chargista, poeta e escritora Marlene Terezinha Mourão e as saudosas Professora e Historiadora Eunice Ajala Rocha (responsável pelo resgate da viola de cocho, do cururu e siriri, dos folguedos populares e da primeira pesquisa sobre a contribuição dos afrodescendentes escravizados na Corumbá do pós-guerra da Tríplice Aliança) e a ativista cultural e Professora Heloísa Urt (responsável pela imortalização da viola de cocho como patrimônio imaterial de Corumbá e Ladário e pelo reconhecimento dos queridos mestres cururueiros Agripino Magalhães Soares e colegas de Corumbá e Ladário).

Para democratizar e disseminar essas verdadeiras referências identitárias é preciso que grandes mulheres de hoje, entre as quais a socióloga Wanessa Pereira Rodrigues, que se notabilizou pelo empreendedorismo e inovação à frente da Fundação de Cultura de Ladário, e a ativista cultural e professora Marcelle Saboya Ravanelli, atual coordenadora de eventos culturais do SESC Corumbá, possam ser ouvidas, apoiadas e respaldadas em suas iniciativas igualmente ousadas e pioneiras.