quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

COSMOPOLITISMO SECULAR

Cosmopolitismo secular

100 anos atrás, o cosmopolitismo corumbaense atingia seu ápice. Dois anos depois da Semana de Arte Moderna, de São Paulo, o entreposto comercial das águas interiores que ganhara projeção no pós-guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai vivia os momentos de glória que precedem à finitude trágica dos ciclos econômicos capitalistas. Mas um século depois, a despeito do provincianismo acentuado com a divisão de Mato Grosso, o cosmopolitismo permanece incólume, imponente, para desespero da capitalzinha de meia pataca, antro do neofascismo do abominável...

Em minha primeira reflexão escrita (e pretensamente compartilhada com Você, paciente leitor/leitora que me honra com sua leitura crítica e inteligente) de 2024, não poderia deixar de homenagear Amigo(a)s cujas pegadas deixaram marcas indeléveis na memória daqueles -- como os Amigo(a)s presentes e incansáveis Adnan Hamad Haymour, Adolfo Rondon Gamarra, Aguinaldo Rodrigues, Aidê Arruda Varela, Aleixo Paraguassú Netto, Alle Yunes Solominy Neto, Alexandre Gonçalves dos Santos, Amarílio Ferreira Junior, Ana Claudia Salomão da Silva, Aníbal Carlos Monzón, Anísio Guilherme da Fonseca, Armando Carlos Arruda de Lacerda, Arturo Castedo Ardaya, Bassem Hussein, Carmelino de Arruda Rezende, Carmen Chamoun Calazans, Celso Cordeiro, Cláudia de Araújo Lima, Cleonice de Souza Bueno, Cristiane Sant’Anna de Oliveira, Dary Esteves Jr., Denise Campos Diniz, Edenir de Paulo, Edson Henrique Figueiredo de Moraes, Edy Assis de Barros, Elaine Gomes Ferro, Elenir Machado de Mello, Eliseu Campos, Estela Márcia Rondina Scandola, Eva Granha de Carvalho, Fábio Issa Ahmad, Geraldo Alves Damasceno Jr., Gilberto Luiz Alves, Gisela Angelina Levatti Alexandre, Hélia Costa, Herman Herrera Valle, Iara Valentina Torres de Souza, Irlene Maria dos Santos Bareiro, Jalila Safa, João Bortolanza, João de Souza Alvarez, Joana da Costa Lima, Joel de Carvalho Moreira, Joel de Souza, Johny Henry Vaca Arza, Johonie Midon de Mello, Jonas Luna de Lima, José Carlos Françolin, José Carlos Ziliani, José Eduardo Maldonado Katurchi, José Luís Finocchio, José Luiz Peixoto, Júlio Xavier Galharte, Juvenal Ávila de Oliveira, Kati Eliana Caetano, Lejeune Mirhan Xavier de Carvalho, Lígia Maria Baruki e Mello, Lindivalda Gonçalves dos Santos, Loide Bueno de Souza, Lúcia da Silva Santos, Lúcia Salsa Corrêa, Luiz Antônio Torres Taques, Luiz Carlos Katurchi, Luz Marina Cavalcante da Silva, Mara Leslie do Amaral, Marcelo Moura, Márcia Ivana do Amaral, Margareth Cabral Parabá, Margareth Matas Pereira, Maria Angélica de Oliveira Bezerra, Maria Augusta dos Santos Rahe Pereira, Maria Cristina Atayde, Maria de Fátima Garcia da Silva, Mariliz Romero de Aquino, Marisa Bittar, Marlene Terezinha Mourão, Masao Uetanabaro, Munther Suleiman Safa, Najeh Abdel Hamid Mohd Mustafa, Nasser Safa Ahmad, Nelson Abnur Urt, Nely Safa, Paulo da Costa Lima, Paulo Marcos Esselin, Paulo Matas Pereira, Paulo Roberto Cimó Queiroz, Raul Nunes Delgado, Raul Valle Herrera, Regina Marchesini Alves, Roque Bareiro, Rosa das Graças Nunes Delgado, Rosângela das Graças Ruas, Rosely Rios Midon, Semy Alves Ferraz, Sílvia Maria da Costa Nicola, Simone Yara Benites da Silva, Soely Ivacquia de Oliveira, Solange Gomes Galeano, Suzana Maia, Tânia Nozieres de Santana, Tereza Cristina Katurchi Exner, Tito Carlos Machado de Oliveira, Valmir Batista Corrêa, Yahya Mohamad Omar, Zacaria Yahya Omar, e, óbvio, todas as minhas Irmãs e meu Irmão, Sobrinhas e Sobrinhos e Filha e Filho -- que teimam resistir a tempos tão adversos e que me levam a não desistir dessa luta inesgotável.

Quem conhece a história (sobretudo recente) de uma região ou de um povo dificilmente pode perder-se em firulas de narrativas estonteantes, geralmente paridas em agências de propaganda contratadas por governantes autoproclamados ‘visionários’. Mato Grosso do Sul é vítima disso desde antes de sua criação, herança que é de uma ditadura militar impune que, para prorrogar seus dias de sobrevida, não só fechou (em abril de 1977) o Congresso Nacional, cassou os líderes oposicionistas e pôs ‘em recesso’ o Supremo Tribunal Federal (STF), na maior cara-de-pau. A alegação era de que interesses da Segurança Nacional (sic) impunham tais medidas, nitidamente casuísticas e autoritárias. É o tal ‘Pacote de Abril’, às vésperas da Semana Santa daquele ano. Entre as mais importantes alterações feitas ao arcabouço jurídico brasileiro, constam o nefasto instituto do senador ‘indireto’ (ou biônico, porque sem votos) e a adoção da sublegenda para permitir que os candidatos a senador da Arena, que estava dividida, juntassem os votos para derrotar os candidatos do MDB (oposição à ditadura). Por essa razão, aliás, o estado do Rio de Janeiro e a Guanabara (antigo Distrito Federal) foram fundidos no atual Rio de Janeiro (em 1975), uma das causas do caos administrativo existente hoje, bem como Mato Grosso foi dividido (em 1977): enquanto o Rio de Janeiro perdia três senadores da oposição, Mato Grosso do Sul ganhava três senadores para a Arena).

Amigos queridos, algumas décadas mais velhos que eu -- como os saudosos Seu Jorge José Katurchi, Seu Augusto César Proença, Padre Ernesto Saksida e Dilermando Luiz Ferra, para nomear alguns --, me ajudaram muito para compreender melhor a peculiaridade da sociedade corumbaense, ou melhor, o cosmopolitismo vicejante, a despeito do século decorrido quando de seu ápice. Como uma cidade do interior, empobrecida pela ausência de políticas consistentes de desenvolvimento sustentável e sustentado (quadro que se agravou desde que Campo Grande passou a ser a capital da nova unidade da federação). E nesse particular, não há como dizer que isso seja algo deliberado. Não é. A questão central baseia-se no provincianismo predominante na ‘Nova Cap’, Campo Grande: como uma sociedade endógena, ensimesmada, sem rios navegáveis internacionais, poderia ter os horizontes amplos, uma cosmovisão de vanguarda. É uma questão histórica, portanto, decorrente do próprio processo histórico. Enquanto isso, Corumbá e Ladário amargam a sua condição de caudatárias de projetos descolados da realidade pantaneira.

Em artigo recente, publicado no Correio de Corumbá, o Amigo Armando Carlos Arruda de Lacerda faz uma oportuna reflexão alusiva ao (palavras minhas) projeto megalomaníaco agora batizado de ‘RILA’ (antes era ‘Rota Bioceânica’). Um desperdício de dinheiro público quando existem ferrovia, rodovia e rio navegável em pleno funcionamento, precisando, isto sim, de obras de recuperação, até por causa do excesso de peso dos diferentes veículos usados para o transporte de commodities extraídas do coração do Pantanal e da América do Sul. A ponte de Morrinho, no Rio Paraguai, em Corumbá, construída durante o Governo de José Orcírio Miranda dos Santos, pede socorro, mas as autoridades estaduais, as mesmas que vêm fazendo das tripas coração para concluir um projeto caríssimo e, se não houver a adoção de um conjunto de medidas para dinamizar essa futura via, será mais um elefante branco para ser visto pela população de Porto Murtinho, lá debaixo...

Ora, qual a menor distância entre dois pontos? A linha reta, óbvio! Empresários e políticos de horizontes estreitos não se dão conta do aumento da distância ao dar a volta para não passar pela Bolívia. Gostem ou não, a Bolívia não só é uma velha parceira (desde antes da construção da ferrovia Corumbá -- Santa Cruz de la Sierra), basta estudar um pouco de História, Economia e Geopolítica latino-americana. O problema é que os autoproclamados paladinos da ‘RILA’ estão ávidos de mostrar serviço, ou melhor, obras às suas paróquias, que não se dão conta dos absurdos que estão fazendo.

Morei, estudei, trabalhei e pesquisei entre dezembro de 1978 e outubro de 1984 em Campo Grande e -- à exceção de cidadãos brilhantes como Plínio Barbosa Martins, Wilson Barbosa Martins, Wilson Fadul, Ricardo Brandão, Alberto Neder, Fausto Matto Grosso, Celso Costa, Eudes Costa, Carmelino Rezende, Aleixo Paraguassú Netto, Leonardo Nunes da Cunha, José Otávio Guizzo, Roberto Moaccar Orro, Sérgio Manoel da Cruz, Mário Corrêa Albernaz, Augusto Assis Filho, Onofre da Costa Lima Filho, Manoel Sebastião da Costa Lima, Maria Augusta Rahe Pereira, Paulo Corrêa da Costa, José Rodrigues dos Santos, Marcelo Barbosa Martins, José Márcio Licerre, Mário Ramires, Yone Ribeiro Orro, Yara Maria Blum Penteado, Paulo Eduardo Cabral, Berto Curvo, Marília Leite, Margarida Gomes Marques, Luiz Eduardo de Resende Vale, Paulo Roberto Cimó Queiroz, Marisa Bittar, Amarílio Ferreira Jr., José Carlos Ziliani, Tito Carlos Machado de Oliveira, Mário Sérgio Maciel Lorenzetto, Flávio Teixeira, Lúcia da Silva Santos, Caio Sobral e Paulo Marcos Esselin, entre outro(a)s -- constatei um elevado número de pessoas profundamente provincianas (sem qualquer preconceito: uma cosmovisão bem aquém do horizonte que poderia se abrir para a nova unidade da federação).

Quando decidi retornar a Corumbá, em fins de 1984, como primeiro correspondente com carteira assinada, devidamente assalariado, do jornalão que alega ter a maior tiragem do estado (outra coisa é ter, de fato, essa circulação, sobretudo em tempos de plataformas multimídia), muito(a)s Amigo(a)s ficaram, no mínimo, perplexos. Alguns questionaram a minha decisão, mas não entenderam, pois achavam retrocesso. Passadas quatro décadas, praticamente, tomo a liberdade de justificar com este modesto texto, cuja síntese tenta justificar, senão explicar, aquela decisão: o cosmopolitismo, ainda presente, de Corumbá, a despeito do abandono ostensivo do novo estado, fez com que não titubeasse. Não por acaso, o entreposto comercial que propiciou uma miscigenação intensa e um desabrochar cosmopolita no âmbito das culturas e das artes sofreu duras perdas durante os primeiros quatro anos de Mato Grosso do Sul.

Somente durante o primeiro mandato do Governador Wilson Barbosa Martins e dos dois mandatos do Governador José Orcírio Miranda dos Santos é que todo o ‘interior’ do estado conseguiu uma tênue reconquista de seu potencial cultural. Corumbá (e Ladário) pôde (puderam) irradiar sua exuberância cosmopolita por meio de diferentes eixos de progresso e reafirmação de seu protagonismo cidadão. O lamentável é que esse processo teve apenas dez anos de esplendor, o que, para efeitos históricos, não quer dizer muito. Mas é o que foi possível. E fica o recado: se a ‘intelligentsia’ de Campo Grande não permitir que as diversas regiões do estado possam resgatar seu tempo histórico, o Pantanal vai retomar o seu vínculo cultural com a parte que permaneceu no território de Mato Grosso. Aliás, um direito inalienável e histórico. Só depende da postura excludente e gananciosa da capital, que esqueceu rapidamente a dureza de ser ‘interior’ e passou a se comportar ainda mais ávida que a Cuiabá de outrora.

Ahmad Schabib Hany

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