Guilherme Mota: justiça, memória e verdade
Em pleno século XXI, protetor de animais foi morto por linchamento pelos vizinhos em Teresópolis quando, ao não dispor de ração para quase 500 animais de seu canil, teve que abrir as portas do abrigo para evitar que os animais cometessem canibalismo pela fome. Não fazia a mínima ideia de que seus semelhantes mais próximos eram os temíveis assassinos irracionais.
Lamentável, indignante, condenável o comportamento de "cidadãos e cidadãs" que se deram o direito de tirar a Vida, por linchamento, de Guilherme Mota, um benfeitor, protetor de animais que por mais de quinze anos dedicou a Vida a mitigar, se não resolver, uma questão de interesse coletivo, em Teresópolis, Rio de Janeiro.
Porque cuidar de animais abandonados é questão de saúde pública. É obrigação do poder público, "senhores cidadãos" e "senhoras cidadãs" que desdenham do cuidado, da proteção realizada espontaneamente por pessoas anônimas, generosas e solidárias com os animais abandonados, em sua maioria pelos mesmos "senhores cidadãos" e "senhoras cidadãs" praticantes do amor narciso e descartável que amealha, inclusive, Vidas humanas, como as vítimas do feminicídio e da violência policial.
Guilherme Mota, diante do abandono pela prefeitura local e "apoiadores" ocasionais e intermitentes, à distância, quando viu o canil com quase 500 (QUINHENTOS) animais virar uma arena em que o canibalismo se tornara iminente ante a fome não saciada da canzoada, não lhe restou outra atitude que abrir as portas do espaço feito e cuidado para abrigar cães abandonados pela população e pelas autoridades de Teresópolis, por isso vítima da peçonha dos pretensos cidadãos e cidadãs que, depois do ato de barbárie praticado, dormem impunemente no conforto de suas "consciências".
Em vez de apoio ao benfeitor que dedicou ao menos 15 anos de sua breve existência de 38 anos, essa foi a pena, sem julgamento e direito a defesa. Guilherme Mota foi assassinado por linchamento pelos vizinhos do canil por ter aberto as portas do espaço que construíra e cuidara por mais de uma década e meia. Revelara estar desesperado por não ter mais ração para atender o canil e perceber que os animais, tomados pela fome, cometiam canibalismo pela causa mais óbvia: a fome, que não espera, sobretudo entre os caninos, ainda que "domesticados".
Só depois da repercussão do crime cometido contra o protetor de cães abandonados ao longo dos últimos 15 anos em Teresópolis é que a prefeitura do município, tardia e irremediavelmente, agiu. A resposta, via de regra, é esta: "não há verbas consignadas no orçamento." Mesmo que o protetor atuasse sem interrupção havia 15 anos. "Nada pessoal, mas esse protetor não era fácil." É a saída mais frequente, pois ele não está mais entre nós para contrapor, para se defender.
A denúncia, feita por Juliana Camargo Müller, do Instituto Ampara Animal, nas redes sociais, chocou todas as pessoas sinceramente comprometidas com a Vida. Ter compromisso com a Vida não é hierarquizar a existência das espécies, da dignidade intrínseca a cada uma delas. Vida é existência com dignidade. Ou será que as e os doutos que se engalfinham de dois em dois anos para galgar postos de poder e auferir privilégios em nossa sociedade eivada de cobiça e ganância não o sabem? Ou fingem não saber.
Juliana Camargo conta, em prantos, que, a par da insólita tragédia, cometida no coração da extinta Corte -- tal como na matança da véspera do Dia de Finados, quando mais de 100 cadáveres foram oferecidos em celebração pagã e cínica pelas autoridades declaradas "cristãs", mas na verdade cultoras da necropolítica do estado do Rio e apoiadas pelos viúvos do inominável de sete estados --, procurou pesquisar sobre os últimos dias do benfeitor cuja Vida foi ceifada pelos vizinhos indiferentes ao seu trabalho voluntário de mais de uma década e meia.
E qual não foi a sua perplexidade ao constatar nas redes sociais que, em suas derradeiras semanas de Vida, Guilherme pediu incessante e desesperadamente doações para empresas, instituições públicas e "pessoas de bem", que ora sim, ora não, entregavam uma esmola para ele, mesmo sabendo da quantidade estratosférica de cães atendidos em seu canil? Mostrou o último vídeo, em que o protetor de animais compartilhava seu desespero de ter que abandonar os cães e soltá-los para que não se matassem por canibalismo.
Mal sabia Guilherme que era também a despedida de sua própria Vida. Pouco depois seria linchado pelos vizinhos. Piores, aliás, que os animais, chamados "irracionais", que estavam a cometer canibalismo por causa da fome atroz a que haviam sido submetidos por falta de ração.
Animais irracionais, motivados pela fome, cometem canibalismo. E motivados por que os ditos animais "racionais", ou melhor, seres humanos matam com requintes de crueldade o benfeitor que por mais de quinze anos cuidou dos animais abandonados? Talvez apenas Freud pudesse explicar. Uma conjunção de fatores tem eclipsado a mente humana nestes tempos bizarros: o ódio, a impunidade, o recalque, a soberba, o supremacismo, a falta de empatia etc.
Emocionante, a mensagem da Irmã de Guilherme, que não deseja vingar a trágica morte do Irmão, apenas que a justiça seja feita. Para ela é mais importante a memória, a razão de viver do protetor, e por isso pede que a população não abandone seus animais, até porque Guilherme não está mais entre nós para proteger os cãezinhos abandonados.
Que dignidade! Quanta empatia! É assim como a humanidade se supera: podem as hordas de soberbos ceifar a Vida de um, dez, cem, mil, milhares, milhões, mas sempre virão, do seio do povo, das entranhas da humanidade, seres iluminados a trazer esperança e magnanimidade para que as novas gerações tenham exemplo para se inspirar!
Esse misto de realidade trágica e empatia, contudo, não está restrito a Teresópolis. Em Ladário, até bem pouco tempo, tivemos o caso de uma venerável e digna Professora que vem dedicando seus melhores anos de Vida para cuidar de cães e gatos abandonados de Corumbá, Ladário e até da área rural -- cães e gatos abandonados em áreas comunitárias às margens da BR-262 já foram levados por pessoas sensíveis à Vida e entregues à Senhora Auxiliadora (até o nome faz jus à sua vocação de protetora, inclusive de gente, sabia?) --, e que, do nada, familiares de um ex-marido, desses que se creem abençoados reprodutores acima da lei, haviam vendido o terreno onde a senhora construiu, com a ajuda de voluntários, o canil e o gatil, e, portanto, a Professora teve que arranjar, a toque-de-caixa, novo local.
Em sã consciência, a omissão -- prevaricação, pois esse crime tem nome e tipificação no arcabouço jurídico -- pelas autoridades municipais do cuidado com animais "domésticos" abandonados no perímetro urbano não é para ser "empurrada" sobre a atitude digna e exemplar de pessoas que voluntariamente se dedicam a cuidar e permitir adoção responsável de animais resgatados ao serem abandonados por "pessoas de bem" -- ou porque são transferidos para outros destinos, ou porque simplesmente são adeptos e praticantes do "amor descartável" e abandonam os bichinhos ao "deus-dará".
E o que tem feito a administração municipal em escala nacional? Mesmo havendo verbas orçamentárias do Fundo Nacional de Saúde, prefere não se dar ao trabalho de procurar resolver esse problema, que é de saúde pública, de interesse coletivo, sim. No máximo, prestam-se a fazer, como se fosse um ato de favor, de generosidade, esporadicamente campanhas de vacinação e de castração. Entre 2009 e 2011, fui conselheiro municipal de Saúde em Corumbá e jamais tive oportunidade de me debruçar sobre uma política consistente e perene de proteção e prevenção ao abandono de animais.
Na verdade, sempre houve demanda para que em nível municipal fossem implantadas e implementadas ações, ou projetos, programas e mais recentemente políticas na área da saúde animal. Forante louváveis gestores -- que representam a exceção, não a regra --, é constante a postura negligente de quase a totalidade dos municípios brasileiros no cuidado com a saúde animal. Aliás, a situação também é crítica até com a saúde humana, a despeito da obrigatoriedade constitucional pós-1988 e a legislação do SUS a partir de 1990, e não por falta de recursos, mas pelo criminoso desdém político-corporativo, triangulado com os acintosos esquemas de desvio de verbas públicas.
Essas mesmas "pessoas de bem" que, passando-se por hipócritas e moralistas falsos "cristãos", aplaudem a execução eleitoreira de centenas de brasileiros e brasileiras abandonados nas periferias desde o tempo da "abolição da escravatura" -- como se a escravidão ainda hoje não existisse acintosamente, nas faustosas casas em que oficiais de Justiça não podem ousar adentrar e em seus negócios, sejam urbanos ou rurais, com o empavonado conceito de "trabalho análogo ao escravo".
Que a criação da futura Universidade Federal do Pantanal -- nossa gloriosa UFPantanal -- possibilite um programa permanente, em caráter de extensão, para o cuidado responsável e, sobretudo, a formação de cidadãs e cidadãos que respeitem a Vida de forma integral, seja humana, felina, canina e de tantas outras espécies vítimas da cobiça, pilhagem e ganância. Essa mesma tríade maldita que promove o genocídio na Palestina (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém), a matança no Rio de Janeiro (comunidades do Alemão e da Penha), os massacres programados na Bahia (Fazenda Coutos e Camaçari) e São Paulo (Peruíbe, Mongaguá, Itanhaém e Bertioga, na Baixada Santista), as execuções seletivas em Mato Grosso do Sul (execução de um indígena Guarani-Kaiowá em Iguatemi), Amazonas e Pará e as carnificinas no Iêmen, Congo e Sudão. Para não falarmos no iminente banho de sangue no Mar do Caribe e em nossa América Latina, onde nefastos -- sim, nefastos! -- falsos "cristãos", a serviço do igualmente funesto império em decadência, promovem a entrega da Patagônia argentina, Amazônia peruana e Chaco paraguaio.
Somos todos Guilherme Mota! Justiça, memória e verdade, hoje e sempre!
Ahmad Schabib Hany
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