quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Entre a lucidez e o desatino...

Entre a lucidez e o desatino...

“Você me quer justo / E eu não sou justo mais / Promessas de sol já não queimam meu coração / Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” (‘Promessas do Sol’, de Milton Nascimento e Fernando Brant)

Este ano já começa sufocante. Não apenas pelas altas temperaturas decorrentes das mudanças climáticas, mas pelo desatino daqueles que tomaram de assalto os principais cargos da República e se creem donos absolutos dos destinos da Nação. Não há um dia em que não sejamos surpreendidos pelos malefícios dos que auferem os maiores salários do País e descumprem com suas obrigações legais. Ao contrário, valem-se da investidura para desinformar, confundir, alarmar, intimidar, ameaçar, acuar, difamar, desintegrar, desagregar, prevaricar, conspirar, implodir, mentir, destruir, atentar, fornicar.

Sem qualquer dúvida, 2022 nos remete a 1978. Isto é, dez anos depois de 1968, o ano que, segundo o Jornalista Zuenir Ventura, “não terminou”. 1978 foi o ano em que se iniciou a contagem regressiva da queda vertiginosa do regime de 1964, que caiu de podre, ao contrário do que mentem as hordas que se escondem por trás das fake news. Desde esse ano, a determinação da cidadania se sobrepôs ao medo imposto por aqueles que se diziam paladinos da liberdade, da moral e bons costumes. E a História provou que fizeram exatamente o que diziam combater, com o agravante de, covardemente, terem censurado, cassado, ameaçado, torturado, raptado, prendido, sumido, matado e sepultado clandestinamente centenas, senão milhares, de opositores, sem direito de defesa.

Chico Buarque e Gilberto Gil vieram com o memorável ‘Cálice’ (“Pai, afasta de mim esse cálice / Pai, afasta de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue...”). A saudosa Elis Regina, com o show ‘Transversal do tempo’, convulsionou os ouvintes com ‘Querellas do Brasil’, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós (“O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil / ... O Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil / ... Do Brasil, SOS ao Brasil / Do Brasil, SOS ao Brasil”). Então Milton Nascimento e Fernando Brant trouxeram uma canção que revelava o sentimento de milhões de cidadãos, ‘Promessas do sol’: “Você me quer belo / E eu não sou belo mais / Me levaram tudo que um homem podia ter / Me cortaram o corpo a faca sem terminar / Me deixaram vivo, sem sangue, apodrecer...”

No hoje distante ano de 1978 a cidadania se insurgia contra o arbítrio instalado a ferro e fogo, sobretudo por meio dos jornalistas, radialistas, sindicalistas, trabalhadores urbanos e rurais, secundaristas, universitários, artistas, músicos, intelectuais, poetas, escritores, professores, advogados, religiosos, engenheiros, médicos, enfermeiros e empresários. Era a sociedade civil que se organizava de novo por liberdades democráticas, anistia e assembleia nacional constituinte. Aos poucos, as notas públicas davam lugar aos atos públicos e às manifestações massivas. As músicas e, sobretudo, os artistas (músicos, atores e poetas) e intelectuais, ao lado da juventude ávida por novos horizontes e por liberdade, davam o tom dos clamores por luz e oxigênio, pois o sufoco, a opressão, era sentida no corpo e na alma.

As reivindicações eram por salários justos e condições de trabalho dignas, não apenas o voto popular, contra o qual o regime de arbítrio já se precavera: sem realizar plebiscito ou qualquer outra forma de consulta popular, fizera a fusão da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, no afã de reduzir o número de parlamentares da oposição, sobretudo no Senado; na calada da noite, criara o estado de Mato Grosso do Sul, para acrescer o número de parlamentares da Arena, partido do regime (tanto que os três primeiros senadores eram do regime); por meio do AI-5, fechara o Congresso Nacional para impor o ‘Pacote de Abril’, que, entre outras aberrações, criou a figura do ‘Senador Indireto’, “biônico”, em um terço das vagas do Senado, que em outras palavras só podia ser da Arena, e como estava dividida, criaram a sublegenda nas eleições para o Senado e para as eleições de prefeito municipal (onde se podia votar, porque em capitais e cidades de segurança nacional, como Corumbá e Ladário, e estâncias hidrominerais o prefeito era nomeado pelo presidente mediante lista tríplice), por meio desse mecanismo arbitrário, eram contados os votos de até três candidatos da Arena (foi assim que o Doutor Plínio Barbosa Martins foi derrotado por Pedro Pedrossian, que teve seus votos somados aos de José Fragelli, da mesma Arena).

Daí que as atitudes atabalhoadas que hoje seus órfãos e viúvos protagonizam estão longe de ser inéditas. Sobretudo, a incompetência não é novidade. Apenas a censura, muitas vezes driblada nos anos de chumbo, é que impedia que ganhassem as ruas por meio de uma imprensa livre. A ‘transição lenta, gradual e segura’ foi seguida à risca, apesar das conquistas consignadas na Constituinte Cidadã conduzida por Ulysses Guimarães. Sarney, vice de Tancredo que herdou o mandato desde o primeiro dia, cumpriu com o acordo, até porque ele era um dos remanescentes da Arena, por isso elegível no Colégio Eleitoral de 1985, como filiado do PMDB (diferente de Marco Maciel, eleito pelo PDS em 1982, e, portanto, inelegível numa eleição indireta, nos termos da legislação do regime, regida pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969).

Portanto, para nós, que tivemos a sorte de ter mais tempo de Vida e pudemos participar da dissolução do regime ditatorial, da construção do Estado Democrático de Direito e, mais recentemente, da defesa/resistência das conquistas democráticas consignadas na Carta Constitucional de 1988, há uma distância abissal entre a lucidez e o desatino. Não só porque a realidade requer de nós rigidez e sensibilidade, mas porque nossa razão de ser é a própria tríade liberdade-solidariedade-progresso, o que pressupõe o caráter não individual, mas coletivo. A humanidade não é uma abstração, como a Terra não é uma convenção: ou trilhamos por caminhos amplos e transparentes, ou nos destruímos todos -- inadmissível para nós, que não temos vocação autodestrutiva e sádica.

Ahmad Schabib Hany

2 comentários:

Estela Márcia disse...

amigo, li e reli de novo... e depois li de novo.
Percebi uma coisa importante: quero só ouvir as músicas. E depois ouvir de novo. Tipo alento presses tempos tão cinzas.

O caminho se faz ao caminhar disse...

Pois é, querida Estela, é essa a sensação coletiva nestes tempos sombrios, e, de fato, a música é a melhor companhia (além dos/as Amigos/as queridos/as)...
Há uma igualmente querida Amiga comum, cujo nome não vem ao caso, que, ao revelar seu estado de espírito, me motivou a escrever este texto. Enquanto respondia a ela é que veio à lembrança a memorável "Promessas do sol", que Amigo(a)s querido(a)s, aqui em Corumbá (como em todo o Brasil), costumavam cantarolar quando nos encontrávamos, fosse para nos divertir ou para realizar algum trabalho da Universidade (no velho CPC/UEMT eu comecei a fazer Letras antes de ir para a FUCMT fazer História).
A propósito, excepcional seu blog, "Vida Mulherida" (https://vidamulherida.wordpress.com/2022/01/18/para-cantar-nacio-bento/), e parabéns pela chegada de Bento, seu Netinho, a quem desejo Vida longa e muita saúde, como a Você e toda a sua querida Família...