sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

PIOR QUE A PANDEMIA

Pior que a pandemia

A humanidade que se cuide: historiador alerta sobre migração da ‘teologia da prosperidade’ para a ‘teologia da dominação’ pelo ‘sionismo cristão’. É o abandono do legado cristão e imersão total à apologia de Davi como inspirador com base no Velho Testamento.

Eduardo Moreira, com sua brilhante equipe de Jornalistas reconhecidamente experientes, trouxe à baila uma questão que nos últimos anos parecia não ‘fechar’: neopentecostais brasileiros se tornaram ‘sionistas cristãos’, e abandonaram o cristianismo. Como assim?

Na última semana de fevereiro, o Instituto Conhecimento Liberta, em debate memorável, apresentou um discreto historiador, João Cézar de Castro Rocha, que elucidou de forma lúcida e didática a transição dos neopentecostais brasileiros da ‘teologia da prosperidade’ para a ‘teologia da dominação’. Ocorreu nos últimos 15 anos, quando Jesus Cristo deixa de ser o Salvador e de forma explícita Davi, como majestade judaica, se torna referência dessas comunidades que nasceram como cristãs mas que, inexplicavelmente, migraram para o judaísmo em sua forma mais incisiva, “com a espada, em vez do perdão”.

Lembro-me como hoje que abaixo da logomarca de pelo menos duas dessas denominações, com todo o marketing mais elaborado, traziam a declaração de serem ‘Igreja de Cristo’, e nas últimas décadas, sob pretexto de estilizar sua logomarca, simplesmente aboliram a consigna. É que simplesmente abandonaram o cristianismo para enveredar pelo assaz legado de Davi, rei dos judeus, aquele que enviou o general Urias à frente de guerra e ao sucumbir fez de sua viúva concubina sua.

Jesus Cristo tem insofismável legado reconciliador e de concórdia, além da fé libertadora que enseja. Davi tem um legado de agressividade, além da palavra, mas da espada. Como, dizendo-se cristãos, podem adotar a Lei de Talião (do ‘olho por olho, dente por dente’), que Jesus rejeitou ao preconizar o perdão, a clemência, reconciliação?

Lembram-se da ‘teologia da prosperidade’? O neopentecostalismo se disseminou em todo o mundo prometendo prosperidade, desde os anos 1960, tempo do Exército da Salvação e da Aliança para o Progresso, auge da guerra fria. Essas mesmas denominações, que tiveram um boom nas três últimas décadas -- que coincide com o efeito das políticas de reparação e distribuição de renda promovidas pelo governo federal a partir da promulgação da Constituição Cidadã --, depois de conquistar seus fiéis com promessas de prosperidade, agora se transformam em seitas de dominação, de submissão, em que as comunidades religiosas passam a viver em um mundo paralelo, ao gosto e sabor dos líderes.

Trata-se de meticuloso estratagema made in USA que desde a década de 1930, portanto quase centenário, articula o sionismo e outras ideologias extremistas. Se nos atentarmos para a ascensão do nazismo e as demais ideologias ultradireitistas, como o fascismo, salazarismo e franquismo, ocorre no mesmo período, valendo-se da tradição religiosa, fundamentada na cosmovisão ‘judaico-cristã’, quando elas, pelo menos do ponto de vista judeu ortodoxo, são incompatíveis, eis que os judeus veem como Jesus a negação de seus cânones ao contrapor a Lei e a condição de ‘povo eleito’ e leva sua mensagem ao ‘gentio’, além do perdão para a reconciliação.

Não cito as denominações para não melindrar seus fiéis, até por ter muitos/as Amigos/as nessas comunidades religiosas, alguns com prerrogativas de liderança. Para esclarecer o/a paciente leitor/a: não se trata de melindre ou medo. Aliás, há pouco mais de dois anos, em debate, desmascarei um dos gurus regionais, o que não me envaidece, pelo contrário, me entristece. Foi nessa ocasião que me inteirei de que uma parte considerável desses ‘gurus’ foi formada dentro de cadeias.

Sem preconceito, mas formação de sacerdotes, independentemente da denominação ou da origem, precisa ser realizada em seminários, pela gama de fundamentos teológicos, filosóficos e metodológicos a ser estudada. A fragilidade na fundamentação teórica leva o sacerdote a limitações na interpretação (nos termos religiosos, exegese e hermenêutica, absorvidos pelas ciências humanas ao longo do tempo e que exigem muita dedicação nos estudos), aliás, recorrente nestes tempos de fanatismo e intolerância.

A fé é libertadora; jamais opressora, dominadora, como temos visto nas últimas décadas, sem explicação plausível. É extremamente arriscado para o convívio salutar, para a sobrevivência da própria humanidade. Humildes fiéis a se transformar em tonton macouts, ‘teleguiados’, verdadeiros milicianos, praticamente terroristas: sentem-se ‘soldados’, ou ‘cruzados’, para lembrar um termo medieval. Pessoas pacatas transformadas em lobos, predadores, pela ‘causa’ -- qual causa, afinal, eles sequer sabem qual é a tal ‘causa’?

A estratégia maniqueísta -- do ‘bem’ contra o ‘mal’ -- é perigosamente pegajosa, fácil de ser incutida, por ser simplista e de fácil manipulação. Cooptar pessoas de boa-fé, gente inocente, destituída de qualquer maldade, sempre em nome da ‘fé’ (na verdade doutrina distorcida da cristã), da ‘tradição’ (confundem-se costumes com valores importados, de outras culturas, quando não forjados em experiências tirânicas), da ‘família’ (o que não se faz da abstração da unidade familiar, ao extremo de dividir famílias inteiras com mensagens de ódio e segregação), da ‘pátria’ (abstrai-se o sentido de pátria e nisso coloca-se ao lado da bandeira do Brasil a de Israel, como se esta fosse uma pátria celestial, divina e acima de todas as outras).

O 8 de janeiro de 2023 serviu de alerta para as instituições democráticas. Quando pessoas comuns se transformam em seres irreconhecíveis até para suas próprias famílias. Depois de seiscentos anos, de um lento processo de evolução social em que valores foram sendo erigidos à luz da razão, vemo-nos às voltas de teocracias que atentam contra o legado humanista e civilizatório, duramente construído a partir do Renascimento.

Isso não é casual. Há causas por trás. E, pior, há quem esteja saindo no lucro com todas essas experiências: basta vermos potências em franca decadência, que recorrem a todos os expedientes sórdidos para assegurar a sobrevida de sua hegemonia. Na esteira, aqueles que ao longo desse período estavam compartilhando as benesses do poder. Essa, aliás, é a base desse aparentemente inexplicável fundamentalismo: recorrendo a uma fé cega -- como dizia o poeta nos idos de 1970, “fé cega, faca amolada” --, há toda uma estrutura de poder invisível em expansão e consolidação, e, quanto mais tempo passar, maiores as fissuras do tecido social, já bastante esgarçado.

Uma sociedade, sobretudo do ponto de vista da renda, profundamente injusta, em que a concentração de renda, do acesso aos bens e serviços públicos, é restritiva, excludente. Não se trata do País apenas. É na verdade a sociedade contemporânea, capitalista, que está em franco processo falimentar há mais de 100 anos. Querem uma prova? A Revolução de 1930, do Brasil, escancarou essa dicotomia: uma oligarquia com vida nababesca e uma imensa maioria relegada à miséria, analfabetismo, exclusão social e fome. Mas antes, bem antes, diversos setores nacionais já se rebelavam contra isso, ainda no século XIX, antes da ‘abolição da escravatura’ (entre aspas, porque, em pleno século XXI, a fiscalização do Ministério Público do Trabalho ainda flagra centenas de pessoas vítimas de trabalho igual ao regime de escravidão).

Ou por que Getúlio Vargas, João Goulart e, de modo mais ‘sutil’, Lula e Dilma são odiados pelos ‘novos ricos’? Muitos enriquecidos mediante atividades ilícitas, criminosas, como as atividades de garimpo e mineração ilegal; grilagem de terras indígenas e de reservas da biodiversidade; ‘madeireiros’, ‘pescadores’ etc; sonegadores de tributos, contrabandistas e traficantes de todo tipo: entorpecentes, fauna e flora nativa, genes representativos de nossos biomas, metais preciosos ou não metais cobiçados pela indústria de alta tecnologia, códigos genéticos humanos e de outras espécies etc.

É perceptível que a ‘fórmula mágica’ do inominável, a título de exemplo, foi aglutinar, ao mesmo tempo, mercadores da fé (líderes ‘fundamentalistas’ neopentecostais), líderes de milícias e outras organizações criminosas (inclusive de dentro das cadeias e dos distantes territórios indígenas invadidos para saquear madeira, ouro, cassiterita, pedras preciosas, animais de espécies nativas, tráfico humano para retirada de órgãos, trabalho escravo e prostituição etc), empresários e militares recalcados (‘saudosistas’ da ditadura, hoje bem evidentes), ‘pessoas de bem’ (leiam-se ‘donas-de-casa’ de famílias oligárquicas, entre outras, indignadas com a Lei das Empregadas Domésticas e diversos direitos sociais conquistados durante os governos de Lula e Dilma); misóginos e homofóbicos (e as demais variantes, contra transexuais, lésbicas etc), racistas de todos os matizes, e as ‘maria-vai-com-as-outras’, muito comuns pela idiossincrasia brasileira (ficou patente que há mais homens que mulheres nessa categoria).

Desde que o Presidente Lula tomou posse, em janeiro de 2023, temos visto crescer a olho nu o extremismo, sobretudo neopentecostal. O historiador João Cézar, aliás, muito arguto e fundamentado, deu o alerta oportuno e tempestivo. Cabe a religiosos das denominações cristãs evangélicas e católica, bem como das comunidades espíritas, de matriz africano e indígena, a iniciativa reconciliadora, em sintonia com o legado verdadeiramente cristão, de pacificação e fraternidade, para o reencontro do País com a sua fé diversa e libertadora à luz da solidariedade e da ética universal, em concórdia e comunhão.

Tarefa que deve ser compartilhada por todas as cidadãs e todos os cidadãos conscientes de seu papel de membros do Estado Democrático de Direito que precisa preservar todas as conquistas duramente efetivadas para as gerações que vierem depois de nós. É urgente e inadiável. Cada qual fazendo, anonimamente, a sua parte, o Brasil estará dando, mais uma vez, exemplo para a humanidade. Depende, apenas, de nossa iniciativa.

Ahmad Schabib Hany

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