quarta-feira, 26 de março de 2025
VIDAS PANTANEIRAS IMPORTAM
quarta-feira, 19 de março de 2025
A VIDA TEM URGÊNCIA TAMBÉM NO PANTANAL
sábado, 15 de março de 2025
100 ANOS DO SAUDOSO SENHOR HAMAD HAYMOUR
100 ANOS DO SAUDOSO SEU HAMAD HAYMOUR
Neste 15 de março, o Senhor Hamad Haymour estaria comemorando 100 anos de Vida de muita luta e dignidade. Nascido no Líbano em 1925, veio jovem para Corumbá, em fins da década de 1950, com toda a sua Família. Residiu e trabalhou interruptamente no coração do Pantanal e da América do Sul até 2005 em companhia de seu Filho Adnan, mas em decorrência de problemas de saúde precisou se mudar para Cuiabá, onde o Filho Khaled e a Filha Fátima moram há décadas. Em meados de fevereiro de 2019 nos chega a notícia de que o resiliente e incansável Seu Hamad Haymour havia se eternizado, aos 94 anos de uma fecunda e laboriosa existência exemplar. Foi, então, que fiz esta modesta mas sincera homenagem ao saudoso e querido Pai do Amigo Adnan Haymour.
SENHOR HAMAD HAYMOUR, UM LEITOR INCANSÁVEL
Ao tomar conhecimento, alguns dias depois da eternização do querido Amigo que herdei de meu saudoso Pai, o Senhor Hamad Haymour, logo me veio à lembrança, como num filme daqueles em “cinemascope” (sistema de filmagem de Hollywood dos anos dourados), a discreta e circunspecta personalidade de imigrante libanês chegado ao Brasil ainda jovem, com toda a sua família.
As imagens são do final da década de 1960, quando ainda a sua família -- esposa e filho(a)s Adnan, Fátima e Khaled -- não havia retornado ao Líbano, onde permaneceriam até meados da década de 1970, em razão da guerra civil que destruíra avassaladoramente a chamada Suíça do Oriente Médio e matara milhões de pessoas, em sua imensa maioria, crianças, mulheres e idosos indefesos.
O Senhor Haymour era um dos primeiros conterrâneos árabes com quem meu Pai fizera amizade na Corumbá cosmopolita dos anos 1960. Tão logo aportaram em Corumbá, eles se conheceram e logo sua Amizade (dessas com letra maiúscula) desabrochou. Como Seu Schabib gostava de ler, logo passou a trocar livros e revistas em árabe e francês com ele e os senhores Emílio Sayegh (Casa Brasil), Mohamad Bazzi (“Abu Kamel”, Casa das Flores), Fauze Rashid (Sorveteria Superbom), Soubhi Issa (“Seu Rafael”, Casa Estrela), Júlio Emílio Ismael (Casa Botafogo), Mohamad Omar (Casa Glória), Mohamed Ale, Ibrahim Ale, Mohamed Sleiman (Empório da Síria), Mohamad Said (Casa Said), Tajher Younes (Casa Damasco), Fehme, Aziz, Schaho, Wadih, Jamil e Amouri (seis grandes Amigos de longa data de meu Avô Youssef Al Hany, cujos sobrenomes lamentavelmente não lembro).
Proprietário da Casa Beirute (inicialmente localizada na rua Frei Mariano, entre a Cuiabá e a América), o Seu Haymour era extremamente atencioso quando íamos às compras. Fazia questão de nos atender pessoalmente, deixando funcionários atendendo os demais clientes. E nas oportunidades em que saíamos a passear, e era inevitável descermos pela Frei Mariano, era uma festa: aqueles doces árabes, para as crianças (nós), e o inigualável café árabe para os adultos...
Era praticamente vizinho (a três quadras da sorveteria e hospedaria Schabib, de meu Pai), o que os aproximara ainda mais depois de que sua família retornara ao Líbano. Além de ouvir rádio em árabe e ler volumosos livros em árabe e francês (segunda língua no Líbano e Síria), eles se atribuíam algo como “tarefas”, isto é, pesquisar alguns temas para debater no próximo encontro.
Esse gosto pela leitura foi determinante para que nossas famílias se identificassem com as letras e o livre pensar, eis que, ao contrário do bizarro estigma contra os árabes, o estímulo às artes e ao saber é cultivado, sobretudo entre as famílias de imigrantes, até como forma de afirmar a identidade cultural.
Lembro-me do então adolescente Adnan, o querido Amigo que por décadas administrou a Casa Beirute (já instalada defronte à Praça Independência, na Frei Mariano), que além de escrever como poeta alado (memoráveis poemas em árabe e português), fazia belíssimas telas em aquarela e a óleo, como também bicos de pena e nanquim retratando sua saudosa estada na terra de seus pais...
Quando, sob a coordenação da bibliotecária e Professora Elenir Machado de Melo (querida Amiga Lena), foi realizada a Primeira Mostra da Cultura Árabe-Palestina de Corumbá, entre junho e outubro de 1987, na Biblioteca Estadual Gabriel Vandoni de Barros, em dependências da Casa de Cultura Luiz Albuquerque (o emblemático ILA), muitas famílias árabes generosamente disponibilizaram documentos, obras e objetos representativos da cultura árabe, entre elas o agora saudoso Senhor Hamad Haymour.
E o que muito me marcou, na Amizade com meu saudoso Pai, foi a disciplina, o rigor com que Seu Haymour lia, pesquisava e debatia. Algo que jamais esqueci foi que ele descobrira que as famílias dele e de meu Pai tinham a mesma origem e uma história comum, de resistência ao Império Turco-otomano, de triste memória.
Assinante de uma revista universitária do Cairo, senão me engano “Al Urubat”, ainda no iluminado tempo do Pan-arabismo de Gamal Abdel Nasser (grande estadista, um dos líderes do Movimento dos Países Não Alinhados e fundador da República Árabe Unida, que reunia o Egito, a Síria e por muito pouco tempo o Iêmen do Norte), mantinha meu Pai informado sobre as pesquisas históricas do então chamado Mundo Árabe.
Não por acaso, Seu Haymour e meu Pai, durante décadas, empreenderam uma batalha frustrada de construir um Centro Cultural Árabe-Brasileiro no coração do Pantanal e da América do Sul, com o propósito de disseminar as milenares artes e letras árabes, bem como suas diversas culturas e memórias. Mais um projeto frustrado, pois tanto o meu Pai como o Senhor Haymour se eternizaram sem terem podido ver qualquer iniciativa concreta.
O legado, no entanto, está perenizado na trajetória testemunhada pelas novas gerações, cujas referências não apenas são o testemunho e o aprendizado, mas a rigorosa e metódica atuação de imigrantes como o Senhor Hamad Haymour, cuja presença permanece viva, cintilante, entre nós. Até sempre, querido Amigo!
Ahmad Schabib Hany
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terça-feira, 11 de março de 2025
AOS 99 ANOS DE UMA EXISTÊNCIA INSPIRADORA
AOS 99 ANOS DE UMA EXISTÊNCIA INSPIRADORA
Mãe de nove filho(a)s, Dona Yoya, discreta e reservada, fez de sua jornada verdadeiro instrumento de cidadania, ao lado de seu Companheiro de Vida sem se ofuscar nem competir: praticou o protagonismo cidadão que forjou o caráter de toda a sua Família. Neste 11 de março estaria completando 99 anos, razão pela qual tomo a liberdade de compartilhar o texto em sua homenagem de sete anos atrás.
OS 92 ANOS DA PEREGRINA DE DOCE OLHAR
WADIA AL HANY DE SCHABIB (11/03/1926 - 15/06/2009)
Caso estivesse conosco, o presente que a Vida nos deu como Peregrina de doce olhar -- que nós chamávamos de Mãe -- estaria, neste domingo, 11 de março, fazendo 92 anos. Eternizada há menos de nove anos, sua presença não é apenas saudade, mas fonte de sensatez e candura a nortear nossos caminhos.
Nascida Wadia Al Hany Ascimani, a formosa donzela que encantaria duas décadas depois o meu saudoso Pai, Mahoma Hossen Schabib, era a segunda de onze filhos que a jovem senhora Guadalupe Ascimani de Hany procriou com seu companheiro, o dentista Youssef Al Hany, em San Joaquín de las Aguas Dulces, departamento do Beni, Bolívia. Nossa Avó Guadalupe, de Pai libanês maronita e Mãe boliviana, casara-se aos 16 anos, como toda donzela de seu tempo. Nosso Avô Youssef, aliás José, libanês druso que estudara na Alemanha até ser atraído pelos encantos e mistérios amazônicos, ainda no pós-guerra de 1917, trocou o Oriente Médio pelo Oriente boliviano, tendo-se dedicado ao povo como se tivesse nascido naquelas terras de promissão e carência.
Desde criança nossa Mãe recebera a incumbência de auxiliar nossa Avó a cuidar dos irmãozinhos, ainda que fossem reduzidos os riscos da Amazônia boliviana. Sendo a mais velha das meninas, cabia a ela o papel de “segunda mãe”, como era apresentada aos amigos da Família. Na década de 1920, período entre-guerras, o Beni, como toda a Amazônia, se transformara em centro provedor de castanha, seringa, carne e minerais preciosos para a Bolívia e o mundo. Por conta disso, levas de imigrantes europeus e asiáticos procuravam o mítico Eldorado (ou El Dorado, em espanhol), mas a maioria encontrava a morte causada pela malária, pelas feras da floresta ou pelos rios indômitos -- muitos aventuravam, mas poucos eram os vitoriosos e podiam contar a sua história para os descendentes.
Não demorou muito para que o imigrante libanês Youssef se transformasse no lendário “Doctor José Al Hany”, dentista que por falta de médicos acabara cuidando da saúde e salvando vidas nos vilarejos situados à beira dos temidos rios amazônicos. Quando ele faleceu, não faltou um prefeito que o homenageasse com o nome de uma rua em Trinidad, capital do Beni, mas que, durante a ditadura sanguinária de Hugo Banzer Suárez, algum interventor rancoroso retirou seu nome para pôr o de um ancestral seu. Se isso fizera falta aos seus descendentes? Absolutamente, até porque a quase totalidade dos Hany se espalhara pela Bolívia e toda a América Latina, fazendo jus à sua origem peregrina.
Mas para a Família Hany retirar homenagem póstuma beirava anedota diante das histórias canhestras contadas pelo Tío Simón Hany, Irmão mais velho e que chegara antes de nosso Avô José à Amazônia, pelo Brasil. No início do século XX, então recém-chegado à América, o Tío Simón foi trabalhar na extração de castanha e seringa e produção de carne na gleba de um grande fazendeiro português, descendente dos senhores de escravo da época da colonização. Cansado dos abusos e represálias do arrogante patrão, o então jovem imigrante decidira pedir as contas e mudar-se para o outro lado da fronteira, a Bolívia. Aconselhado por um amigo africano, havia mais tempo na fazenda, a não fazer isso para não perder a vida -- antes fugisse sem deixar vestígios, mesmo deixando seus haveres --, mas ele relutara por entender que eram seus direitos e que ninguém o enganaria. Resultado: depois de pegar todo o salário devido, o Tío Simón foi alvejado por jagunços do patrão e, enquanto parecia agonizar, era roubado todo o seu dinheiro. Ainda com vida, apesar de todo ferido pelas balas que o atingiram, foi resgatado pelo amigo africano e levado para um vilarejo pouco distante dali, para ser salvo por nativos. Por ironia da vida, dias depois de o Tío Simón ter sido alvejado, o patrão arrogante e ladrão foi morto por um raio que derrubou uma árvore frondosa sobre ele.
Naquela época, as donzelas eram instruídas em casa. Quando jovem, Wadia (Yoya, em casa) e sua Irmã Magiba queriam seguir os estudos, mas no interior do Beni isso era impossível. Por isso, tão logo se emancipou com o casamento -- três anos depois ela, meu Pai e meus dois Irmãos mais velhos foram morar na cidade universitária da Bolívia, Cochabamba, pois para eles o estudo era instrumento de emancipação de todo e qualquer cidadão --, fez um curso de técnica de enfermagem, o que lhe foi de muita valia até para cuidar dos nove filhos e dos filhos de muitas parentes e amigas.
Enquanto meu Pai fazia uma incursão pelas atividades jornalísticas e intelectuais, numa fase em que a Família tinha alcançado estabilidade financeira, sendo Dona Yoya a administradora dos negócios, uma crise sem precedentes se abateu sobre a Bolívia entre os anos 1953 e 1962, o que os levou a decidir emigrar com todos os filhos para o Líbano. Até porque meu Pai, minha Mãe e os filhos, por tabela, tinham automaticamente cidadania libanesa. Esse período, de quatro anos do Líbano, mostrou uma Wadia ainda mais extraordinária e companheira, o que permitiu que meu Pai retornasse às atividades jornalísticas, vinculando-se à imprensa egípcia, escrevendo em árabe e espanhol, pois os mesmos meios que antes publicavam seus artigos na Bolívia, Chile e Brasil tinham interesse de conhecer como as transformações decorrentes do nasserismo estavam se processando por todo o chamado Mundo Árabe.
A iminência da guerra civil no Líbano fez os meus Pais retornarem para a América do Sul, mas desta vez para o Brasil -- precisamente Corumbá, na divisa dos dois países, o que permitia que os filhos mais velhos pudessem cursar os últimos anos do ensino médio e seguir para a Universidade na Bolívia sem perda de tempo --, o que implicou numa fase de adaptação, sobretudo por causa do calor e das características de cidade de interior, ainda que com um cosmopolitismo ímpar. Com a mesma dignidade com que conduzira os negócios da Família na Bolívia e no Líbano, Dona Yoya se armou de valor e arregaçou as mangas para estar à frente de, inicialmente, uma pequena sorveteria e, depois, uma modesta pousada (na época soía ser chamada de “hospedaria”), com a qual custeou os estudos de todos os filhos, além de ter contribuído, ainda que modesta e anonimamente, para o desenvolvimento do turismo ecológico desta porção rica e singular do planeta por exatos 30 anos ininterruptos, além de ter inserido na agenda local alguns temas por meio de artigos publicados no emblemático decano da imprensa corumbaense, o combativo Diário de Corumbá.
Depois do encerramento das atividades comerciais, Dona Yoya aproveitou de desfrutar melhor da companhia do Seu Schabib, e fizeram memoráveis viagens para rever familiares no Brasil, na Bolívia, no Líbano e no México. Eis que o destino quis que o Companheiro de toda a Vida se eternizasse antes de que eles pudessem ter comemorado suas bodas de ouro, período de recolhimento e viagens curtas, na tentativa de esquecer a sofrida solidão. Mas não se deu por vencida, e com a mesma garra com que enfrentou adversidades em diferentes fases da Vida, viveu por mais treze anos de rica convivência com filhas, filhos, netas e netos, irmãs e irmãos.
Silenciou-se numa chuvosa manhã de 15 de junho de 2009, num leito de clínica em Campo Grande, depois de ter resistido estoicamente a um câncer voraz, oportunidade que nos permitiu conhecer melhor a Peregrina de doce olhar que a Vida nos presenteou como Mãe.
Ahmad Schabib Hany