sábado, 6 de março de 2021

"AS GRADES DA LIVRARIA GUATÓ" (Fausto Matto Grosso)

AS GRADES DA LIVRARIA GUATÓ

(Esta crônica, será publicada no livro Histórias que ninguém vai contar )

Crônica-memória do Camarada Fausto Matto Grosso, publicada em seu blog "Fausto Matto Grosso", como parte do livro em elaboração "Histórias que ninguém vai contar", com imagem do prédio da saudosa Livraria Guató (Campo Grande, MS), captada por tecnologia do Google Earth.

Os guatós formavam um grupo indígena que habitava na zona fronteiriça entre Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e a Bolívia. Eram índios canoeiros, respeitados pelo manejo certeiro do arco e flecha.  Não formavam grandes aldeias, mas viviam em grupos familiares esparsos que acabaram sendo afugentados pela criação de gado na região, que os levaram a se refugiarem na Bolívia ou nas periferias pobres das cidades da região.  Foram considerados extintos a partir de 1950 e, por isso, não receberam qualquer assistência do governo até 1976, quando foi encontrada uma aldeia do grupo próxima à periferia da cidade de Corumbá. A partir daí, passaram a lutar pelo seu reconhecimento étnico, com apoio de diversos setores da sociedade sul-mato-grossense. A palavra guató passou a ter um significado de resistência.

No início da década de 1980, o amigo Manoel Sebastião da Costa Lima, que viria a ser conhecido como Mané Guató, fundou uma livraria que se transformou em um dos mais importantes locais de encontro da intelectualidade do estado.

A Livraria Guató foi instalada em um sobradinho à Rua Rui Barbosa, no centro da cidade. Na edícula dessa casa, com entrada independente, funcionava o Centro de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos (CEPES), uma espécie de escola de formação política do Partidão, aberta à sociedade. A Guató funcionava como uma sala de espera para o CEPES. O CEPES e a Guató faziam uma combinação perfeita.

Ali podia ser encontrada uma ampla literatura geral e política, das mais importantes editoras nacionais e estrangeiras, entre elas a soviética O Progresso. Os temas sociais, políticos e econômicos eram o forte da livraria e os temas marxistas o carro chefe. O comando do Mané Guató era a consagração do espaço.

À livraria afluía a intelectualidade do estado, para conversar, discutir, saber das últimas e também, abastecer-se de livros clássicos e de lançamentos recentes. Era ponto de encontro de professores, jornalistas, artistas, estudantes e amantes da boa leitura. Lembro-me de um médico amigo, que passava vários meses em uma pequena cidade do interior, onde morava, e quando vinha a Campo Grande apenas ia à Guató comprava uma mala de livros e imediatamente voltava para o autoexílio na sua cidade para ler como um desesperado.

Manoel era agrônomo de profissão, com engajamento político desde os tempos de faculdade no Rio de Janeiro onde fora ligado com a Juventude Universitária Católica (JUC). Era também bacharel em direito. Como agrônomo foi funcionário do Instituto Brasileiro do Café - IBC. Tinha uma vasta cultura, fruto da leitura disciplinada e metódica que mantinha por décadas a fio, nas primeiras horas do dia, antes do alvorecer.

Na livraria era um grande anfitrião, sempre convidando as pessoas para um chá amigo no 1º andar. Generoso, franco e sincero, era uma pessoa doce e agradável, amigo de todos. Paciência não lhe faltava para conversar horas a fio. Morava com a sua companheira Joana e dois filhos em uma casa ao lado da livraria. Dizia que a livraria não era dele, era de todos, ele seria um simples “zelador”, já que “contra a propriedade privada”. Permitia inclusive que jovens estudantes sem moradia, dormissem no estabelecimento. Segundo diziam, o zelador Mané Guató várias vezes viu pessoas roubando livros e nada fez, achava que o importante era que os livros fossem lidos. Passados os anos, a livraria se revelou comercialmente insustentável e o Mané, “mais” a Joana e os dois filhos Paulo e Júnior, foram viajar de Kombi pelo Brasil em um longo itinerário que levou anos.

A Livraria Guató foi um local que deixou saudades. Ainda hoje passei lá em frente, passeando de Google, o que me lembrou um antigo enigma que muito me intrigava. Por que o prédio tinha grades apenas no andar de cima? Certa vez inquiri ao proprietário do imóvel sobre isso. Seu Onofre, pai do Mané Guató, me contou que antes da livraria, morava ali um jovem advogado comunista. Certa vez esse acordou, no meio da madrugada, achando que a polícia estava subindo a escada para prendê-lo. Não teve dúvidas deu um salto pela janela foi parar lá embaixo. A partir desse fato, tornou-se necessária a colocação da grade no primeiro andar.

FAUSTO MATTO GROSSO

(Esta crônica foi escrita com ajuda à memória de Ahmad Schabib Hany, Airton Sampaio e  Professor Paulo Cabral)

Ajustado em 03.03.2021 por indicação de Paulo Esselin

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