segunda-feira, 2 de outubro de 2023

EVENTO ALVISSAREIRO

Evento alvissareiro

O VIII Seminário Internacional de Estudos Fronteiriços, realizado em Corumbá pelo Mestrado da área em parceria com universidades e instituições de vários países durante a semana passada, antevê um futuro promissor às cidades fronteiriças, sobretudo à Capital do Pantanal e Coração da América do Sul.

Corumbá, entre 25 e 28 de setembro, foi palco transcontinental de um evento de caráter internacional e importância científica mundial, por sinal concorridíssimo nestes insólitos tempos de negacionismo e obscurantismo sórdidos. Como fui um mero participante, não tenho como declinar nomes de todos os pesquisadores e de todas as instituições envolvidas no Seminário Internacional de Estudos Fronteiriços, vinculado ao Mestrado em Estudos Fronteiriços do Campus Pantanal (CPAN) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e a determinante parceria de diversas universidades e instituições renomadas do continente americano.

A invasão por hackers do sistema de dados da UFMS, ocorrido no dia 24 de setembro (véspera do evento em Corumbá), prejudicou sobremaneira o acesso à programação, aos nomes, currículos e instituições dos palestrantes, debatedores e participantes com direito a apresentação de trabalhos. Apesar disso tudo, o brilho e a humildade de todos e todas as pesquisadores e suas instituições fizeram com que o Seminário Internacional de Estudos Fronteiriços, em sua oitava edição, fosse coberto de total êxito.

Posso afirmar, sem risco de cometer gafe por atrevimento, que pelo menos meia centena de cientistas de diferentes áreas do conhecimento trouxe as suas contribuições para o desenvolvimento científico (desde o México até a Argentina, da costa do Atlântico à costa do Pacífico, do Caribe ao Golfo do México e de diversas universidades brasileiras, entre elas do Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia, Grande Dourados, Mato Grosso e Rondônia, além da anfitriã UFMS, em nossa região fronteiriça). Aportes qualificados de pesquisas inter e multidisciplinares em regiões de fronteira sob olhar antropológico, como na região de Chiapas (México e Guatemala, de origem Maia) ou das povos Mapuche (Chile Argentina) e Aimara (Bolívia, Peru, Chile e Equador), bem como os estudos das cidades gêmeas Guajará-Mirim (RO) e Guayaramerín (Bolívia) realizados por pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia (UFRO).

As pesquisas desenvolvidas de modo inovador (com a adoção de novas metodologias, uma delas a experiência do ‘escutatório’) pelos pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) com as populações tradicionais (ribeirinhos e quilombolas) do Pantanal e Cerrado de Mato Grosso (Poconé, Barão de Melgaço e Rondonópolis) são emblemáticas. Se houvesse maior tempo para essa troca de experiências, pantaneiros sul-mato-grossenses teriam muito, muitíssimo, a se beneficiar, não só pelo protagonismo estimulado, como também pela capacidade de resiliência ensinadas por pantaneiros mato-grossenses.

Não apenas na perspectiva da mobilidade humana (as migrações), mas em sua cosmovisão, protagonismo coletivo, desenvolvimento emancipatório e reafirmação cultural, diversas pesquisas foram expostas, em profundidade, e submetidas ao debate. Talvez o veterano entre os pesquisadores vindos, o pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que expôs sob diferentes aspectos as relações interculturais entre diversas fronteiras brasileiras mais ao sul (incluindo Ponta Porã e Pedro Juan Caballero), resume de forma plena a necessária compreensão destes estudos e os desafios inerentes.

A sessão / oficina de elaboração do Plano de Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira do Centro-Oeste do Brasil, realizada no Auditório Professor Salomão Baruki na última tarde do evento, permite antever os avanços e desafios destas pesquisas inovadoras e, obviamente, transformadoras. A propósito, diversos pesquisadores e pós-graduandos relataram o processo de pesquisa (Corumbá/Ladário, Campo Grande, Dourados, Cuiabá, Cáceres, Poconé, Barão de Melgaço, Santo Antônio de Leverger, Rondonópolis, Guajará-Mirim, Porto Velho, Uruguaiana, Foz do Iguaçu, Ponta Porã e Santa Cruz de la Sierra, entre outras) seja como comunicação, no auditório, ou como banner (pôster), no saguão, além da rica troca de experiências neste processo de interação e desenvolvimento coletivo.

Pesquisadora-docente do Mestrado em Estudos Fronteiriços do CPAN/UFMS, Lucilene Machado Garcia Arf debateu sobre o legado de protagonismo da pensadora e ativista boliviana Julieta Paredes e a concepção de feminismo comunitário por ela desenvolvido. A pesquisadora analisou a perspectiva inovadora / transformadora de Julieta Paredes no processo de afirmação / emancipação das populações originárias bolivianas no começo deste século e, de maneira didática, expôs as bases da concepção desse processo de transformação social que vem ocorrendo na Bolívia desde 2005, quando amplas camadas sociais assumiram o protagonismo político do agora Estado Plurinacional da Bolívia.

A Professora Elisa Pinheiro de Freitas, de Geopolítica do Mestrado em Estudos Fronteiriços do CPAN/UFMS, fez, ao lado de colegas, o lançamento de seu mais recente livro, com base em pesquisa apurada e autores clássicos da Geopolítica e da Energia, temática que estuda desde o tempo de mestranda, doutoranda e pós-doutoranda na Universidade de São Paulo (USP). Intitulado ‘Energia, poder e território: a geopolítica dos recursos energéticos sob a hegemonia do capitalismo’, o livro é uma edição da Paco Editorial e trata do processo de desenvolvimento energético do Brasil, que, apesar de ser caudatário dos interesses das potências hegemônicas, conquistou certo protagonismo no avanço da matriz energética de baixo carbono.

Sinceros aplausos aos realizadores, apoiadores e participantes desse ousado evento, sem dúvida, de magnitude internacional e de repercussão continental. A despeito da falta de verbas para concretizar sequer um modesto seminário, os docentes-pesquisadores tiveram a coragem cidadã de empreender uma verdadeira maratona científica em que a meta não tem sentido competitivo, mas colaborativo. Constatei a generosidade de pesquisadores da estatura da (para citar apenas um nome) Professora Cláudia Araújo de Lima, que, mesmo aposentada e residindo em Brasília, veio de van desde Campo Grande para contribuir com seus inestimáveis conhecimentos fora das mesas, estando na plenária, como tantos outros e outras colegas pesquisadoras igualmente experientes e generosas.

Embora sob indisfarçável desapontamento com, no dizer do eterno Horacio Guarany em seu memorável ‘Si se calla el cantor’ (celebrizado na voz da saudosa Mercedes Sosa), “los humildes gorriones de los diários” desta região fronteiriça que não cobriram um dia sequer de um evento de âmbito e relevância internacional que durou quatro dias, ora na Unidade 3 do CPAN/UFMS (Alfândega, Porto Geral), ora no Auditório Professor Salomão Baruki, na Unidade 2, Bairro Universitário. Com a autonomia permitida pela tecnologia digital, após o primeiro contato, o pessoal do telejornalismo poderia deixar agendada a entrevista com cada uma ou cada um dos pesquisadores, dentro da temática pertinente. Pauta, aliás, que daria para realizar durante todo o ano, ou até muito mais.

E sem qualquer afã provocador, nunca é tarde para lembrar que a história acontece nas ruas, longe dos palácios e dos burocratas. Em 1984, tanto em junho como em novembro, ocorreram em Corumbá o VII Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão (SEPE), do CEUC/UFMS, e o I Simpósio sobre Recursos Socioeconômicos e Naturais do Pantanal (sob a coordenação técnica do Pesquisador Eduardo Künze Bastos e o apoio dos Pesquisadores Arnildo Pott, Sílvia Maria Costa Nicola e Araê Book, à época chefe da UEPAE/Embrapa de Corumbá, depois primeiro chefe-geral da atual Embrapa Pantanal, além do Professor Arnaldo Yoso Sakamoto, do CEUC/UFMS), oriundo de uma parceria entre o CEUC/UFMS e o recém-criado Centro de Pesquisas Agropecuárias do Pantanal (CPAP) da Embrapa. Na falta de assessor de imprensa, este aprendiz de cidadão se prestou, anônima e voluntariamente, a ‘carregar o piano’ para preparar material para a mídia, e o pouco que está registrado nas hemerotecas locais e estaduais deve-se à teimosia dos que fizeram, a despeito da resistência dos burocratas de Campo Grande e Brasília, que não conseguiam entender o interesse de quem o fazia em troca de absolutamente nada.

Decorridos quase quarenta anos, hoje a realidade é outra, não faltam Jornalistas com diploma, até porque nossa geração lutou e conquistou com quase os mesmos protagonistas (os saudosos Professores Jair Madureira, reitor, e Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, ex-diretor do Centro de Ciências Humanas e Sociais -- CCHS -- e depois chefe de gabinete do reitor, e alguns Amigos que articularam o encontro e que gostam de discrição, não de holofotes, durante a realização do VII SEPE) para a implantação do curso pioneiro de Comunicação Social na UFMS (levou mais alguns anos para a seleção de docentes e a oferta de vagas, em 1988, e o início das aulas, em 1989).

Eram tempos de reconquista da democracia, pois 1984 já era prenúncio do fim do regime de 1964. O clima de tempos de liberdade e alívio tem discreta relação com nossos dias, contudo a ultradireita estava na exaustão e totalmente desacreditada, diferente de hoje, que ainda teima em mostrar as garras e desafiar o Estado Democrático de Direito. Longe de nos pretendermos ‘donos da verdade’ (porque ser incisivo na defesa de pontos de vista é uma razão de ser depois de um vendaval genocida que arrancou da existência milhares de seres, inclusive humanos, em nome de um negacionismo obscurantista medieval. E cabe às novas gerações manter essas conquistas, focar no desenvolvimento soberano da ciência e da tecnologia e defender o Estado Democrático de Direito, de cuja existência depende a sobrevivência de todas as espécies, inclusive a humana.

Ahmad Schabib Hany

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