quinta-feira, 10 de novembro de 2022

GAL E BOLDRIN SE ETERNIZAM

Gal e Boldrin se eternizam

A cultura brasileira se empobrece em dose dupla neste 9 de novembro: Gal Costa, a intérprete da voz de cristal, e Rolando Boldrin, o contador de causos mais autêntico da tevê, interrompem sua jornada e passam a iluminar desde a eternidade a população recém liberta do atraso e do obscurantismo fundamentalista.

“Ressuscita-me / Ainda que mais não seja / Porque sou poeta / E ansiava o futuro / Ressuscita-me / Lutando contra as misérias do quotidiano / Ressuscita-me por isso / Ressuscita-me / Quero acabar de viver o que me cabe / Minha vida para que não mais existam amores servis / Ressuscita-me / Para que ninguém mais tenha de sacrificar-se / Por uma casa, um buraco / Ressuscita-me / Para que a partir de hoje, a partir de hoje / A família se transforme e o pai seja pelo menos o Universo / E a mãe seja no mínimo a Terra / A Terra / A Terra” (“O amor”, de Caetano Veloso e Ney Costa Santos Filho, homenagem ao Poeta soviético Vladimir Maiakovski, autor do poema musicado.)

Entre o corre-corre do curso que absorve a maior parte do tempo, eis que a mensagem de minha querida Sobrinha-Camarada-Companheira-Amiga-Irmã-Ídolo Dunia me leva à dura realidade, ao silêncio: a diva, terna e agora eterna Gal Costa se cala logo agora, quando há tanto por fazer, construir, erguer. A gaivota da voz de cristal passa a iluminar para sempre este povo altivo, recém libertado dos grilhões do obscurantismo fascista, farsante e vil. Ela que enfrentou com maestria, ainda garota, a (mal)ditadura perversa e opressora nos anos sombrios de 1960, 1970 e 1980.

Na melódica voz de Gal, ‘Baby’ (Caetano Veloso), ‘Divino Maravilhoso’ (Caetano Veloso e Gilberto Gil), ‘Meu nome é Gal’ (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), ‘O amor / Ressuscita-me’ (Caetano Veloso e Ney Costa Santos Filho sobre poema de Vladimir Maiakovski), ‘Chuva de prata’ (Ed Wilson e Ronaldo Bastos), ‘Sorte’ (Caetano Veloso) e ‘Brasil / Mostra tua cara’ (Cazuza) se alternam na minha memória, como numa gravação que vem do âmago. É que sou da geração que aprendeu o português, o amor e a cidadania ao som de divas como Gal Costa, Beth Carvalho e Elis Regina, entre outras talentosas mulheres de vanguarda, corajosas, transformadoras.

Voz penetrante e inconfundível, Gal era rigorosamente seletiva. Foi incondicional intérprete do fundador da bossa-nova, o imortal João Gilberto. Ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, se transformou na musa do tropicalismo, mas sem deixar suas raízes na bossa-nova. Era dialética, se reinventando o tempo todo, e assim revelou seu ecletismo musical, interpretando, com arranjo magistral, diversos gêneros e compositores. Discreta, jamais se expôs, o que a distanciou do grande público, que, no entanto, soube reconhecer o talento e personalidade. Sua carreira internacional não foi caudatária, pois acompanhou sua própria trajetória: uma conquista pessoal, brilhou nos Estados Unidos e Europa, tendo sido celebrada no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, na década de 1980.

Pena que as novas gerações não tenham desfrutado da genialidade de Gal, aliás, Maria da Graça Penna Burgos Costa, baiana nascida no pós-guerra de 1945. A despeito da ação repressora da (mal)ditadura de 1964, sua geração foi talentosa, irreverente e inovadora e tem um legado extraordinário em diversas áreas da cultura e das transformações deste país-continente. Inspiração para as futuras gerações, tanto na vanguarda estética como no comportamento generoso e irreverente, Gal Costa enriquece a constelação eterna da humanidade, com a peculiar discrição que caracterizou sua vida.

Boldrin, gênio do regional

“Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver / Chega lá em casa pruma visitinha / Que no verso ou no reverso da vida inteirinha / Há de encontrar-me num cateretê / Há de encontrar-me num cateretê” (Rolando Boldrin)

Ainda em Campo Grande, outro baque: o ator, compositor e contador de causos Rolando Boldrin, no mesmo fatídico 9 de novembro, se eternizou também em São Paulo. Todos nós aprendemos muito também com ele, não só em seu pioneiro ‘Som Brasil’, como nos sucessivos programas que foi criando, produzindo e apresentando magistralmente desde 1981.

No tempo em que o televisor era artigo de luxo, aos meus 12 anos, dava um jeito de dar uma escapadela para assistir ‘Os deuses estão mortos’ (Record, 1971) e ‘Mulheres de areia’ (Tupi, 1973) na hospedaria da saudosa Dona Elisabeth Wünder de Arza, Amiga de minha saudosa Mãe. Voz grave, feição sisuda (acentuada pela fronte marcada por uma cicatriz) e sua singular capacidade de interpretação fizeram do ator pioneiro da tevê um ícone, mais pelo talento e versatilidade que pelo pioneirismo.

Sua capacidade inventiva o levou a mais de 150 composições inesquecíveis: ‘Vide vida marvada’, ‘Tema para Juliana’, ‘Seresta’, ‘Violeiro’, ‘Faca de ponta’, ‘Eu, a viola e Deus’ e ‘Amanheceu, peguei a viola’. Além disso, sua generosidade gigante permitiu que inúmeros artistas (não só compositores, como escultores e artesãos) pudessem sair do anonimato e debutar em seus respectivos programas. Graças a essa atitude, milhares de artistas têm nele um padrinho pé quente, pois após debutar em seu programa ganharam rumo em seu ofício sagrado.

Gal e Boldrin, cada qual ao seu jeito sincero e marcante, têm contribuições únicas à cultura brasileira. Abriram também os horizontes de diversas gerações que tiveram neles referência inspiradora, despertando-lhes o sentido de pertencimento e, sobretudo, de cidadania. Numa época em que o tema diversidade-identidade era refém de um estúpido compêndio instituído sem qualquer discussão com as diferentes regiões do País, além da censura imposta por meio dos atos institucionais outorgados na calada da noite durante os sombrios tempos de Médici e Costa e Silva (é proposital a inversão da ordem dos generais de plantão).

Gal, por exemplo, nos deu provas inequívocas de sua rebeldia convicta quando, sozinha, ousou enfrentar a matilha fascista que a ferro e fogo silenciou juventude, artistas, intelectuais, pensadores e oposicionistas e os levou à prisão, tortura, morte ou exílio -- exatamente como ocorreu com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Marieta Severo, que precisaram se refugiar na Europa. Já Boldrin, seu aparente conservadorismo era cênico, para dar um ar de autenticidade a sua genial arte dramática, presente em toda a sua obra, em todo o seu ofício.

Até sempre, Gal! Até sempre, Boldrin! Obrigado pelos inúmeros ensinamentos, obrigado por sua generosidade, obrigado por seu talento e obrigado por ter-nos tornado amantes da cultura do Povo Brasileiro!

Ahmad Schabib Hany

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