O enterro sem fim da Editora Abril e o fim da era dos editores
Inaugurada em 1968, a antiga sede da Editora Abril na Marginal Tietê, em São Paulo, foi arrematada em leilão por R$ 118,78 milhões
Imagem: Gabriel Cabral/Folhapress
Brenda Fucuta
Colunista de Universa
22/05/2021 04h00
Erramos: este conteúdo foi alterado
Leilão Prédio Antigo Editora Abril, Oportunidade
Única!
O anúncio do leilão, no site Imóveis com Desconto,
foi tão sem graça que quase me fez chorar. Palavras jogadas sem cuidado, cores
monótonas, texto de varejo. Para quem passou a vida criando ou lendo as tão bem
trabalhadas páginas das revistas da editora, a peça publicitária que anuncia a
venda do prédio não deve ser vista como um detalhe, mas como uma metáfora do
seu fim, pobre e melancólico.
A Abril está morrendo há pelo menos três anos. Seu
fim vem sendo marcado por tristezas, como essas do leilão, que não param de nos
assombrar. A empresa vendeu seus ativos, demitiu seus funcionários, fechou
revistas e sites. No começo deste ano, encerrou o que era considerado o maior e
mais sofisticado parque gráfico da América Latina -- que ocupava o prédio
antigo da Editora Abril, na Marginal Tietê, este mesmo, que foi à leilão e
arrematado nesta sexta (21), por
R$ 118,78 milhões.
A morte da Abril não afeta apenas pessoas que, como
eu, trabalharam lá. Tenho certeza de que você também, em algum momento da sua
vida, foi orientado por alguma revista da empresa. Talvez tenha tomado decisões
políticas e econômicas com "Veja" e "Exame", tenha decidido
quando dar seu primeiro beijo com a "Capricho", qual faculdade cursar
com o "Guia do Estudante", qual carro comprar, com a "Quatro
Rodas", como decorar sua casa com a "Casa Claudia", como
equilibrar carreira com família com a "Claudia" e como se empoderar
no sexo, com "NOVA". A lista é infindável.
A Abril tinha revista para cada grupo de
brasileiro, para cada necessidade. Em algum momento, foi dona do maior site
feminino do país, o MdeMulher, e o maior site de conteúdo adolescente do mundo,
a Capricho.
Tenho certeza que ser revisteiro, como nos definíamos, era a melhor profissão
do mundo. Não a mais fácil, nunca foi. A exigência pelo ensaio de moda perfeito
fez muito produtor chorar. Assim como a busca pela foto perfeita, pelo design
perfeito, pelo título perfeito e pela capa perfeita: tudo isso enlouqueceu
Redações.
Com o passar do tempo, o evento perfeito também
viria enlouquecer nossas equipes de marketing. O ofício de separar o joio do
trigo, como se dizia no século passado, era levado a sério. Nada mais exaustivo
do que experimentar as madrugadas no frio do sétimo andar do prédio antigo da
Abril, onde ficava a Redação da "Veja", esperando que os diretores
ajeitassem nosso pobre texto de repórter, os revisores revisassem o texto, os
checadores checassem as informações.
A busca pelo melhor para o leitor nos iluminou por muito
tempo. Para cativá-lo, queríamos antecipar movimentos sociais, antecipar
desejos: disso se tratava captar a tendência, em todas as áreas, tanto na
divulgação científica, como faz a "Superinteressante", quanto no
universo da moda, como fazia a "Elle". Uma revista bem feita deixava
seu leitor mais sabido, encantado. De tempos em tempos, fazíamos animadas
reuniões com leitoras, principalmente nas Redações femininas. Nós, editoras,
nos considerávamos suas melhores amigas. E, sem exagero, no momento em que uma
leitora abria a revista, nós realmente cumpríamos aquele papel.
Na prática, ser revisteiro também era ganhar
dinheiro com a publicidade. Revista era um ambiente perfeito para a construção
de uma marca, dizíamos. Transmita sua mensagem aqui nas nossas páginas e você
estará falando com o público certo, na hora certa (aquela hora sagrada em que o
leitor abria e se entregava à revista).
O dinheiro da assinatura pagava os custos de
produção. A publicidade era o dinheiro que entrava na veia. E foi por isso que
a Abril morreu tão rapidamente, de forma tão vertiginosa, logo depois de
comemorar uma sequência de anos espetaculares de faturamento, graças aos
esforços de publicitários, publishers e profissionais de marketing.
Apenas sete anos antes de demitir milhares de funcionários e
enviá-los para casa sem os direitos trabalhistas garantidos, a empresa
comemorava o período mais lucrativo de sua história, com festas exuberantes
para o mercado publicitário, distribuição de participação nos lucros para os
empregados e bônus para os executivos. A Abril tinha dinheiro e tinha que
mostrar que tinha.
Não se podia demonstrar fraqueza em um mercado
publicitário que aguardava a decadência das velhas irmãs (Abril e Globo) e o
coroamento das novas irmãs (Google e Facebook).
Naquela época, o grupo parecia tão rico que outros
conglomerados de mídia, dos Estados Unidos e da Europa, olhavam para o Brasil,
espantados. Como a crise da mídia impressa, que estava sendo atropelada sem dó
pelo mercado digital, não tinha nos alcançado?
A verdade é que tinha. A crise se infiltrava como mofo, insidiosa,
nas glamorosas vidraças do prédio que chamávamos de NEA (Novo Edifício Abril),
na Marginal Pinheiros. (A Abril ocupava dois prédios, ambos em São Paulo, na
zona oeste. Um deles, o antigo, ficava na Marginal Tietê. O mais novo, na
Marginal Pinheiros.)
Enfim, em 2018, a família que herdou o grupo Abril
do publisher dos publishers, Roberto Civita, decidiu vendê-lo por um preço simbólico, tamanha era a dívida da empresa,
de quase 1,7 bilhão de reais. De repente, milhares de pessoas especializadas em
fazer lindas páginas, em encontrar e entrevistar os melhores profissionais das
várias áreas, foram dispensadas. Muitas se tornaram profissionais não
essenciais nos novos mercados produzidos pela revolução da informação. Outras,
se reinventaram. Tenho certeza de que, em ambos os casos, nos sentimos órfãos.
Revistas ainda existem, inclusive algumas que
continuam com o selo Abril. No Instagram, até ensaios de moda são publicados.
Notícias, claro, existem como nunca. Continuam a existir Redações e bons
editores, especialmente em portais de conteúdo como o UOL, que hospeda esta coluna. Mas o
formato revista não sobreviveu.
Aquele objeto colorido, com lombada quadrada, papel
encorpado, com fotos deslumbrantes, com textos caprichosamente apurados e
distribuídos com capricho por um designer gráfico, que chegava a sua casa ou à
banca de jornal toda semana ou todo mês: esse vai se transformar em memória.
O que acontece quando se perde algo tão importante
na vida? Mais do que um emprego, ser parte da Abril era ter um lugar dentro de
uma usina criativa exuberante. Rica de ideias, de conhecimento, de beleza, de
profundidade.
Nossa, que luto dolorido. Em qualquer ritual de
despedida na morte de alguém, é costume levar palavras de consolo para os que
ficaram. A Abril se foi.
Aqui, estão minhas palavras para nós, que ficamos.
Para quem se interessar por mais informações sobre
a história da Editora Abril, indico os seguintes livros:
·
Notícias
do Planalto, de Mario Sergio Conti (Companhia das
Letras)
·
A
República dos Editores,
de Adriano Silva (Rocco)
·
Roberto
Civita: o Dono da Banca,
de Carlos Maranhão (Companhia das Letras)
Errata:
o texto foi atualizado
A foto que ilustrava este texto e replicada na Home
do UOL não era a da sede da Editora Abril que foi à leilão e que fica na
Marginal Tietê, em São Paulo, mas a do NEA (Novo Edifício Abril), em Pinheiros
** Este texto não reflete,
necessariamente, a opinião do UOL.
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