quarta-feira, 16 de outubro de 2019

PADRE ERNESTO: CENTENÁRIO DE NASCIMENTO


PADRE ERNESTO: CENTENÁRIO DE NASCIMENTO

No Dia do(a) Professor(a) deste 2019, o Padre Ernesto Sassida estaria comemorando 100 anos de nascimento, sempre ao lado das crianças e adolescentes assistidos pelo seu projeto inovador, a Cidade Dom Bosco, fundada no início da década de 1960. Para homenagear sua memória, a União dos Ex-alunos da Cidade Dom Bosco realizou um singelo, mas emblemático ato, em torno do jazigo do Cemitério Santa Cruz, em Corumbá. Precisamente no ano em que o inovador e consolidado projeto educacional enfrenta a sua primeira ameaça iminente de sobrevivência, decorrente da decisão unilateral da Secretaria de Estado de Educação de desativar o seu período noturno, sob alegação de redução de custos e existência de vagas ociosas. Costuma ser assim: primeiro, desativação do período noturno; no ano seguinte, do vespertino, e aí, o inevitável, com o matutino, desmonta-se toda uma história de um projeto de educação interdisciplinar pioneiro, que articulou, já na década de 1960, inclusão social, saúde, cultura, esportes, formação profissional, assistência social e educação com amor, muito amor.

Nestes tempos adversos para a sociedade brasileira -- sobretudo para a educação, escolhida pelos atuais inquilinos do Planalto como bode expiatório de seu extremismo político (ou melhor, da ausência de projeto de governo) --, o ato teve uma simbologia singular, oportuna. Até parece ter sido uma iniciativa do veterano sacerdote de formação conservadora, mas de uma práxis arrojada e inovadora, pois, embora sempre dissesse que precisou sair do fascismo de Benito Mussolini, que na época aviltava a soberania eslovena, e ter combatido o totalitarismo stalinista já como salesiano brasileiro, as duas décadas derradeiras de sua Vida foram de profunda convivência com setores da chamada esquerda, como ele mesmo reconhecia nas inúmeras confidências com pessoas que não pensavam como ele, mas que com as quais fazia questão trocar experiências, pontos de vista e, sobretudo, caminhar junto.

O Padre Ernesto, na verdade, sempre soube conviver na diversidade: a própria Cidade Dom Bosco é fruto de um profícuo convívio com pessoas de diferentes concepções filosóficas e denominações religiosas nas décadas de 1950 e 1960. Ele revelara, quando do processo de constituição do Centro Padre Ernesto de Promoção Humana e Ambiental (CENPER), que essa iniciativa surgira graças à insistência de um amigo pouco mais velho que ele, o saudoso senhor João Gonçalves Miguéis, um dedicado benfeitor que se dedicara desde a juventude aos estudos do legado de Alan Kardec, o fundador da doutrina espírita. Participante da criação do CENPER, o senhor João Gonçalves Miguéis, ao confirmar esse fato, lembrou das dificuldades quando de sua participação, com o Padre Ernesto, da Legião Mato-grossense dos Amigos da Criança (LEMAC), entidade precursora da que mais tarde viria a ser a imponente e pioneira Cidade Dom Bosco.

Anos depois, outro de seus infatigáveis colaboradores era o técnico protético e pastor evangélico senhor Hernán Guerrero Ledesma, testemunha das grandes transformações introduzidas ao cotidiano de uma população hospitaleira e laboriosa, porém vítima da concentração de renda e ausência de políticas públicas de inclusão, num tempo em que falar dessas coisas era passível de ser preso, sob a acusação de subversão. Por essa razão o Padre Ernesto utilizava eufemismos para não melindrar as elites econômicas e políticas, pois foi assim como conseguiu erigir literalmente um megaprojeto de inclusão social cujo financiamento e voluntariado vieram da Itália, por meio da Operação Mato Grosso, nos idos de 1968, o ano que, segundo o Jornalista Zuenir Ventura, não terminou, e como a história também o confirma.

Até sírios, libaneses e palestinos (e descendentes) estiveram, lado a lado, como os senhores Jorge José Katurchi (desde os tempos de seus pais, Dona Amélia Abraham Katurchi e o senhor José Katurchi), Salim Kassar, Domingos Sahib, Armando Anache, Salomão Baruki, Fadah Scaff Gattass, Márcio Toufic Baruki, Ale Hamie, Antar Mohamed e Roberto Mustafa, compartilhando da trajetória dignificante do eternamente jovem esloveno que o Brasil revelou missionário de transcendência para a educação salesiana -- aquela do sistema preventivo de Dom Bosco, acrescida dos legados de Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, que ele conhecia, ainda que não os exibisse, até por conta do ranço antieducação existente nas camadas mais aquinhoadas --, sendo o Brasil um celeiro de educadores/as e de pensadores da educação, mas, paradoxalmente, não consegue implantar uma política de Estado, consistente, permanente, capaz de atravessar décadas, de modo a poder constatar a sua efetividade.

Muitos apoiadores do Padre Ernesto mantiveram, por toda a Vida, discrição e reserva, razão pela qual, em respeito a esse pacto celebrado entre pessoas que não estão mais entre nós, devemos respeitar a vontade deles e não declinar os seus nomes. Mas muitas famílias tradicionais pantaneiras deram sua contribuição no decorrer das incansáveis atividades desenvolvidas pelo educador salesiano, fosse no início de sua obra como em seus momentos derradeiros, mas com generosidade e companheirismo. Quando da constituição do CENPER e do Clube dos Amigos do Padre Ernesto, na primeira década do século XXI, pudemos testemunhar esse nível de cumplicidade, a toda prova. Obviamente, dois nomes que não podemos omitir, tamanho o grau de cooperação desenvolvido: o do ex-deputado e ex-conselheiro do Tribunal de Contas de Mato Grosso, Amigo de primeira hora, Professor José Ferreira de Freitas, biógrafo e relator oficial do Padre Ernesto, e o pecuarista Lino Viegas, responsável de muitas iniciativas solidárias em todos os momentos.

Entre seus incontáveis colaboradores, de todas as camadas e classes sociais e nacionalidades, havia também os discretos senhores Assunção do Carmo Vieira, também fundador da Corporação de Patrulheiros Mirins e da Associação de Aposentados, Pensionistas e Pessoas Idosas de Corumbá e de Ladário, e Carlos Urquidi, criador de diversos projetos premiados de inclusão de adolescentes em situação de vulnerabilidade social e saudoso pai do Professor João Carlos Urquidi, sempre lembrado ex-diretor da Escola Estadual Júlia Gonçalves Passarinho. Além das então jovens professoras Camila Rosalina Souza de Pontes e sua prima, Norma de Souza, pioneiras ainda do tempo do barraco de Dona Catarina, onde tudo começou, no início da década de 1960. E não esqueçamos das colaboradoras no setor de projetos, como as então assistentes Margarida Garrido Duarte, Ana Maria Hellensberg, Nildete Dias e Lindivalda Gonçalves dos Santos, que o acompanharam ao longo das últimas décadas de sua Vida longeva.

Eis que o País que ofereceu para o mundo tão generosos pensadores de diferentes posições ideológicas e com sensibilidade social na área da educação (Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, entre tantos outros) tem todas as condições de atender os anseios sociais de um povo acolhedor e, sobretudo, laborioso para promover a verdadeira inclusão cidadã por meio da educação. Pois, como sincera homenagem e reconhecimento, as autoridades façam da educação uma verdadeira prioridade e façam o possível e o impossível para que as verbas da educação sejam mantidas nos valores de 2016 para que a Cidade Dom Bosco não vire saudade, ainda mais no ano do centenário do emblemático educador salesiano que se incomodou com a abundância natural e a miséria, geradora da exclusão social injustificável, para realizar uma obra imortal e permanente no coração do Pantanal e da América do Sul.

O Padre Ernesto, aliás, ao lado de outros sacerdotes católicos como os saudosos Padres Emilio Zuza Nena e Antônio Müller e Dom José Alves da Costa (Bispo Diocesano de Corumbá entre 1991 e 1999, generoso incentivador e coordenador-geral do Pacto Pela Cidadania e da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida em Corumbá e Ladário, eternizado em 2012), fizeram a antítese ao mito da absurda “maldição” do Frei Mariano de Bagnaia, ao constatar que a atuação generosa de pessoas de fé (independente de qual denominação seguissem) foi responsável pelas transformações ocorridas nas terras da imorredoura nação Guató. Talvez num dia não tão distante a população pantaneira possa testemunhar o reconhecimento, tal como hoje ocorre com a Irmã Dulce -- aliás, Santa Dulce dos Pobres --, de sacerdotes que ofereceram seus melhores dias para a inclusão social de seus irmãos corumbaenses e ladarenses, uma causa tão justa e louvável que despertou o reconhecimento de ultramar.

Ahmad Schabib Hany

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