23 ANOS DE UM
APRENDIZADO SOLITÁRIO
Não é fácil reaprendermos a lutar praticamente sozinhos
depois de termos conhecido o solidário e leal companheirismo que por quase 10
anos consolidaram nossas convicções, nossa práxis e, sobretudo, nossas Vidas. A
dialética da Vida, contudo, nos forjou na luta e, ainda que doesse a ausência,
as experiências compartilhadas nos mantiveram irredutíveis para não esmorecermos
e continuarmos a jornada infindável, sem amos nem senhores, como toda causa
justa.
Sexta-feira,
5 de junho de 1998. Aproximadamente 19
horas. Dia Mundial do Meio Ambiente, tínhamos um compromisso agendado para
aquela noite. Tratava-se de um evento promovido pelo Comitê de Corumbá e
Ladário da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida em parceria
com a então Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Turismo (SEMATUR), com o à
época major Ângelo Rabelo, na primeira gestão do prefeito Eder Brambilla.
Estávamos
prestes a celebrar o sexto ano da Agenda 21, extraordinária consequência da
Rio-92, o grande divisor de águas que mudou o conceito de desenvolvimento e a própria
compreensão de ecologia, não mais restrita aos ambientes científicos ou
acadêmicos. É óbvio que já existia o negacionismo, mas em menor grau, que via ‘conspiração’
em tudo, e não faltaram serviçais que por trinta moedas passaram a difamar os
que ousassem se engajar nessa causa legítima e lícita (diferentemente dos
delinquentes que destroem os biomas e as populações originárias a troco da
ganância e da cobiça criminosa).
Um
telefonema, uma hora antes do compromisso agendado, mudou nosso itinerário. Em razão
disso, seguimos pela Rua Cabral até as imediações do Aeroporto Internacional, na
ânsia de ‘apagar um incêndio’. É que a voz do interlocutor evidenciava
tratar-se de algo sério, grave. Quando somos voluntários, sobretudo de causas
justas (aquelas que não têm amos nem senhores que se pretendam ‘proprietários’),
as relações interpessoais, de caráter humano, são determinantes: o que
determina a longevidade de um projeto de caráter voluntário é a forma como nos
relacionamos uns com os outros, e qualquer sinal de alerta manifestado por um
integrante é fundamental para a sobrevivência do todo.
Tomados
pelo susto, por conta da angústia causada pelo tom e brevidade da fala, mais
ouvimos que dissemos. Embora quiséssemos argumentar, estávamos atônitos e
absortos, e acabamos por nos deixar levar pela própria Vida - ou destino,
talvez -,
até porque sempre lutamos por causas coletivas, e achávamos que lutar em causa
própria seria puro egoísmo. Decorridas décadas que separam aquele momento e
hoje, vemos também que, fruto da inexperiência, da imaturidade, compreendíamos
que o que para nós então fosse mera subjetividade hoje tem outro sentido, outra
dimensão.
A
grande verdade é que nunca nos pretendemos melhores nem maiores que os demais,
no entanto, certos valores que pautavam nossas prioridades determinavam uma
conduta muitas vezes incompreendida, ‘fora da casinha’, fora da ordem das
coisas então vigentes - e como lidar com a
individualidade se a realidade objetiva nos cobrava resultados e ações
coletivas imediatas, sem titubeios.
Desde
o dia em que nos propusemos realizar um evento do à época CEUC, em 1988 (a
propósito do debate dos reitoráveis da UFMS), nossa convicção de que fôssemos agentes
de transformação e que por tal razão - não sei por
quê, aliás, nunca quis me perguntar por quê a ‘razão’ tinha que se sobrepor a
tudo -,
o tom de nosso diálogo derradeiro como Companheiros, determinou um desfecho
imprevisível na continuidade da luta.
É
verdade que não foi fácil. Mais que isso: foi dolorido. Mas não sentimos
qualquer sentimento menor, de retaliação, desdém ou inveja. Porque a
consciência social nos impunha uma compreensão de sociedade liberta de ultrajes
ou mesquinharias. Além da lealdade, delicadeza, sensibilidade, percepção e
racionalidade em reiteradas oportunidades demonstradas, o Afeto (desses com
letra maiúscula) fez permanecer a conexão, base do respeito existente até a
presente data.
Era
uma situação inusitada para nós.
Mas
carregávamos uma certeza irremovível para depois desse período de inevitável
angústia, solidão, vazio, ausência e dor: a clareza de que propósitos assim,
tão fortes e infindáveis, permaneceriam fertilizando nossa trajetória (e,
imagino, de todos os outros que viveram aquele contexto). Testemunhei isso nas
vozes inocentes das novas gerações, quando do nada, disseram para nós que
sempre seríamos Companheiros; nas vozes embargadas dos experientes Amigos ao
saber que nós poderíamos estar distanciados, mas não em lados opostos; na
inesquecível confidência da querida e saudosa matriarca que desabafou e nos
cobrou atitude altiva de quem conhece o companheirismo e deve compreender o
momento do recuo, mas não se afasta dos propósitos.
Dom
José, Padre Pascoal, Padre Ernesto, Padre Emílio, Padre Osvaldo, Irmã Antônia,
Irmã Beatriz, Irmã Olga, Pastor Marcelo, Pastora Márcia, Pastor Antônio
Ribeiro, Pastor Cosmo Gomes, Pastor Juan García, Dra. Mari de García, Dr.
Lamartine, Augusto, Arturo, Aníbal, Raul, Seu Balbino, Dr. Wolmar, Edenir,
Professora Rosa, Dona Margarida, Augusto César, Seu Jorge Katurchi, Dona Anna
Thereza, Mário Márcio, Dona Eva Granha (que nos instigou com um desafio, quase
nas mesmas palavras da saudosa matriarca que não mais está entre nós), Socorro
de Maria, Aurélio Tórrez, Sonner da Silva, Dona Gabriela Soeiro, Dona Margareth
Pereira, Najeh Mustafá, Issam Said, Luiz Máximo, Antônio Carlos, Seu Pontes, Dona
Camila, Seu Rivaldo, Dr. Joilce Araújo, Malah, Amilton, Peninha, Helô, Carlinhos
Canavarros, Dona Regina, Professora Iza Cambará, Seu Miquimba, Anísio, Fausto,
Carmelino, Jânio, Ana Cláudia, Janete, Denise Diniz, Marilza Pinheiro,
Professora Maria Helena, Dona Lurdes García, Katiuska, Luz Marina, Lídia,
Cristiane, Mirane, Ivaneide, Amélia, Luiz Carlos, Delari, Herman Valle, Dona
Elígia, Dona Vera, Dona Imaculada, Dona Norma, Margareth Cabral, Antônio Vitor,
Dr. Walter Garcia, Dr. Lício Benzi, Fátima Garcia, Evanildo Tadeu, Sebastião
Martinez, Elzani Cambará, Denise Mansano, Seu Assunção Vieira, Seu Gláucio
Ganne, Armando Lacerda, Seu Zózimo, Dona Maria de Paula, Celso Cordeiro, Edson
Moraes, Luiz Taques, Renato Nogueira, Rosemeire Alencar, Angélica Bezerra e
outros Amigos não menos abnegados que contribuíram generosamente com novos
horizontes nessas jornadas...
Durante
seis meses, de junho a dezembro de 1998, entramos, coletivamente, em três frentes,
para evitar o triunfo de uma iminente desarticulação: ‘Encontros da Cidadania’,
com a inclusão de novos protagonistas; Diário
de Corumbá, com a vinda de memoráveis colaboradores, e consolidação do
Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD),
com a criação de novas plenárias setoriais, em decorrência da parceria com o
Pacto Pela Cidadania, por meio das plenárias temáticas.
Ainda
em junho, com a imprescindível parceria do saudoso e querido Aurélio Tórrez e
do Sonner Rodrigues, dirigentes do SINDEESAÚDE, realizamos no auditório do JGP
o Primeiro Encontro da Cidadania, em que a temática era o SUS e os
trabalhadores em saúde, com a vinda da querida enfermeira-padrão, Professora
Lourdes Missio (da UEMS) e o apoio da então secretária municipal de Saúde, a Pediatra
Rosemeire Fernandes Arias; em julho, com a querida e saudosa Dona Gabriela
Soeiro (fundadora e então presidente do Grupo de Apoio e Reabilitação das
Pessoas Ostomizadas, GARPO/MS), a querida enfermeira-padrão Socorro de Maria
Pinho e os Amigos do SINDEESAÚDE Aurélio e Sonner, realizamos o Segundo
Encontro da Cidadania, no JGP, com palestra da querida enfermeira-padrão, Professora
Margaret Knok Mendonça (da UFMS), cuja temática era o SUS e a assistência às
pessoas ostomizadas; em agosto, antes da campanha eleitoral, o local passou a
ser o velho auditório do CEUC (hoje Biblioteca Manoel de Barros), e o Terceiro
Encontro da Cidadania foi sobre “Corumbá e Ladário: Vida & Cidadania e
Agenda 98”, com a participação de Dom José Alves da Costa, Padre Pasquale
Forin, Sociólogo Augusto De Franco (ex-colaborador do Betinho e fundador do
Instituto Ágora), Professor Fausto Matto Grosso e Advogado Carmelino Rezende (quando
o Amigo Carmelino nos apresentou a advogada Denise Mansano); em dezembro
(precisamente quando da celebração dos 50 anos da Declaração Universal dos
Direitos Humanos), o Quarto Encontro da
Cidadania foi novamente no CEUC, mas desta vez na sala 115 do Bloco H, com
menos gente, mas com uma temática importantíssima: “Câmara Bilateral de
Cidadania e Direitos Humanos”. Contou com a participação do Dr. Carmelino, Dom
José e os saudosos Dr. Walter Mendes Garcia e Dr. Lício Benzi Paiva Garcia.
Então foram homenageados os queridos Amigos Dona Eva Granha de Carvalho e o
saudoso Senhor Carlos Urquidi, pelas relevantes contribuições para a cidadania.
Todos os Encontros da Cidadania foram gravados em VHS pelo querido Amigo Eliseu
Campos, à época proprietário de uma produtora de vídeo.
As
mobilizações decorrentes dos Encontros da Cidadania foram determinantes para o FORUMCORLAD.
Com a colaboração da Dra. Sara Francisco da Silva, da Dra. Rosemeire Fernandes
Arias e da Amiga Socorro de Maria de Pinho, que se propuseram a fazer o que
tínhamos feito com o Conselho Municipal de Assistência Social, isto é, elaborar
a minuta da nova Lei Municipal de Criação e Funcionamento do Conselho Municipal
de Saúde, nos moldes das leis do SUS (nos. 8.080/1990 e 8.172/1990).
Depois de aprovada pela Câmara Municipal, o CMS passou a funcionar segundo as
leis federais, e Denise Mansano foi eleita primeira presidente representante do
segmento dos Usuários do SUS. Mas isso só foi possível porque tivemos que conversar,
pessoalmente, com o Ministério Público, a Dra. Rosemeire Arias e os assessores
do Dr. Isaías Pereira da Costa (secretário de Estado de Saúde) - Maria Helena
Faria, Rivaldo Venâncio e Margaret Knok Mendonça -, além da
querida Estela Márcia Rondina Scandola, presentes à Assembleia-geral de Eleição
dos Segmentos do SUS em março de 1999. Conseguimos segurar essa conquista
emblemática até julho de 2012, quando um grupo de não governamentais cooptados
por assessores de Puccinelli e Marun com aliados na administração municipal
conseguiu diluir a efetivação do controle social pelo FORUMCORLAD em Corumbá e
Ladário, em prejuízo dos usuários.
Embora
estivéssemos impactados com a eternização do querido e saudoso Márcio Nunes
Pereira, novos colaboradores passaram a atuar no Diário de Corumbá, com aval de Dona Margareth. O jornal soube
resistir à altura por anos a fio, sobretudo pela incansável atuação dos queridos
e saudosos Luiz Máximo e Antônio Carlos, na gráfica, e Issam Said, no comercial,
além da generosa colaboração do saudoso Dr. Joilce Araújo no jurídico, até a
Família Pereira decidir suspender as edições do combativo diário, cuja consigna
é “Um Jornal se mede pelas verdades que diz”.
Há,
sim, que se registrar, com afeto, gratidão e penhor, o nome da querida
Amiga-Irmã Mara Leslie do Amaral em toda essa inovadora e inesgotável construção,
cuja discreta participação foi determinante por sua cordura, lealdade e
dedicação incondicional. Sua percepção primorosa permitiu indiscutivelmente a
perenidade desta construção coletiva que soube amalgamar diferentes pontos de
vista dentro de um sólido propósito, que é o bem comum. Uma verdadeira epopeia
cidadã, em que o coletivo, ao invés do individual, foi a razão de ser dessa
experiência ímpar e pioneira.
Não
há dúvida de que nestes tempos sombrios são imprescindíveis o fortalecimento do
protagonismo cidadão, a reafirmação de espaços públicos não estatais legitimados
pela autonomia (sem qualquer ingerência dos órgãos estatais, como hoje ocorre
em todas as esferas administrativas) e a livre atuação da mídia combativa na efetiva
fiscalização da gestão pública em todos os níveis. Nesse sentido, as
atividades, que estão por completar quatro décadas sem qualquer ingerência
estatal ou paraestatal, e que traz o efetivo aporte de cada um dos anônimos e
generosos cidadãos que deram a sua contribuição sincera em toda essa caminhada
que permanece latente, vívida e, para desespero dos tiranetes de plantão, no
momento certo voltarão à cena com urbanidade, gentileza e cordialidade.
Porque,
como diz o sábio adágio popular hispânico, “lo educado no quita lo valiente”. E
enquanto as hienas sorrateiras escancaram sua fétida dentição, a caravana
popular faz história, com amor e cordura...
Ahmad Schabib Hany
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