terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Jr., semeador de horizontes




Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Jr., semeador de horizontes

Quinze de dezembro de 2017. Dia de canos e sustos. Duas defesas de trabalhos acadêmicos de duas queridas Amigas: uma na Unidade I – de Natiély Ferreira Nobre, graduanda em Pedagogia – e a outra na Unidade III – de Marilene Rodrigues, mestranda em Educação –, no mesmo horário, início da tarde. À noite, o compromisso também agendado para o lançamento do livro autoral do querido Amigo e Jornalista Edson Moraes, ex-colega de trabalho, ex-editor, Companheiro, Irmão e Camarada desde e até sempre. Na pressa, ligo para o igualmente querido Amigo e Jornalista Nelson Urt. Eis a notícia que não gostaria ter recebido: a sua querida Mãe falecera aos 94 anos e ele se encontrava no velório.

No momento em que me preparo para ir a Ladário, para acompanhar o funeral da agora saudosa Mãe do Nelson, surpreende-me uma ligação inusitada. Trata-se de uma neta de um dos Amigos que a Vida me presenteou – o Professor Otaviano Gonçalves da Silveira Júnior, que trocara São Paulo por Corumbá, entre 1973 e 1976, para dedicar-se generosamente à formação de jovens ávidos de saber e, sobretudo, de cidadania, naqueles anos de chumbo, tempos cruentos.

Júlia Romanello, o nome da neta desse Professor com letra maiúscula. Embora tivesse convicção de sua vocação para as Letras, optara por cursar Direito, por razões puramente pessoais. As lembranças do Avô Professor talvez não a tivessem estimulado para tamanha abnegação... Chegara até a mim depois de haver pesquisado na internet sobre o seu Avô. Em 2009, acredito que em maio, criamos um blog em sua homenagem (“Alunos do Professor Otaviano”), que ficou na primeira postagem. Mas, quase dez anos depois, por causa do contato de sua neta, temos certeza de que a homenagem àquele Amigo haverá de vingar...

Ele, filho homônimo de um coronel da Polícia Militar de São Paulo e sobrinho da saudosa cronista Helena Silveira (na Folha Ilustrada, desde os tempos em que a Folha era “da Manhã”), cursara Letras no início da década de 1960, quando também trabalhara como revisor no jornal em que a tia escrevia. No alto da maturidade pegara o trem na emblemática Estação da Luz, na capital paulista, até chegar à estação derradeira, na longínqua Corumbá, ainda estado de Mato Grosso, em fins de 1973. Aos 41 anos, decidira viver um novo e arrebatador amor, em segundas núpcias, com uma jovem paulistana também professora – com quem tivera dois filhos, João Francisco e Paulo Henrique, nascidos respectivamente em Corumbá e Campo Grande.

Aluno de Letras da Universidade de São Paulo, sua turma, de 1962, brindou sua conclusão com um recital intimista da eterna Maísa Monjardim Matarazzo em Portugal, para onde foram celebrar a formatura. Contava ele, em tom jocoso, que tinha um contemporâneo da Matemática que era seu sósia – o Professor Osvaldo Sangiorgi (falecido em meados de 2017), célebre autor de vasta obra de Matemática Moderna, como se soía chamar o novo método de ensino das ciências exatas entre 1968 e 1973, época do “milagre econômico”, do “sonho da casa própria” e do “carro da classe média”, entre outras falácias disseminadas pela máquina de propaganda nazis..., digo, da ditadura – e que lhe causara muitos (des)encontros inusitados. Ambos tinham estudado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e exercido a docência praticamente nas mesmas instituições da São Paulo da bossa-nova, herdeira da geração vanguardista dos ousados criadores da Semana da Arte Moderna, décadas antes.

Nos quase três anos de permanência em Corumbá, lecionou com brilhantismo Literatura Brasileira e Portuguesa e Língua Nacional no à época “segundo grau” nas escolas estaduais Santa Teresa e Júlia Gonçalves Passarinho, além de ministrar com maestria diversas disciplinas no curso de Letras no antigo Centro Pedagógico de Corumbá, vinculado à então Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), federalizada mais tarde, depois da divisão de Mato Grosso, em 1977. Incansável, ousou criar, em sociedade com o saudoso Professor Habib Metran, o primeiro curso preparatório para o Vestibular da história de Corumbá, sugestivamente chamado de “Esquema”, de efêmera existência, mas que capacitara muitos jovens corumbaenses e ladarenses para a vida universitária em diversas capitais, pelo Brasil afora.

Início de 1974, primeiros dias de docência em Corumbá: manifestou ter-se surpreendido com a existência de duas irmãs “turquinhas” na mesma série do ensino médio, no período matutino do Colégio Santa Teresa. Dias depois, quando foi dar a primeira aula na primeira série vespertina do ensino médio do Centro Educacional Júlia Gonçalves Passarinho, qual não foi minha surpresa de ver o Professor Otaviano rir incontidamente ao saber que eu era irmão das “duas meninas do Santa Teresa”. Um tempo depois, perguntara, tanto às minhas irmãs como para mim, se o “outro Schabib” (o querido e saudoso Mohamed), do curso de Psicologia do Centro Pedagógico, era nosso irmão, e demonstrou ter ficado feliz de saber que toda uma família de imigrantes se dedicava aos estudos. Ele só saberia mais tarde que havia mais uma irmã, caçula, no ensino fundamental e cinco irmãos, pelo mundo afora, em diversas universidades – porque meu inesquecível Pai, que não concluíra Filosofia no Cairo por causa da deflagração da Segunda Guerra Mundial (ele se recusara a ser bucha de canhão das tropas do império britânico, até porque sua terra-natal era o Líbano, então colônia da França), e minha saudosa Mãe, filha de dentista libanês embrenhado na Amazônia boliviana e aficionada por enfermagem e leitura, tinham pelo estudo, pelo conhecimento, a única via libertária para a humanidade, jamais apenas mero meio de vida, de ascensão social ou, pior, instrumento de dominação e exclusão, como ainda é praticado em pleno século XXI.

Muito sincero, ao saber de nossa ascendência libanesa, contara-nos que tinha sido diretor de um colégio judaico em São Paulo e que se declarava simpático ao recém-criado Estado de Israel com o voto de minerva do brasileiro Osvaldo Aranha, presidente da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Contudo, nunca nos censurara ou demonstrara qualquer contrariedade ao saber de nossa posição de total solidariedade ao povo palestino ao longo de nossa Amizade. Chegou até a me ajudar a revisar a tradução para o português de um artigo de meu saudoso Pai sobre a Guerra Civil do Líbano (1975), para ser publicado no matutino local mais lido de então, o Diário de Corumbá, dirigido pelo saudoso Jornalista Carlos Paulo Pereira Júnior, sem externar qualquer divergência sobre o que lera e, ainda, tendo melhorado meticulosamente a redação final.

Da mesma forma que não interferia em nossas opiniões, inclusive políticas, ele não camuflava seu conservadorismo político. Obviamente, saíamos do mais cruel governo do regime de 1964, chefiado com mãos de ferro (e fogo) pelo general Emílio Garrastazu Médici, para quem até seu colega e ex-articulador, o general Golbery do Couto e Silva, e o líder civil do golpe, Carlos Lacerda, não eram confiáveis por sua “flexibilidade” com os “comunistas”. Mesmo assim, com cordura e lucidez, fazia suas sábias recomendações, de modo discreto e pessoal, quando percebia, por sua experiência de vida, que podíamos incorrer inadvertidamente em algum “excesso”, por puro voluntarismo juvenil.

Sabia resguardar racionalmente a produção literária do obtuso sistema educativo imposto pela Lei nº 5.692/1971 e, sobretudo, pelos sinistros decretos 477 e 228, que coibiam a autonomia intelectual da juventude escolar. Foi com ele que aprendemos a interpretar pérolas como “E agora, José”, de Carlos Drummond de Andrade, e “Roda Viva”, de Chico Buarque de Holanda. Também foi dele a brilhante iniciativa de nos propor um tema para uma de nossas primeiras dissertações “políticas”: “A corrida espacial vs. a fome no mundo”. Aliás, com essa redação coletiva (feita a oito mãos, com os Amigos Juvenal Ávila de Oliveira, João de Souza Álvarez e Benedito Jesus Silva da Cruz, em que concluíamos que “é pela teoria e pela intenção que se faz a prática”), que lera para colegas de outras escolas, me decidi pelo Jornalismo quando minha opção havia sido Odontologia ao escolher o técnico de enfermagem do Centro Educacional sob a direção da querida Professora Edy Assis de Barros, não sem antes nos comprometermos a criar um jornal escolar, viabilizado um ano depois, com o espetaculoso nome de O Clarim Estudantil, de circulação interescolar (e vida curta), tendo o Professor Otaviano como consultor e, obviamente, revisor.

O precoce (e súbito) falecimento, por causas não naturais, de meu saudoso Irmão e guru Mohamed ocorrera naquele mesmo ano. A discrição e o respeito solidário revelados pelo Professor Otaviano foram marcantes, sobretudo por conta de rumores maldosos que cercaram a sua morte e impactaram toda a Família. Tal gesto fora compartilhado por colegas de meu Irmão, que haviam solicitado a celebração de Missa de Sétimo Dia na Igreja Matriz, cuja presença massiva representou um ato de desagravo para os meus Pais, que mesmo assim nunca se recompuseram daquele trauma. Talvez por sua conhecida posição conservadora, ele se permitisse transitar com desenvoltura pelos diversos segmentos sociais e ideológicos, em pleno período de truculência, obscurantismo e medo.

Corintiano “com muito orgulho” (na década de 1970, o Timão batera o duro recorde de não ter sido campeão por duas décadas, pelo que seus torcedores eram alvo de todo tipo de provocação) – um dos raros momentos em que o víamos sair de sua discreta impassividade –, sua Variant cor abóbora trazia no vidro traseiro um adesivo gigantesco com o emblema de seu time. No segundo semestre de 1975, a partir de quando a querida Amiga Soely Ivacquia de Oliveira passou a nos acompanhar nas aventuras do ensino médio do hoje JGP, aumentou o conteúdo de suas aulas de Literatura e Língua Nacional (talvez por saber que no ano seguinte poderia deixar de nos lecionar), suprindo faltas de colegas, tendo conseguido fazer-nos estudar praticamente toda a ementa do segundo grau antes de nos ter deixado.

Uma de suas últimas iniciativas como responsável pela área de Comunicação e Expressão constante de nosso currículo foi a realização de um ciclo de palestras (para nós até então inédito) com alguns profissionais, no qual nos foram apresentados os cursos e respectivos currículos, em que o debate sob sua mediação era livre, sem censura. Em nenhum momento, aliás, tocou-se em “sua santidade” o “deus” mercado, o que demonstra sua formação de educador clássico. Graças a ele, conhecemos jovens profissionais renomados, como o querido Amigo e Jornalista Edson Moraes (também seu ex-aluno) e o eternamente querido e saudoso artista gráfico e comunicador Augusto Alexandrino dos Santos, o Malah, que pouco tempo depois passaria a ser nosso novo Professor de Desenho Geométrico.

Ao se mudar para Campo Grande, em 1976 - antes, portanto, da promulgação da Lei Complementar nº 31, que dividiu Mato Grosso, criou Mato Grosso do Sul e transformou a então provinciana Cidade Morena em capital da nova unidade da federação -, ele foi uma revelação nos concorridos cursos Galeno, Anglo-Mace e Objetivo-Dom Bosco, a ponto de ter ofuscado célebres professores de Língua Nacional e de Literatura Brasileira e Portuguesa da bucólica futura "Nova Cap" (como o agora saudoso Professor Hildebrando Campestrini, a cujas aulas assisti durante os dois semestres básicos como aluno de História, a partir de 1979, em Campo Grande).


Nesse meio-tempo, eu e o Professor Otaviano trocávamos duas a três cartas por semana, em que fazíamos (mais eu que o discreto Professor) comentários sobre tudo: o nefasto "acordo" de Camp David, em que o ditador Anwar Sadat se vendia para os Estados Unidos; o fechamento do Congresso Nacional e a edição do funesto "Pacote de Abril", de 1977, e da criação da figura bizarra do "senador indireto", ou "biônico", e a prorrogação das eleições de governadores e de prefeitos de capitais e de estâncias hidrominerais e áreas de segurança nacional; a festa dos políticos de Campo Grande pela criação de Mato Grosso do Sul para criar três novas vagas no Senado e seis novas vagas na Câmara Federal para a Arena, que já dava sinais de exaustão em sua duvidosa credibilidade junto ao eleitorado, e o nível da imprensa campo-grandense, em que se destacava o saudoso diário A Tribuna, do Jornalista e Deputado Sérgio Cruz, no qual nosso Amigo (e ex-aluno dele) Edson Moraes era repórter especial.

Quando passei no Vestibular para o curso de Letras do Centro Pedagógico, em 1977, saudou meu ingresso à vida universitária não sem advertir-me de que não permaneceria por muito tempo na terra que acolhera tanto a minha Família como a dele – não por falta de perspectivas, mas pela necessidade de que eu teria de superar limites na profissão que ele me ajudara a escolher. Embora tivesse memorizado com carinho o nome de todos os Professores e Professoras do curso de Letras – como os queridos João Françolin, Kate Eliana Caetano e Padre João –, à época vespertino e com apenas dois jovens com menos de 20 anos entre 25 alunos, em sua maioria já mães ou avós, decidira fazer novo Vestibular e me mudar para Campo Grande, atendendo às sugestões dele.

Assim que cheguei a Campo Grande, depois de me matricular no curso de História na Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras, das à época Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT) e de ter sido contratado como revisor no Diário da Serra (ao lado dos queridos “Seu” Rubens e “Seu” Libório, mais que sábios colegas, verdadeiros Amigos e conselheiros), fui até a Cidade Universitária (da ainda UEMT) para falar pessoalmente com o Professor Otaviano e reatar a “velha” Amizade de quatro anos. Chegando lá, me informaram que ele havia sido nomeado diretor do Centro Pedagógico de Dourados, no lugar do Professor José Carlos Abrão, que também já havia trabalhado em Corumbá.

Aquele cargo foi extremamente desgastante para o Professor Otaviano, pois a primeira greve de alunos (da Agronomia) da UFMS associou sua imagem à do reitor-interventor da Universidade de Brasília (UnB), almirante José Carlos Azevedo, como me confirmariam meses depois meus Amigos de Movimento Estudantil, Gumercindo “Guma” (que depois de formado foi trabalhar com Chico Mendes em Xapuri, no Acre) e Jorge Benevides (que, após ser expulso da universidade com base no Decreto 477, foi nomeado funcionário por concurso público no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, até se aposentar, três décadas mais tarde). Por causa de um infarto, o Professor Otaviano foi liberado da direção do depois Centro Universitário de Dourados, tendo passado um breve período em gozo de licença médica.

Tão logo soube que ele assumiria a direção do Centro de Ciências Humanas, no subsolo do Estádio Morenão, em Campo Grande, retornei para lá. Fui prontamente recebido pelo próprio Professor Otaviano, sempre cortês e afável, mas pude perceber seu desconforto nesse cargo, porque atendia a interesses dos quais já em Corumbá tentava se desvencilhar inútil e impotentemente. Apesar de jovem (deveria eu ter então 20 anos de idade) e inexperiente, o convívio com dois irmãos ligados ao Movimento Estudantil durante as ditaduras que infelicitaram a América Latina me permitia um olhar mais crítico em relação ao comportamento de docentes e inclusive colegas que faziam o jogo dos poderosos de plantão.

Para não lhe causar constrangimentos, reduzi vertiginosamente as visitas ao seu local de trabalho, limitando-me a fazê-las quando tinha alguma entrevista (fosse por conta do jornalismo ou trabalho acadêmico), pois seu vínculo com o primeiro (e único) reitor da UEMT, então em fim de mandato (já muito desgastado), professor João Pereira da Rosa, o tornava refém de um esquema de poder que desmoronava a olhos vistos, mas cujo grupo permanecia fechado em copas, tal qual a Arena (o partido de sustentação do regime), de triste memória, relutante a aceitar a realidade e promovendo retaliações de todo tipo, a todo momento – com alunos, professores e funcionários.

Entristecido pela condição em que meu Amigo se encontrava, respeitei silenciosamente o seu (para mim) martírio de consciência, até nos reencontrarmos em meados de 1984 em Corumbá, no final do mandato do reitor Edgard Zardo, de cuja assessoria ele participava (acredito que chefe de gabinete). Como repórter de um velho matutino do estado e graças à amizade com dois editores setoriais seus, cobri o lendário VI Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão (SEPE), articulado pelo querido e brilhante Amigo e Professor Gilberto Luiz Alves, saudado pelo Professor Célio Cunha, então diretor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), como uma “míni SBPC” (numa alusão aos fecundos congressos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que ao lado da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB –, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – e da Associação Brasileira de Imprensa – ABI –, representara a vanguarda da luta cidadã naquele triste momento da história do país).

O Professor Otaviano também participou da equipe de assessores do sucessor, o saudoso Professor Jair Madureira, em cujo mandato democrático de reitor foi possível a conquista e criação do curso de Comunicação Social, mediante a atuação combativa do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Mato Grosso do Sul. E como assessor do Professor Madureira esse querido Amigo se despediu de mim, coincidentemente em nossa querida Corumbá (eu já havia retornado e era correspondente do mesmo matutino). Nosso derradeiro encontro foi breve, mas memorável, tendo como cenário o majestoso Rio Paraguai e o testemunho da querida Amiga e Pesquisadora Sílvia Maria Costa Nicola (primeira mulher pesquisadora da então UEPAE local da Embrapa, vinculada ao Centro Nacional de Gado de Corte, de Campo Grande), outra querida Amiga que a Vida me presenteou por meio do igualmente querido Amigo e Professor Arnaldo Yoso Sakamoto, responsável, ao lado da querida Amiga e Professora Gisela Levatti Alexandre (depois diretora do Centro Universitário de Corumbá, CEUC), pela criação do curso de Geografia em Corumbá.

No Brasil finalmente começavam a soprar, ainda que timidamente, os saudáveis ares da democracia (vivia-se o encanto com a ilusória posse de Tancredo Neves como primeiro presidente civil pós-64) e Corumbá sediava o Primeiro Simpósio sobre Recursos Naturais e Socioeconômicos do Pantanal, sob a coordenação do pesquisador Eduardo Künze Bastos e do Professor Arnaldo Sakamoto, resultado de uma parceria da Embrapa com a UFMS, que celebraria durante o evento a inauguração do Centro de Pesquisas Agropecuárias do Pantanal (CPAP, depois Embrapa Pantanal). O chefe local da Embrapa (último da UEPAE Corumbá e primeiro do CPAP) era o cordial e competente Pesquisador Araê Book, ladeado pelo não menos querido Pesquisador (com letra maiúscula) Arnildo Pott. Pela UFMS, como diretora do CEUC, a querida Professora Edy Assis de Barros, e o Professor Otaviano representando o reitor.

O retorno a Corumbá me impeliu (palavra que aprendi com ele) a (re)conhecer a história, a gente e sobretudo o Pantanal, o que, por algum tempo, me distanciou dos Amigos que estavam fora. Foi um duro aprendizado, quase um renascer de fênix. Décadas depois, quando precisei realizar um trabalho em São Paulo (final da década de 1990), ao passar por Campo Grande e visitar os queridos Amigos e Professores Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa, é que fiquei sabendo que o Professor Otaviano havia sido levado por sua Mãe para São Paulo, por estar dependendo da ajuda de terceiros para sobreviver, vítima de sucessivos AVCs que o deixaram preso a uma cadeira de rodas e morando numa modesta pensão nas imediações da Praça Ary Coelho. Mais impactante foi saber que era visto pedir ajuda para se alimentar, comprando marmitex nas redondezas da praça. Isso fez com que colegas da UFMS se mobilizassem por solidariedade e respeito, sobretudo, à sua dignidade humana.

Assim, ao chegar a São Paulo, procurei na lista telefônica o nome de família do Professor Otaviano, mas não consegui localizá-lo. Lembrei-me, depois, do querido Amigo e Professor Altevir Alberton, memorável docente, padrinho de batismo de João Francisco (portanto, compadre do Professor Otaviano). Consegui ligar para sua casa, em Campo Grande, e a esposa me deu a notícia de que o Amigo que procurava em São Paulo falecera havia um ano, pouco antes da Mãe, com quem estava morando desde seu retorno à sua cidade-natal.

Desde então (acredito que março de 1999), passei a contatar Amigos que foram alunos seus com o intuito de homenageá-lo postumamente, já que a Vida, pelo menos nos derradeiros dias, lhe fora profundamente ingrata. Até hoje fico a me perguntar como alguém que disseminou com tanta generosidade conhecimento como ele pôde haver passado momentos adversos e tamanha solidão, e logo na cidade que ele escolhera para viver um grande amor? Felizmente a Mãe ainda vivia e pôde lhe oferecer o aconchego materno no final da Vida.

Quarenta (e uns) anos depois, querido Professor Otaviano, estamos a renovar nosso reconhecimento e, sobretudo, nossa Amizade incondicional, pois de alguma forma fomos frutos de sua inquietude e, obviamente, de suas contradições, inerentes à condição humana. Seu legado vive em nós e, dentro de nossas limitações abismais, tentaremos perenizá-lo para que as novas gerações possam ao menos conhecê-lo como mais um profissional da educação que, dialeticamente, tentou ao seu modo forjar a sociedade que acreditava melhor para seus entes queridos e inclusive para “estranhos” que, apesar de aparentes diferenças intransponíveis à época, souberam amá-lo ao seu modo e inspirar-se naquilo que lhes parecia exemplar – e que decorridas quatro décadas não mudaram seu conceito sobre sua conduta como educador, um incansável semeador de horizontes.

Ahmad Schabib Hany

Um comentário:

Schabib Hany disse...

Mensagem da querida Amiga Sueli Soloaga, que me pediu para postá-la nos comentários:

Sou administradora do grupo "JGP ON-LINE" no Facebook e também abri um grupo no whatsapp dos Ex-alunos do JGP.
Fiquei muito triste de saber do triste final da vida do nosso tão querido professor de português Otaviano.
Muitas vezes ele foi e ainda é lembrado por nós. Quando ele começava a ditar a matéria, sempre tinha um retardatário que dizia: "Peraí, fessor!" E ele sempre respondia: "Tô perando."
Essa é uma das tantas lembranças boas que ele deixou para gente!!!!!!
Sueli Soloaga