segunda-feira, 28 de junho de 2021

IMPÉRIO DA MENTIRA

IMPÉRIO DA MENTIRA

Que ‘a mentira tem pernas curtas’, consagrado pela sabedoria popular, ninguém duvida. O que não dá para entender por que e como os novos inquilinos do poder de uma das mais importantes economias do planeta teimam em permanecer nesse lodaçal. É a ‘certeza da impunidade’? Fruto de uma sucessão de golpes, não é de duvidar que estejam ‘blindados’, sobretudo pelo ‘deus’ mercado...

Quem tiver competência que se estabeleça. É mais ou menos como a sabedoria popular tem nos ensinado ao longo de séculos. Isso vale para os bizarros seres envolvidos no ardil do golpe, ou melhor, dos sucessivos golpes ocorridos no Brasil a partir de abril de 2016. Feito fora de lei protegidos pelas ‘forças ocultas’ bem lembradas por Jânio da Silva Quadros em sua sugestiva carta-renúncia em 1962, véspera do dia do soldado, cometem cínica e ostensivamente à luz do dia, atentando contra o Estado Democrático de Direito, o meio ambiente, povos originários, afrodescendentes, mulheres, população LGBTQIA+, reservas petrolíferas, aquíferas e minerais - enfim, contra a soberania nacional.

Ao contrário da grande maioria da população, as elites tupiniquins, desde os primórdios, são useiras e vezeiras da impunidade. Além da desgraça pessoal de Pedro Álvares Cabral, despejado às masmorras depois de ter comandado a esquadra que amealhou o extenso território da maior e mais rica colônia lusitana, temos o emblemático episódio da prisão e condenação à forca e esquartejamento de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, enquanto os seus companheiros abastados foram condenados a penas menores, quando não ignorados (portanto, anistiados informalmente) de quaisquer punições.

Decorridos alguns séculos, em fins da década de 1990, na data em que se ‘comemora’ o ‘Dia do Índio’ desde os tempos de Getúlio Vargas (19 de abril), cinco filhos de oligarcas de Brasília, entre eles um filho de juiz federal, atearam fogo no corpo de um ‘mendigo’ que dormia no banco de um ponto de ônibus. Crime praticamente impune, os envolvidos nesse lamentável episódio em que perdeu a vida Galdino Jesus dos Santos, líder Pataxó que se encontrava em Brasília quando foi alvo do atentado bárbaro que lhe tirou a Vida depuseram que “não tinham intenção de matar”, tendo as suas penas comutadas quando não parcialmente cumpridas (os ‘fidalgos’ foram flagrados passeando em seus carros e se divertindo em vez de permanecer nas celas durante o tempo em que deveriam estar privados de liberdade).

Se isso não bastasse, há mais de três anos, os dois únicos dignitários brasileiros em quase dois séculos de vida ‘soberana’ que foram alvo de uma insidiosa operação acusatória, em que a primeira mulher, por um hipotético crime nunca provado (apelidado de ‘pedalada fiscal’), foi destituída do cargo para o qual fora reconduzida e o primeiro operário reeleito presidente e que concluiu o mandato com os mais altos índices de aprovação de todos os tempos levado às masmorras às pressas, antes de esgotados os recursos judiciais constitucionais. Acusação: atos de corrupção nunca provados. Com o claro propósito de impedi-lo de disputar as eleições, nas que um despreparado, desequilibrado e mentiroso ‘mito’ destruiu o Estado Democrático de Direito, dilapidou o patrimônio público (cultural, ambiental, mineral e financeiro), deixou que morressem por ação ou omissão mais de meio milhão de brasileiros durante a pandemia e nomeou ministro o juiz-ladrão que tirou do páreo seu principal concorrente. Todos eles, sim, permanecem impunes, pelo menos por enquanto...

Surpreendeu a todos, a propósito, a melancólica despedida do decano da mais alta corte em uma de suas derradeiras manifestações, às vésperas de se aposentar. O Ministro Marco Aurélio Mello, cujo ingresso ao Supremo Tribunal Federal foi cercado de um misto de contrariedade e desconfiança pelo fato de o então Presidente Fernando Collor de Mello, seu primo, tê-lo nomeado, sua atuação no STF contribuiu efetivamente para a consolidação do Estado Democrático de Direito, como na questão dos direitos da união de casais homoafetivos. A rigor, o fato de ser familiar de um ex-presidente destituído por corrupção deve ter pesado nessa inusitada postura. Longe de fazer juízo de valor, o conservadorismo inerente às nomeações anteriores a Fernando Henrique Cardoso (e a partir do regime de 1964) propiciou esse tipo de imprevisibilidade pendular.

Como a impunidade, a mentira é irmã siamesa da conduta recorrente destas elites cuja ascensão socioeconômica se confunde com a pilhagem e a rapinagem praticadas pelos ancestrais colonizadores, no processo conhecido na história como acumulação primitiva do capital. Aliás, é de causar perplexidade a impostura ‘ética’ (do falso moralismo, em verdade) das maiores fortunas deste país quando tentam justificar a sonegação fiscal como um gesto de ‘desobediência’: à exceção de dignos empresários contados nos dedos da mão, trata-se de uma prática recorrente de incontáveis ‘veios da havan’ et caterva, cujas fortunas são produto cínico do tráfico de influência e “otras cositas más”, e que entre os anos 2006 e 2016 tentaram atribuir as mazelas centenárias a governos petistas que se sucederam durante menos de 14 anos.

Tanto é verdade, que não há um governo no planeta livre da corrupção. Só as ditaduras negam e renegam este fato. Ela, a corrupção, é usada como bandeira política por grupos oportunistas que, quando chegam ao poder, arranjam outras bandeiras para escamotear a realidade. E, ao contrário dos cultores de falsos heróis, só o Estado Democrático de Direito assegura o verdadeiro combate à corrupção, por meio da transparência, práticas republicanas (livres de ‘meus filhinhas’ e ‘meus malvados favoritos’) e políticas públicas que acabem com privilégios de certas corporações, sejam elas fardadas ou togadas, as duas que teimam em se apossar das conquistas cidadãs que derrotaram o regime de 1964 e, a partir de 1988, escreveram novo capítulo da história da República.

Nesse sentido, aliás, faço um mea culpa. Não que eu tivesse participado de algum ‘ato de protesto’ dos golpistas que, na falta de capacidade para ganhar pelo voto soberano, recorreram ao falso moralismo mais deslavado para criar as condições para o golpe. O mea culpa a que me refiro é não ter sugerido aos muitos ‘éticos’ de última hora e, em especial, equivocados ler autores milenares que tratam do poder com a argúcia precisa que, durante o apagão intelectual dos célebres jornalistas tupiniquins, muito faltou nas vergonhosas ‘coberturas jornalísticas’.

Valho-me da memorável máxima do sempre preciso e contemporâneo (letra maiúscula, por favor) Professor Paulo Freire, de que “a vida não tem ensaio”. Assim, pelo fato de eu (bem como a maioria da população) nunca ter vivido um período tão bizarro como os que vivemos, não tenha sido possível dar uma resposta rápida a estas circunstâncias no mínimo anacrônicas. Quanto aos pensadores milenares dignos de recomendação, tomo a liberdade de deixar para uma próxima oportunidade, com base em experiência realizada com alunos há alguns anos, antes da sucessão de patacoadas que já entraram para a história contemporânea.

Acredito que seja o melhor começo para desconstruir o “pensamento único” reinante em nossos tempos, em que uma suposta ‘pós-verdade’ tenta relativizar o abismo para onde a ideologia de mercado está levando impunemente a humanidade. Questionar, duvidar e contrapor, aliás, é o melhor antídoto para as ‘verdades inquestionáveis’, sinônimo da velha e conhecida mentira, que também pode ser chamada de ‘mito’ (sic).

Ahmad Schabib Hany

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