segunda-feira, 5 de maio de 2008

Bolívia: A farsa do "referendo autonômico"

Tive a honra de acompanhar, ao lado de uma jovem repórter que veio a Corumbá cobrir para uma revista nacional o Festival América do Sul (realizado na fronteira com a Bolívia), a verdadeira farsa que foi o (sic) "referendo autonômico" protagonizado pela direita derrotada no primeiro-turno por Evo Morales em 2006. Os que agora posam de "democratas" são os filhotes da ditadura sanguinária de Hugo Banzer (o mesmo que, segundo o falecido jornalista boliviano René Bascopé Aspiazu – fundador do semanário Aquí, o maior opositor dos narcogenerais de plantão das décadas de 1970 e 1980 –, em seu memorável livro La veta blanca, usou os recursos de um empréstimo de 600 milhões de dólares do BID em 1976 para o desenvolvimento da cultura do algodão no nefasto intuito de implementar o plantio da coca e a produção em escala industrial da cocaína) foram derrotados nas urnas e, acostumados à prática do golpismo, querem levar a Bolívia ao extremo da ingovernabilidade para justificar algum projeto divisionista, com evidências racistas.
Na fronteira com Corumbá, em torno de oitenta membros da Juvetud Cruceñista (que mais se assemelha à juventude hitlerista, de triste memória), alegando estarem incumbidos de fazer a segurança dos participantes do processo eleitoral (que não foi convocado pela Justiça Eleitoral daquele país e, portanto, não teve a cobertura dos órgãos institucionais, como a Polícia Nacional e o Exército), agrediram feirantes que na localidade de Arroyo Concepción vendem seus produtos aos turistas brasileiros que se deslocam aos finais de semana para adquirir produtos mais baratos (e que por conta do feriadão no Brasil, em número maior, até em decorrência do Festival América do Sul, evento cultural de caráter continental). Qual o motivo da injustificável agressão? Quererem trabalhar e serem de origem colla (região andina, de etnia quíchua e aimara), como se isso caracterizasse qualquer crime.
Indagada pela repórter sobre as motivações da (sic) juventude, a presidente local (com mais de trinta anos de idade) se declarou opositora do atual presidente e que, preocupada "pela influência comunista do atual governo", sua organização não reconhece o atual governo nacional (eleito pelo voto direto no primeiro-turno) e quer que os recursos arrecadados pelo departamento (unidade administrativa nacional) de Santa Cruz fique para a gestão departamental, ignorando a existência de leis nacionais (anteriores à eleição de Evo Morales, e que existem desde a criação do Estado boliviano, em 1825).
O dirigente de um sugestivo "comitê de defesa de Mutum", ao ser questionado sobre as mais recentes iniciativas do governo central (a implantação da unidade de rebaixamento de aço de Mutum e a construção da rodovia Porto Suárez – Porto Busch), que gerarão mais de oito mil empregos para a região, teve o acinte de refutar tais projetos, alegando que são manobra do governo "de La Paz" e que não vingarão. O curioso é que esses mesmos senhores se declaravam em estado de greve (na verdade, blecaute) quando o governo de Evo Morales obstou a instalação de uma empresa brasileira irregularmente instalada na fronteira (a menos de 50 quilômetros da divisa internacional), cuja previsão para a geração de empregos era exatamente a metade.
Patrocinados por órfãos de Banzer, o ditador que faleceu há quase cinco anos, os artífices deste autoproclamado "ato cívico" (ou seria cínico?) explicitamente fascistóide são em sua maioria de ascendência estrangeira, tais como Marinkovic (sérvio), Tuma (libanês), Costas (grego), Dabdouh (palestino) etc, enriquecidos durante a ditadura banzerista e, mais recentemente, durante o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (com nacionalidade estadunidense), que fugiu da Bolívia para não enfrentar processo por lesa-pátria movido por diversas organizações nacionais que o acusam de ter promovido o empobrecimento do país ao executar um projeto de privatização lesivo aos interesses de uma das nações mais pobres do continente. Sobre isto, aliás, o notável jornalista Andrés Soliz Rada, ex-ministro de Morales e autor do célebre La fortuna del presidente, já escreveu inúmeros artigos em que elucida a trama dos que tomaram a Bolívia de assalto e fazem de tudo para "não largar a rapadura".
E a quem interessa, então, essa farsa de "autonomia"? Quem assistiu à minissérie da Globo sobre o Acre, exibida há pouco mais de dois anos, verá que a elite obtusa da Bolívia tenta reeditar aquele episódio vergonhoso para os bolivianos. Esqueceram-se, no entanto, que a história só se repete como farsa...
Àqueles que se interessam pela história recente da América Latina, não custa sugerir-lhes a leitura de dois reveladores livros de autores latino-americanos: o clássico As veias abertas da América Latina, do célebre Eduardo Galeano, e Com a pólvora na boca, de Júlio José Chiavenato. Ambos permitem uma reflexão oportuna e sincera sobre o atual momento histórico vivido pelas nações latino-americanas, sobretudo quando a grande imprensa, subserviente aos interesses espoliadores, permanece mais uma vez de cócoras, prestando outro desserviço à opinião pública do mundo inteiro. Tal qual no tempo das ditaduras nefastas que enlutaram toda a América Latina nas décadas de 1960, 1970 e 1980, a mídia empresarial insiste em distorcer as informações a seu bel prazer, contribuindo para a desinformação geral, em nome de uma bizarra liberdade de imprensa.
Ahmad Schabib Hany (filho de libanês, nascido na Bolívia, parente de bolivianos que deram alguma contribuição àquele país – como o dentista e homem público José Al Hany, o militar Ismael Schabib e o músico Alcides Mejía Hany – e há mais de 40 anos residente no Brasil)

Nenhum comentário: