O que Corumbá e a Bolívia têm em comum?
Suas elites dirigentes, que só olham o próprio umbigo, fizeram com que, em 2013, um projeto feito para durar décadas caísse por terra: Paulo Duarte, então prefeito de Corumbá e presidente regional do PT, fez de tudo para ofuscar o brilho de seu compadre e responsável por suas eleições. É o que Luis Arce Catacora fez, na Bolívia, com o líder que o elegeu. Emulação primitiva e irracional, muito atraso.
Corumbá e a Bolívia, que compartilham território contíguo, povos originários e culturas miscigenadas com um processo histórico muito parecido, têm a mesma sina: a miopia, o narcisismo, de suas elites dirigentes, para dizer pouco, é a responsável pelo descalabro político que desaba sobre um povo generoso, leal e cansado de tanta emulação.
Um Amigo, desses que a gente só vê de décadas em décadas, inquiria-me por que Corumbá, com riqueza natural, histórica, humana e socioeconômica ímpar ("um dos três maiores municípios em dimensões territoriais do País; duas jazidas de ferro e manganês de extraordinário valor econômico; grande diversidade biológica, étnica e cultural; o mais antigo centro urbano e mercantil do estado; território com a maior porção de Pantanal; lindante com a Bolívia e o Paraguai; tronco rodoferroviário com os mais antigos porto fluvial e aeroporto; berço da cultura e do patrimônio histórico-artístico-arquitetônico; território ancestral de Guató, Guaná, Kadiweu e Guaicuru com marcas históricas; centro cosmopolita em que os povos originários partilharam seu legado, como no filme 'Missão', de Robert Bolt e direção de Ronald Joffé, entre outros atributos"), está relegado à condição de "agregado indesejável" de um estado baitola, fedorento e corrupto?
Como em sua indagação ele acrescentara três adjetivos, "bfc", com os quais não posso concordar, apesar de considerar as elites sul-mato-grossenses tacanhas e provincianas, comecei minha resposta com uma antológica anedota que ouvi da conversa do Pastor Rudolph Kaltzheis, húngaro de nascimento e boliviano desde tenra idade, com meu saudoso e querido Pai, há exatos 50 anos, em agosto de 1975. Enfermeiro e biomédico, esse Amigo de meu Pai o visitava sempre no fim da tarde para aplicar-lhe insulina subcutânea, segundo prescrição médica.
Dizia o Pastor Rudolph: "Assim que o Mestre terminou de criar a Terra, sobrara a matéria mais nobre e cara, em pequena quantidade e não dava para distribuí-la irmãmente entre todos os povos do mundo. Por isso decidira girar o planeta para atirar aleatoriamente o precioso material em qualquer lugar. Ao cair no território que hoje corresponde à Bolívia, São Pedro O questiona: 'não Lhe parece injusto que um só povo detenha tamanha riqueza?' Sábio, o Mestre lhe responde: 'Não se preocupe, que esse povo -- generoso e justo, é verdade -- jamais submeterá outros povos ao seu jugo, pois terá uma elite incompetente, mesquinha e com complexo de inferioridade, incapaz de conduzir seu povo com soberania e altivez.' Sina que, desde o início da colonização hispânica, perdura na Bolívia."
Ao cabo de 200 anos de vida independente, a Bolívia se depara ante situação no mínimo inusitada: o beneficiário do prestígio e da confiança popular do líder indígena que tirou a Bolívia do mapa da desigualdade e da miséria, Luis Arce -- ex-ministro da Economia de Evo Morales e indicado à sua sucessão --, o traiu e acintosamente faz de tudo para impedi-lo de tornar-se de novo presidente de seu país. Mesmo sabendo que Evo é líder das pesquisas nos mais diferentes cenários, que Arce não tem mais que 1% de aprovação como presidente e que seu candidato não passa dos 3% na preferência do eleitorado. Pior: que os candidatos que lideram as pesquisas são da oposição, portanto, na iminência de se perderem as conquistas do chamado Processo de Mudança Democrático e Cultural, responsável pela criação do Estado Plurinacional da Bolívia, pela Constituição Política do Estado e pelas conquistas sociais e econômicas efetivadas ao longo de quase 20 anos.
Assim como as elites dirigentes de Corumbá entre 2013-2016 não se apercebiam da gravidade do que viria a desabar no contexto político nacional, o "grupo do Ruiter" e o "grupo do Paulo" se engalfinhavam, para felicidade dos derrotados em 2004, 2008 e 2012, hoje, neste desalentador 17 de agosto de 2025, as elites dirigentes da Bolívia, entre o expressivo "voto nulo" e o abstencionismo suicida, parecem não se importar com as reservas de lítio, de gás e terras raras, objeto da cobiça do império decadente e do ocidente em caos. Tanto que os tidos por 'favoritos' das pesquisas, Samuel Doria Medina (milionário dono de uma rede de fastfood e testa-de-ferro de transnacionais), Jorge 'Tuto' Quiroga (presidente que como vice-presidente do ex-ditador Hugo Banzer Suárez concluiu a gestão mais entreguista de todos os tempos, em 2002), Manfred Reyes Villa (prefeito e ex-governador de Cochabamba, igualmente entreguista) prometem revogar a atual Constituição Política do Estado, resgatar a denominação "República" em lugar de "Estado Plurinacional" e, pior, "vender" todas as riquezas, a começar pelo lítio, para estabilizar a economia boliviana. Detalhe: todos eles, aliados há duas décadas, deixaram a Bolívia quebrada e com os índices de miséria mais altos da história.
Mais que a extrema-direita, o inimigo das forças populares e democráticas é o narcisismo, a vaidade, essa maneira de só olhar para o próprio umbigo. É o que se chama "emulação". Na Bolívia como em Corumbá é recorrente esse fenômeno. Um misto de inveja e competição desleal, doentia. Por quê?
Em 2013, tive a oportunidade de conversar por pelo menos duas horas e meia com o prefeito Paulo Duarte, tendo apenas o então assessor de gabinete Márcio Cavasana como testemunha. Atendera eu a uma ligação de Cavasana em que era convidado ao gabinete do prefeito para falar de viva voz com o então dirigente petista e segundo prefeito eleito pelo PT no século XXI.
Dias antes havia escrito um texto em que alertava os que me acompanhavam em um blog sobre o iminente desastre político que representava a perseguição sórdida empreendida por servidores do município a humildes camelôs e micro vendedores ambulantes espalhados pela cidade, de nacionalidade boliviana. Eu fizera questão de intitular o referido texto de "Somos todos bolivianos". Além da importante parcela de eleitores corumbaenses de ascendência boliviana, os petistas tiveram a constatação de que contribuíram em diferentes momentos, como fiéis da balança, para a vitória de Ruiter Cunha de Oliveira, Zeca do PT (inclusive em 1998) e de Delcídio do Amaral para senador.
O mais importante: não é necessário ser cientista político ou economista para saber que o comércio corumbaense desde 1956 tem vínculos com o mercado boliviano. A história das relações migratórias e econômicas com a Bolívia prova que o então centro comercial cosmopolita voltado para a Europa e os países platinos teve a sobrevida que pudemos testemunhar até 1996 (ano em que o presidente FHC privatizou a RFFSA e o Noel Group, estadunidense, ficou com a concessão da antiga Noroeste) graças à ferrovia Bauru - Corumbá - Santa Cruz de la Sierra, cuja conexão foi concluída em 1956, depois da inauguração, em 1953, da ponte de Porto Esperança sobre o Rio Paraguai e, em seguida, os trens da Empresa Nacional de Ferrocarriles, de sua Red Oriental, chegando até aqui.
Além do chamado comércio formiga -- a dinamizar a economia local com empregos e prosperidade para muitas famílias, inclusive árabes (caso da minha, oriunda do Líbano com laços na Bolívia, inserida no processo migratório por conta dessas relações comerciais, aliás, bastante intensas) --, dados da CACEX (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil) constatam que nos últimos dez anos da ferrovia o fluxo comercial exportador em Corumbá girava na ordem de 1,5 milhão de dólares por dia. Até o único canal televisivo local na década de 1980 tinha um programa econômico em que apresentava o movimento diário de segunda a sexta-feira com base na CACEX.
Qual teria sido a motivação dessa ruptura injustificável? Porque insensata, pois a ser mantido sem a emulação atávica aos onze ou doze anos da pactuação, o projeto perduraria por décadas. Mas isso fica como desafio para pesquisadores da área da Antropologia, Sociologia e da Ciência Política. Indiscutível o fato de que amplas camadas da população local, no tempo em que a saudosa Helô, a querida Heloísa Urt, do alto de sua sensibilidade social, conseguiu influenciar a administração petista local a focar para as questões históricas da desigualdade, da exclusão, social. Pena que ela tenha se eternizado súbita e precocemente.
PROJETO VITORIOSO
O saudoso Padre Ernesto Saksida, ao conhecer o economista e agente tributário Ruiter Cunha de Oliveira, em 2000, por meio do igualmente saudoso Seu Jorge José Katurchi, importante membro do Pacto pela Cidadania desde sua gênese, em 1994, relutou em fazê-lo seu porta-voz. Afinal, Ruiter, ao ser o primeiro a presidir o Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), passava à indiscutível condição de afilhado do grande benfeitor da Cidade Dom Bosco.
Generoso, sim. Ingênuo, jamais. Assim era o Padre Ernesto. Costumava ouvir, ouvir, ouvir, sem evidenciar qualquer exaustão, ainda que certas figuras fossem nada palatáveis para ele -- coisa que jamais revelou a qualquer interlocutor de sua mais inteira confiança --, o que não vem ao caso. Seu Jorge, cujo filho mais velho fora sondado para ser candidato a prefeito de Corumbá, mas não só não aceitara peremptoriamente como se empenhara em garimpar candidato viável e à altura do povo corumbaense, que amava mais que o seu tricolor no futebol.
Sábio, Seu Jorge Katurchi, em sua própria residência, relutou em aceitar ser o primeiro presidente da OSCIP que estávamos fundando para apoiar os projetos sociais da Cidade Dom Bosco, a pedido do Padre Ernesto, já preocupado com a posteridade. O saudoso Professor Salomão Baruki também declinou do convite, justificando a necessidade de dedicar-se ao Instituto de Ensino Superior do Pantanal (IESPAN). O ex-vereador e advogado Antônio Victor de Lima Baptista, filho do ex-aluno salesiano Advogado José Feliciano Baptista Neto, chegou a ser sondado para o cargo, mas habilidosamente Seu Jorge apresentou Ruiter como "tertius" para o CENPER: jovem, corumbaense, conhecido e, sobretudo, bem relacionado. O Padre titubeou, mas prometeu pensar. Discretamente não só indagou sobre o nome sugerido por Seu Jorge como, sobretudo, sua formação religiosa.
Conhecendo as articulações políticas existentes, todos os que estavam com o Padre Ernesto, inclusive o próprio Antônio Victor, assessor jurídico do processo de registro do CENPER, além das intermináveis reuniões de fundação, não ocultaram os vínculos políticos de Ruiter, lotado na Secretaria de Estado de Finanças como titular de uma de suas superintendências. Em outras palavras, o primeiro presidente do CENPER seria um possível candidato do PT a prefeito de Corumbá? Apesar de bastante aberto, o Padre Ernesto era conservador, oriundo da Eslovênia, um país que quando veio para o Brasil estava sob o jugo da Itália fascista e ao final da Segunda Guerra Mundial acabara anexado à Iugoslávia, Estado socialista liderado por Broz Tito, comunista declarado.
Depois de muitas semanas de consultas e reuniões em separado, Seu Jorge e eu estivemos novamente com o Padre Ernesto, que, depois de conversar com seus Irmãos de Congregação Salesiana em Corumbá, acabou por aceitar o nome de Ruiter para a presidência do CENPER, mas não sem antes fazer longa pauta de ações. Um mês depois, em julho de 2002, o CENPER juridicamente constituído, as reuniões públicas com o Ruiter se intensificam. Com a súbita eternização do saudoso Professor Salomão Baruki, Presidente de Honra do CENPER, por ironia ocorrida no dia da primeira promoção da entidade, a Noite Italiana, no Clube Corumbaense, o Padre Ernesto chama o Ruiter para uma conversa da qual sou a única testemunha viva: Como homenagem póstuma ao membro fundador do CENPER, ficava pactuada a sucessão na entidade para a Professora Lígia Baruki e Melo, Filha do Professor Salomão, o que valeria para o processo sucessório em caso de uma possível vitória eleitoral para a Prefeitura de Corumbá.
Desconheço as razões que levaram Ruiter a descumprir acintosamente o acordo celebrado com o Padre em seu escritório sobre sua sucessão na Prefeitura. O fato é que o projeto, feito para perdurar décadas para servir ao povo corumbaense, acabou tendo inexplicavelmente sua existência interrompida. É claro que o componente de extrato de classe que Paulo Duarte representa é bem distinto que o de Ruiter, bastante popular. Ruiter foi aprendiz do Padre Ernesto que rapidamente aprendeu a lidar com as pessoas mais vulneráveis, do ponto de vista econômico e social.
Na Vida, como na História, não existe o "se" como categoria de análise. Contudo, a "invertida" feita à Professora Lígia e às bases partidárias é inquestionável. Com passado ligado a Londres Machado, Paulo Duarte sempre foi o preferido de Zeca do PT, que só não o lançou seu sucessor para o governo depois de um coma que ele sofreu em Porto Murtinho e sobreviveu graças à competência médica do então secretário de Saúde, Professor Izaías Pereira da Costa (a contragosto, lançou, pressionado pela direção nacional do PT, o igualmente corumbaense Delcídio Amaral, com quem não demorou a rivalizar).
Líderes regionais relevam esse fato, determinante no processo de consolidação do projeto pactuado. Aliás, só para os crédulos que participaram da construção desse generoso projeto é que doeu muito ver a cisão ocorrida entre dois iguais, tanto no Coração do Pantanal e da América do Sul como no Coração da América [como é chamada a Bolívia]. Não se trata apenas de mudança de nomes, mas de ruptura de um processo inédito de protagonismo popular ceifado logo no momento em que novas gerações podem ser guindadas a essa experiência.
No caso de Corumbá, destaco a atitude louvável de duas petistas históricas: a Professora Lígia Baruki e Melo e a Escritora e Artista Plástica Marlene Terezinha Mourão, que com peculiar discrição preferiram abster-se do processo fratricida. No caso da Bolívia, as diversas tentativas de mediação e dissuasão ao longo dos últimos três anos pelo ex-vice presidente Álvaro García Linera, que retornou à docência e pesquisa na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) em Buenos Aires, Argentina. Tentativas frustradas ante a soberba do traidor e a teimosia do líder que preferiu pôr abaixo todas as conquistas protagonizadas pelo povo explorado e oprimido da Bolívia.
Nós, que vivemos um exílio voluntário desde a mais tenra infância, sabemos que cada vida importa. Seja na Bolívia, Líbano, Palestina ou Corumbá [que é o que vem ao caso, mas, se quisermos, Brasil].
Vamos a estes casos concretos: o povo corumbaense (originário, ribeirinho ou temporário) que mora nos recônditos do Pantanal merece ser privado de uma UBS fluvial, uma ambulancha do SAMU, hospital universitário regional, centro farmacológico fitoterápico do Pantanal? Merece o monopólio de uma empresa de transportes de passageiros que, para angariar os lucros mais insólitos, descumpre a legislação e impõe aos passageiros aviltantes preços de suas passagens? Merece, diante da perplexidade, ter fechado o primeiro centro do SENAI do interior do estado (criado ainda no tempo de Mato Grosso, quando do bicentenário de fundação de Corumbá, em 1978) por decisão de um burocrata que se diz empresário e que algumas luas atrás tentou mas não conseguiu ser presidente da FIEMS por conta dos votos de Corumbá? Onde estão o governador, os ex-governadores e deputados federais que afiançaram a aliança milagreira de um prefeito que diz não ter sido consultado antes do anúncio?
Da mesma forma, acerca do outro lado da fronteira: o povo boliviano merece o abandono, por disputas egocêntricas, que colocaram em segundo lugar o projeto de transformação histórico e, sobretudo, as riquezas naturais (como a maior reserva mundial de lítio e uma das maiores de gás) cobiçadas por abutres e similares do império decadente e de seus aliados da Europa nanica e fascista? Por conta disso tudo, este dia 17 de agosto não é nada alvissareiro, mas ainda resta a esperança de que o povo, soberano que é, saiba corrigir a falta de visão e de empatia de suas elites dirigentes, tão distantes de Deus e tão próximas de Washington. Quem viver verá.
Ahmad Schabib Hany
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