IMPÉRIO
DA MENTIRA
Que ‘a mentira tem pernas
curtas’, consagrado pela sabedoria popular, ninguém duvida. O que não dá para
entender por que e como os novos inquilinos do poder de uma das mais
importantes economias do planeta teimam em permanecer nesse lodaçal. É a ‘certeza
da impunidade’? Fruto de uma sucessão de golpes, não é de duvidar que estejam ‘blindados’,
sobretudo pelo ‘deus’ mercado...
Quem tiver competência que se estabeleça. É mais
ou menos como a sabedoria popular tem nos ensinado ao longo de séculos. Isso
vale para os bizarros seres envolvidos no ardil do golpe, ou melhor, dos sucessivos
golpes ocorridos no Brasil a partir de abril de 2016. Feito fora de lei
protegidos pelas ‘forças ocultas’ bem lembradas por Jânio da Silva Quadros em
sua sugestiva carta-renúncia em 1962, véspera do dia do soldado, cometem cínica
e ostensivamente à luz do dia, atentando contra o Estado Democrático de
Direito, o meio ambiente, povos originários, afrodescendentes, mulheres, população
LGBTQIA+, reservas petrolíferas, aquíferas e minerais - enfim,
contra a soberania nacional.
Ao contrário da grande maioria da população, as
elites tupiniquins, desde os primórdios, são useiras e vezeiras da impunidade.
Além da desgraça pessoal de Pedro Álvares Cabral, despejado às masmorras depois
de ter comandado a esquadra que amealhou o extenso território da maior e mais
rica colônia lusitana, temos o emblemático episódio da prisão e condenação à
forca e esquartejamento de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, enquanto
os seus companheiros abastados foram condenados a penas menores, quando não
ignorados (portanto, anistiados informalmente) de quaisquer punições.
Decorridos alguns séculos, em fins da década de
1990, na data em que se ‘comemora’ o ‘Dia do Índio’ desde os tempos de Getúlio
Vargas (19 de abril), cinco filhos de oligarcas de Brasília, entre eles um
filho de juiz federal, atearam fogo no corpo de um ‘mendigo’ que dormia no
banco de um ponto de ônibus. Crime praticamente impune, os envolvidos nesse
lamentável episódio em que perdeu a vida Galdino Jesus dos Santos, líder Pataxó
que se encontrava em Brasília quando foi alvo do atentado bárbaro que lhe tirou
a Vida depuseram que “não tinham intenção de matar”, tendo as suas penas
comutadas quando não parcialmente cumpridas (os ‘fidalgos’ foram flagrados
passeando em seus carros e se divertindo em vez de permanecer nas celas durante
o tempo em que deveriam estar privados de liberdade).
Se isso não bastasse, há mais de três anos, os
dois únicos dignitários brasileiros em quase dois séculos de vida ‘soberana’
que foram alvo de uma insidiosa operação acusatória, em que a primeira mulher, por
um hipotético crime nunca provado (apelidado de ‘pedalada fiscal’), foi
destituída do cargo para o qual fora reconduzida e o primeiro operário reeleito
presidente e que concluiu o mandato com os mais altos índices de aprovação de
todos os tempos levado às masmorras às pressas, antes de esgotados os recursos
judiciais constitucionais. Acusação: atos de corrupção nunca provados. Com o
claro propósito de impedi-lo de disputar as eleições, nas que um despreparado, desequilibrado
e mentiroso ‘mito’ destruiu o Estado Democrático de Direito, dilapidou o
patrimônio público (cultural, ambiental, mineral e financeiro), deixou que
morressem por ação ou omissão mais de meio milhão de brasileiros durante a
pandemia e nomeou ministro o juiz-ladrão que tirou do páreo seu principal
concorrente. Todos eles, sim, permanecem impunes, pelo menos por enquanto...
Surpreendeu a todos, a propósito, a melancólica
despedida do decano da mais alta corte em uma de suas derradeiras
manifestações, às vésperas de se aposentar. O Ministro Marco Aurélio Mello, cujo
ingresso ao Supremo Tribunal Federal foi cercado de um misto de contrariedade e
desconfiança pelo fato de o então Presidente Fernando Collor de Mello, seu
primo, tê-lo nomeado, sua atuação no STF contribuiu efetivamente para a
consolidação do Estado Democrático de Direito, como na questão dos direitos da
união de casais homoafetivos. A rigor, o fato de ser familiar de um
ex-presidente destituído por corrupção deve ter pesado nessa inusitada postura.
Longe de fazer juízo de valor, o conservadorismo inerente às nomeações
anteriores a Fernando Henrique Cardoso (e a partir do regime de 1964) propiciou
esse tipo de imprevisibilidade pendular.
Como a impunidade, a mentira é irmã siamesa da
conduta recorrente destas elites cuja ascensão socioeconômica se confunde com a
pilhagem e a rapinagem praticadas pelos ancestrais colonizadores, no processo
conhecido na história como acumulação primitiva do capital. Aliás, é de causar
perplexidade a impostura ‘ética’ (do falso moralismo, em verdade) das maiores
fortunas deste país quando tentam justificar a sonegação fiscal como um gesto
de ‘desobediência’: à exceção de dignos empresários contados nos dedos da mão, trata-se
de uma prática recorrente de incontáveis ‘veios da havan’ et caterva, cujas
fortunas são produto cínico do tráfico de influência e “otras cositas más”, e
que entre os anos 2006 e 2016 tentaram atribuir as mazelas centenárias a
governos petistas que se sucederam durante menos de 14 anos.
Tanto é verdade, que não há um governo no planeta
livre da corrupção. Só as ditaduras negam e renegam este fato. Ela, a
corrupção, é usada como bandeira política por grupos oportunistas que, quando
chegam ao poder, arranjam outras bandeiras para escamotear a realidade. E, ao
contrário dos cultores de falsos heróis, só o Estado Democrático de Direito
assegura o verdadeiro combate à corrupção, por meio da transparência, práticas
republicanas (livres de ‘meus filhinhas’ e ‘meus malvados favoritos’) e
políticas públicas que acabem com privilégios de certas corporações, sejam elas
fardadas ou togadas, as duas que teimam em se apossar das conquistas cidadãs
que derrotaram o regime de 1964 e, a partir de 1988, escreveram novo capítulo
da história da República.
Nesse sentido, aliás, faço um mea culpa. Não que eu tivesse participado de algum ‘ato de protesto’
dos golpistas que, na falta de capacidade para ganhar pelo voto soberano,
recorreram ao falso moralismo mais deslavado para criar as condições para o
golpe. O mea culpa a que me refiro é
não ter sugerido aos muitos ‘éticos’ de última hora e, em especial, equivocados
ler autores milenares que tratam do poder com a argúcia precisa que, durante o
apagão intelectual dos célebres jornalistas tupiniquins, muito faltou nas
vergonhosas ‘coberturas jornalísticas’.
Valho-me da memorável máxima do sempre preciso e
contemporâneo (letra maiúscula, por favor) Professor Paulo Freire, de que “a
vida não tem ensaio”. Assim, pelo fato de eu (bem como a maioria da população)
nunca ter vivido um período tão bizarro como os que vivemos, não tenha sido
possível dar uma resposta rápida a estas circunstâncias no mínimo anacrônicas. Quanto
aos pensadores milenares dignos de recomendação, tomo a liberdade de deixar para
uma próxima oportunidade, com base em experiência realizada com alunos há alguns
anos, antes da sucessão de patacoadas que já entraram para a história
contemporânea.
Acredito que seja o melhor começo para
desconstruir o “pensamento único” reinante em nossos tempos, em que uma suposta
‘pós-verdade’ tenta relativizar o abismo para onde a ideologia de mercado está
levando impunemente a humanidade. Questionar, duvidar e contrapor, aliás, é o
melhor antídoto para as ‘verdades inquestionáveis’, sinônimo da velha e
conhecida mentira, que também pode ser chamada de ‘mito’ (sic).
Ahmad Schabib Hany
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