quinta-feira, 24 de junho de 2021

O enterro sem fim da Editora Abril e o fim da era dos editores (Brenda Fucuta)

O enterro sem fim da Editora Abril e o fim da era dos editores


Inaugurada em 1968, a antiga sede da Editora Abril na Marginal Tietê, em São Paulo, foi arrematada em leilão por R$ 118,78 milhões

Imagem: Gabriel Cabral/Folhapress



Brenda Fucuta

Colunista de Universa

22/05/2021 04h00

 Erramos: este conteúdo foi alterado


Leilão Prédio Antigo Editora Abril, Oportunidade Única!

O anúncio do leilão, no site Imóveis com Desconto, foi tão sem graça que quase me fez chorar. Palavras jogadas sem cuidado, cores monótonas, texto de varejo. Para quem passou a vida criando ou lendo as tão bem trabalhadas páginas das revistas da editora, a peça publicitária que anuncia a venda do prédio não deve ser vista como um detalhe, mas como uma metáfora do seu fim, pobre e melancólico.

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A Abril está morrendo há pelo menos três anos. Seu fim vem sendo marcado por tristezas, como essas do leilão, que não param de nos assombrar. A empresa vendeu seus ativos, demitiu seus funcionários, fechou revistas e sites. No começo deste ano, encerrou o que era considerado o maior e mais sofisticado parque gráfico da América Latina -- que ocupava o prédio antigo da Editora Abril, na Marginal Tietê, este mesmo, que foi à leilão e arrematado nesta sexta (21), por
R$ 118,78 milhões.

A morte da Abril não afeta apenas pessoas que, como eu, trabalharam lá. Tenho certeza de que você também, em algum momento da sua vida, foi orientado por alguma revista da empresa. Talvez tenha tomado decisões políticas e econômicas com "Veja" e "Exame", tenha decidido quando dar seu primeiro beijo com a "Capricho", qual faculdade cursar com o "Guia do Estudante", qual carro comprar, com a "Quatro Rodas", como decorar sua casa com a "Casa Claudia", como equilibrar carreira com família com a "Claudia" e como se empoderar no sexo, com "NOVA". A lista é infindável.

A Abril tinha revista para cada grupo de brasileiro, para cada necessidade. Em algum momento, foi dona do maior site feminino do país, o MdeMulher, e o maior site de conteúdo adolescente do mundo, a Capricho.

Tenho certeza que ser revisteiro, como nos definíamos, era a melhor profissão do mundo. Não a mais fácil, nunca foi. A exigência pelo ensaio de moda perfeito fez muito produtor chorar. Assim como a busca pela foto perfeita, pelo design perfeito, pelo título perfeito e pela capa perfeita: tudo isso enlouqueceu Redações.

Com o passar do tempo, o evento perfeito também viria enlouquecer nossas equipes de marketing. O ofício de separar o joio do trigo, como se dizia no século passado, era levado a sério. Nada mais exaustivo do que experimentar as madrugadas no frio do sétimo andar do prédio antigo da Abril, onde ficava a Redação da "Veja", esperando que os diretores ajeitassem nosso pobre texto de repórter, os revisores revisassem o texto, os checadores checassem as informações.

A busca pelo melhor para o leitor nos iluminou por muito tempo. Para cativá-lo, queríamos antecipar movimentos sociais, antecipar desejos: disso se tratava captar a tendência, em todas as áreas, tanto na divulgação científica, como faz a "Superinteressante", quanto no universo da moda, como fazia a "Elle". Uma revista bem feita deixava seu leitor mais sabido, encantado. De tempos em tempos, fazíamos animadas reuniões com leitoras, principalmente nas Redações femininas. Nós, editoras, nos considerávamos suas melhores amigas. E, sem exagero, no momento em que uma leitora abria a revista, nós realmente cumpríamos aquele papel.

Na prática, ser revisteiro também era ganhar dinheiro com a publicidade. Revista era um ambiente perfeito para a construção de uma marca, dizíamos. Transmita sua mensagem aqui nas nossas páginas e você estará falando com o público certo, na hora certa (aquela hora sagrada em que o leitor abria e se entregava à revista).

O dinheiro da assinatura pagava os custos de produção. A publicidade era o dinheiro que entrava na veia. E foi por isso que a Abril morreu tão rapidamente, de forma tão vertiginosa, logo depois de comemorar uma sequência de anos espetaculares de faturamento, graças aos esforços de publicitários, publishers e profissionais de marketing.

Apenas sete anos antes de demitir milhares de funcionários e enviá-los para casa sem os direitos trabalhistas garantidos, a empresa comemorava o período mais lucrativo de sua história, com festas exuberantes para o mercado publicitário, distribuição de participação nos lucros para os empregados e bônus para os executivos. A Abril tinha dinheiro e tinha que mostrar que tinha.

Não se podia demonstrar fraqueza em um mercado publicitário que aguardava a decadência das velhas irmãs (Abril e Globo) e o coroamento das novas irmãs (Google e Facebook).

Naquela época, o grupo parecia tão rico que outros conglomerados de mídia, dos Estados Unidos e da Europa, olhavam para o Brasil, espantados. Como a crise da mídia impressa, que estava sendo atropelada sem dó pelo mercado digital, não tinha nos alcançado?

A verdade é que tinha. A crise se infiltrava como mofo, insidiosa, nas glamorosas vidraças do prédio que chamávamos de NEA (Novo Edifício Abril), na Marginal Pinheiros. (A Abril ocupava dois prédios, ambos em São Paulo, na zona oeste. Um deles, o antigo, ficava na Marginal Tietê. O mais novo, na Marginal Pinheiros.)

Enfim, em 2018, a família que herdou o grupo Abril do publisher dos publishers, Roberto Civita, decidiu vendê-lo por um preço simbólico, tamanha era a dívida da empresa, de quase 1,7 bilhão de reais. De repente, milhares de pessoas especializadas em fazer lindas páginas, em encontrar e entrevistar os melhores profissionais das várias áreas, foram dispensadas. Muitas se tornaram profissionais não essenciais nos novos mercados produzidos pela revolução da informação. Outras, se reinventaram. Tenho certeza de que, em ambos os casos, nos sentimos órfãos.

Revistas ainda existem, inclusive algumas que continuam com o selo Abril. No Instagram, até ensaios de moda são publicados.

Notícias, claro, existem como nunca. Continuam a existir Redações e bons editores, especialmente em portais de conteúdo como o UOL, que hospeda esta coluna. Mas o formato revista não sobreviveu.

Aquele objeto colorido, com lombada quadrada, papel encorpado, com fotos deslumbrantes, com textos caprichosamente apurados e distribuídos com capricho por um designer gráfico, que chegava a sua casa ou à banca de jornal toda semana ou todo mês: esse vai se transformar em memória.

O que acontece quando se perde algo tão importante na vida? Mais do que um emprego, ser parte da Abril era ter um lugar dentro de uma usina criativa exuberante. Rica de ideias, de conhecimento, de beleza, de profundidade.

Nossa, que luto dolorido. Em qualquer ritual de despedida na morte de alguém, é costume levar palavras de consolo para os que ficaram. A Abril se foi.

Aqui, estão minhas palavras para nós, que ficamos.

Para quem se interessar por mais informações sobre a história da Editora Abril, indico os seguintes livros:

·                     Notícias do Planalto, de Mario Sergio Conti (Companhia das Letras)

·                     A República dos Editores, de Adriano Silva (Rocco)

·                     Roberto Civita: o Dono da Banca, de Carlos Maranhão (Companhia das Letras)

 Errata: o texto foi atualizado

A foto que ilustrava este texto e replicada na Home do UOL não era a da sede da Editora Abril que foi à leilão e que fica na Marginal Tietê, em São Paulo, mas a do NEA (Novo Edifício Abril), em Pinheiros

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

(Artigo disponível pelo link <https://www.uol.com.br/universa/colunas/brenda-fucuta/2021/05/22/o-enterro-sem-fim-da-editora-abril-e-o-fim-da-era-dos-editores.htm>.)

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