terça-feira, 19 de março de 2024

PUNIDOS PELA COERÊNCIA

Punidos pela coerência

Às vésperas dos 60 anos de uma mentira cinicamente gigante, a sociedade precisa fazer uma necessária autocrítica: por que pessoas competentes são punidas moral e até fisicamente e as verdadeiramente criminosas protegidas e até ‘abençoadas’?

Estamos às vésperas do transcurso dos 60 anos do golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964. Sim, para começo de conversa, 31 de março é a primeira das grandes farsas que compõem a mentira superlativa de uma ‘revolução’ que só aconteceu na imaginação de pessoas incoerentes, de formação inconsistente e, sobretudo, nada patriotas. Simples assim.

Caso o paciente leitor tiver alguma dúvida, hoje as hemerotecas dos jornalões têm os seus acervos totalmente digitalizados. Basta procurar o site de cada um deles e, selecionando os meses de março e abril de 1964, verá que durante todo o mês de março foram realizados eventos de entidades bizarras como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, de Plínio Corrêa de Oliveira [cujo parentesco com os donos do jornalão da Alameda Barão de Limeira nunca foi negado ou confirmado por Octavio Frias de Oliveira, o ‘doutor Frias’ da camaleônica Folha de S.Paulo, que mesmo não sendo jornalista ‘de carteirinha’, tinha mais critério que os filhos que querem ou quiseram posar como tais] e diversos manifestos pagos nos principais jornais de grande circulação, além das diversas edições da ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’.

Se a ‘redentora’ tivesse ocorrido em 31 de março, obviamente, em 1º de abril seu triunfo teria sido estampado nos jornalões, jornaizinhos e pasquins da época. No máximo em 2 de abril, levando em conta que os jornais, por razões de produção gráfica, precisavam ‘fechar edição’, no máximo, até às 16 horas do dia anterior. Mais ágil, a redação do hoje embolorado O Estado de S. Paulo, cujo secretário de redação era ninguém menos que o grande, célebre e genial Jornalista Claudio Abramo (mais tarde diretor de redação da Filha, ou melhor, Folha de S.Paulo), fechava edição às 20 horas, e se preparava para lançar em janeiro de 1965 o Jornal da Tarde, criado pelo igualmente grande e genial Jornalista Mino Carta, para o público mais exigente e de ideias arejadas.

Conhecer e ler sobre História não é nenhum bicho-de-sete-cabeças e muito menos chato, como tentam induzir às pessoas inocentes para serem facilmente manipuladas. Questionar é preciso, como viver e navegar, também. Quais, a propósito, foram os líderes do golpe de 1964? Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, gostemos ou não deles, grandes parlamentares e excepcionais articuladores. Além dos empresários interessados na mudança dos gestores das obras e serviços públicos, que desde a volta de Getúlio Vargas, em 1950, a velha e avarenta oligarquia ex-cafeeira estava sem cacife para as tretas e farras com o dinheiro público desde os inomináveis tempos coloniais. Ou como é que as ‘famílias de bens’ têm o seu ‘belo’ patrimônio, senão sonegando, açambarcando e se locupletando?

Os golpes, no Brasil e em todo o mundo, foram feitos por interesses financeiros, senão não teriam sido feitos, até porque custa caro fazê-los. O de 1964, financiado desde os EUA pelo governo de Lyndon Johnson [aquele que era vice de John Fitzgerald Kennedy, assumiu com a morte de JFK e que se reelegeu em 1965, membro do Partido Democrata, ferrenho crente da Igreja Cristã Discípulos de Cristo, seguidora do Novo Testamento e, em princípio, não sionista, pelo menos até a época], mediante o braço brasileiro da telefônica ITT e coordenação do então embaixador estadunidense Lincoln Gordon e do adido militar Vernon Walters, desde o Rio de Janeiro. E, diferentemente do que depois foi dito, os Estados Unidos foram, sim, parte interessada no golpe, como corroboram fartos documentos expostos na segunda metade da década de 1970 pela Biblioteca Lyndon Johnson, com os arquivos que podiam ser tornados públicos da gestão Johnson, e que o historiador brasilianista Thomas Skidmore revelou em “Brasil, de Getúlio a Castelo”.

Há evidências da intervenção direta de funcionários da CIA, do Departamento de Estado e da Embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, bem como da ITT e de forças militares estadunidenses que emitiram uma advertência à resistência civil e integrantes da Cadeia da Legalidade, no sul do Brasil, de que um porta-aviões ancorado em águas nacionais no Nordeste do país poderia invadir qualquer capital de estado caso a ‘revolução’ estivesse ameaçada. Vimos, anos depois, o mesmo acontecer no Chile de Salvador Allende, Bolívia de Juan José Torres, Argentina de Isabelita Perón, Peru de Velasco Alvarado e Panamá de Omar Torrijos, entre outros países latino-americanos.

Pelo que sabemos, a única ditadura a manter impunes torturadores foi a brasileira -- aliás, também x-9, sonegadores, corruptos, procrastinadores, prevaricadores, conspurcadores, genocidas, pedófilos, traidores da pátria, marginais ligados ao crime organizado, tráfico de drogas, contrabando de toda natureza etc. A Argentina, Bolívia, Uruguai e até o Chile do facínora Augusto Pinochet o fizeram, a despeito de todas as pressões e ameaças, compreensíveis até. Porque a colonização ibérica da América Latina assegurou certa impunidade e privilégios aos membros das elites -- e os militares em tempos remotos faziam parte dessas elites --, o que as Constituições atuais corrigiram. E o Brasil é exemplo disso, pois a Comissão da Verdade, no Governo da Presidenta Dilma Rousseff, chegou a ser iniciada, razão pela qual Heleno, Vilas-Boas e congêneres se somaram a Eduardo Cunha e Michel Temer para cometer o bizarro golpe que levou o Brasil 100 anos para trás.

Essa impunidade, que não só protegeu, como ‘empoderou’ gente fora da lei e totalmente destituída de valores humanos básicos, como torturadores, ‘arapongas’ ou x-9, matadores, serviçais sem quaisquer escrúpulos, alcoviteiros, transgressores, malversadores, atiradores e pistoleiros de aluguel etc, depois do caos preparado para o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, viraram ‘patriotas’ de meia pataca, num misto de tonton macoute e mercadores da fé (religiosos de araque), para coagir, dominar, assediar e, sobretudo, oprimir pessoas de boa-fé para induzi-las à prática de más ações, em confronto com o que pensa e compreende o mundo e a humanidade.

Esses seres desumanos, na acepção do termo, são a essência do pior que a espécie humana poderia ter produzido, e produziu, nestes milênios de existência. Quem são? Os fascistas, que ora se comportam como nazistas, franquistas, salazaristas, integralistas, sionistas, pinochetistas e banzeristas. Nada têm de humanos e muito menos de cristãos, embora façam questão de se alardear a expressão fidedigna do legado de Jesus Cristo. Mas, como muito oportuna e precisamente foi explicitado nas últimas semanas, são pseudocristãos ou neojudeus, que por causa do ‘sionismo cristão’ hoje são os maiores divulgadores de uma doutrina que não existe e nunca existiu: as seitas ligadas à ‘teologia da dominação’ não são cristãs, e, para sorte da humanidade, jamais serão: como o legado de Jesus Cristo pode se miscigenar com o de Davi, a majestade judaica anterior a Cristo, que usou sua posição de soberano para, sem dó nem piedade, levar à morte um general leal a seu reino para desposar de sua viúva só por cobiça (refiro-me ao acontecido com o general Urias, leal soldado de Davi, morto em combate, designado pelo monarca soberbo e ávido por libidinagem)?

Nestes 60 anos de mentiras espalhadas das mais cínicas maneiras, cabe à sociedade civil, mas sobretudo a cada um de nós, uma reflexão sincera e determinante: como permitir a volta covarde e criminosa de verdadeiros terroristas, criminosos sórdidos, para crivar de balas endiabradas nossa benfazeja Constituição Cidadã, da inteligência e generosidade de nossa gente a gênese, e promiscuir o porvir das futuras gerações, sem qualquer compaixão sincera, a despeito de recorrer ao uso de palavras bíblicas para cooptar séquitos fiéis.

Nossa sociedade só evoluirá mediante um sério e profundo reencontro com a verdade, que não será com farsas ou aleivosias, comuns aos que, para dominar, se valem de termos sagrados com o vil intuito de submeter o próximo ao jugo do ódio, dominação e entrega. Não nos curvemos, não nos submetamos a essa prática doentia e perniciosa. Aprendemos com a Vida e os livros herdados de nossos ancestrais que nosso compromisso é com a Vida, tão e unicamente com a Vida. Enganam-se os que querem nos impor uma farsa, crendo que somos ineptos ou iludidos. A mesma Vida que nos mostrou a História é a que rege com altivez e dignidade o devir de nossos semelhantes, dos quais não nos desligamos. Do Povo para o que é do Povo, sempre!

Ditaduras nunca mais! Fascismo jamais! Nas palavras do saudoso Doutor Ulysses Guimarães (principal artífice da Constituição Federal de 1988), “temos ódio à ditadura; ódio e nojo”:

“Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. / Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra. / Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”

Que a mensagem do Doutor Ulysses, um dos punidos por sua coerência, ecoe em nossas consciências e nos revigore. Ditadura nunca mais! Fascismo jamais!

Ahmad Schabib Hany

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