Até
sempre, Professor Paulo Cabral!
Sociólogo, o Professor Paulo
Eduardo Cabral foi, para os alunos de Humanas na extinta FUCMT, uma referência
fraternal. A discrição e generosidade com que se relacionava com as diferentes
gerações de docentes e discentes ao final do regime de 1964 incentivou muitos
jovens aos estudos e, sobretudo, à pesquisa.
Terça-feira, 27 de fevereiro de 2024. Por meio de
mensagem de uma de minhas Irmãs fui impactado pela notícia da súbita
eternização de um docente emblemático, entre os tantos que a Vida generosamente
nos brindou. O querido e inesquecível Professor Paulo Eduardo Cabral, então
jovem Sociólogo (desses com letra maiúscula), substituíra o lendário Padre
Félix Zavattaro na disciplina de Sociologia Geral da licenciatura em História
da FUCMT no emblemático ano de 1979, primeiro ano da existência oficial de Mato
Grosso do Sul.
Na aula de apresentação, Paulo Cabral, de barba
cerrada e bolsa a tiracolo, fora bastante comedido, e se ativera à ementa da
disciplina. Entretanto, nas discussões que ele mesmo provocava em sala e,
sobretudo, nos trabalhos solicitados ao longo do ano, sinalizara algo não muito
comum em tempos de autoritarismo e arapongagem: ao estimular o estudo a fundo
de sua disciplina, e por extensão da História numa perspectiva das relações
sociais, nos permitia apropriar-nos de um instrumental metodológico até então
censurado.
Embora discreto, nunca censurou ou monitorou as
nossas ‘irreverências estudantis’, pois queríamos ‘ir além’ do ‘feijão-com-arroz’.
Esclarecia dúvidas, ajudava a compreender melhor algum texto mais denso, mas
recomendava que fosse feito em grupos de estudo, de preferência fora da
instituição (óbvio, porque estávamos cheios de arapongas na sala de aula).
Certa vez levei um genial livreto da Editora Avante, de Portugal, com um texto
de Amílcar Cabral sobre educação e colonização. Por prudência, pediu-me ‘emprestado’
o livreto. Deu-me o telefone de sua casa e me convidou a visitá-lo no final de
semana. Lá, afetuosamente, me explicou por que me tirara o livreto. Recebeu-me
tão bem, que voltei inúmeras vezes à casa em que então morava, na Coophafé,
Vila Santa Fé.
Na época, o primeiro ano era básico e os alunos de
História faziam as mesmas disciplinas com os colegas de Pedagogia, Letras e
Geografia. As novas gerações não fazem ideia, mas ainda vigiam os nefastos
decretos 228 e 477, espécie de AI-5 do ensino universitário, e nas licenciaturas
era expressamente proibido estudar (e, portanto, citar) Paulo Freire, Anísio
Teixeira, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré,
Edgar Carone, Florestan Fernandes, Theotônio dos Santos, Fernando Henrique
Cardoso, José Carlos Mariátegui, Pablo González Casanova, Enzo Faletto, Jean
Piaget, Emile Durkheim, Max Weber, Georg Hegel, Rosa Luxemburg, Herbert
Marcuse, Georg Lukáks, Erich Fromm, Antonio Gramsci, Jean-Paul Sartre, Simone
de Beauvoir, Friedrich Engels e, obviamente, Karl Marx, entre outros não menos
importantes.
No sisudo curso de História da FADAFI/FUCMT,
tínhamos quatro docentes que à época considerávamos ‘dos nossos’, por conta de
nossa inconformidade juvenil: além do Cabral (ele permitia ser chamado pelo
nome), Frei Fiorello Collet (de quem não tive mais notícias, titular da
disciplina de Métodos e Técnicas de Pesquisa, em cuja primeira aula, antes de
se apresentar, entrou recitando o poema de Carlos Drummond de Andrade “E agora,
José?” e nos incentivou a desenvolver, na prática, as diferentes linhas de
pesquisa, bibliográficas e de campo, tendo me incentivado a fazer uma enquete
sobre o exame final obrigatório na instituição, quase uma ‘heresia’), a
Professora Yara Blum Penteado (muito didática e generosa, uma verdadeira Mãe na
formação universitária, titular da disciplina de Antropologia Cultural, outra
incentivadora nos estudos, sobretudo dos clássicos, tanto que no trabalho final
de seu curso me permiti desenvolver um trabalho dentro daquilo que então era
uma verdadeira irreverência, os autores marxistas de referência, sem citá-los)
e o Professor Giuseppe Buttera (titular de Filosofia, com forte sotaque
italiano, que depois de ter deixado a Congregação Salesiana decidiu estudar
Medicina na UFMS e cheguei a encontrá-lo na modesta pensão de meu Pai como
mochileiro com a sua Companheira, rumo a Machu Picchu, durante as férias, no
início da década de 1980).
Como técnico da então Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social, o Sociólogo Paulo Eduardo Cabral foi um dos
organizadores, em fins de abril de 1980, do Primeiro Seminário
Sul-mato-grossense de Estudos Indigenistas (que fazia um alerta na consigna em
gradiente EXTERMÍNDIO), de que participaram os líderes indígenas Mário Juruna,
Domingos Veríssimo Marcos e Marçal de Souza (três anos depois vítima de
execução já anunciada por ele em razão da cobiça de terras indígenas, crime
impune que completou 40 anos sem que o mandante tivesse sido ao menos
formalmente acusado), além de antropólogos da estatura de Darcy Ribeiro e Fernando
Altenfelder, que generosamente interagiam com estudantes presentes ao evento
durante os cinco dias de debates e denúncias dos povos originários.
Nessa época eram poucos os professores que ‘ousavam’
assistir às exibições do Cineclube Universitário, uma das geniais iniciativas
do Diretório Acadêmico Félix Zavattaro (DAFEZ) na brilhante gestão da “Semente”,
com os hoje Professores Amarílio Ferreira Jr., Marisa Bittar, Paulo Roberto
Cimó Queiroz, Paulo Marcos Esselim, Mário César Ferreira, José Carlos Ziliani e
Tito Carlos Machado de Oliveira, em parceria com o DAJS (Diretório Acadêmico
José Scampini, do Serviço Social, cuja presidente então era a querida e saudosa
Mariluce Bittar, Irmã da Marisa e minhas vizinhas na Cândido Mariano, o que me
honrava muito, pois eram duas lindas referências intelectuais e de ascendência
libanesa). O agora saudoso Cabral e o Professor Luiz Salvador de Sá, do curso
de Psicologia, participaram dos debates realizados após a exibição dos filmes,
em sua maioria do Cinema Novo.
Não tenho dúvida que a qualidade da graduação que
então fizemos deveu-se muito a esses Professores com letra maiúscula (que não
se limitam aos citados, pois havia entre os ‘não progressistas’ a dedicação ao ‘ofício’,
como eram formados os docentes. Os tempos eram de repressão, muitos dos que
aparentavam conservadorismo depois se revelaram bastante abertos, tanto que a ‘Semana
de História’, iniciada na gestão Semente e continuada por nossa geração sem o
apoio da entidade acadêmica (porque os ‘comunistas’ perdemos a disputa pela
sucessão no DAFEZ em razão do desgaste natural de duas gestões seguidas e,
também, de uma inusitada aliança de Companheiros de esquerda filiados ao PT,
que nascia então, e alunos seminaristas ligados à Missão Salesiana, mantenedora
da FUCMT).
Em 1987, encontrei num final de tarde o Professor
Paulo Cabral saindo de um cartório da rua Delamare, em Corumbá, ocasião em que,
assessor técnico do saudoso Doutor Roberto Orro na Secretaria de Estado de
Justiça, participava de uma pesquisa para a construção da rede notarial que
décadas depois, com a criação da internet, hoje está toda interligada. Até
nisso o Cabral tem sua contribuição discreta e competente. Meses mais tarde,
quando da fundação do Comitê 29 de Novembro de Solidariedade ao Povo Palestino,
no auditório do CEUC/UFMS, era para ele ter vindo numa comitiva de Campo
Grande, em que a saudosa Amiga-Irmã Margarida Marques e sua colega e Amiga
Maria Helena Brancher (autora da foto emblemática de Marçal de Souza),
acompanhadas da Professora Yone Ribeiro Orro tiveram participação ativa, mas
problemas de saúde em sua Família acabaram impedindo.
Fomos nos encontrar na Segunda Semana Social
Brasileira, em Brasília, em julho de 1994, quando dividimos o mesmo alojamento
coletivo para parte da comitiva de Mato Grosso do Sul no convento das freiras
franciscanas estigmatinas, por sinal bastante acolhedoras e simpáticas. Na
época ele era o ponto-focal da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e
pela Vida e, alternando compromissos entre o Encontro Nacional da Ação da
Cidadania e a etapa nacional da Segunda Semana Social Brasileira, conseguia
fazer, competente e generosamente, o que qualquer mortal teria dificuldades abissais.
Homem despido de qualquer vaidade, quando foi
demitido da FUCMT por razões não acadêmicas (ele e a Professora Yara Penteado)
foi imediatamente contratado pelo CESUP, que logo se transformaria na
Universidade para o Desenvolvimento Regional do Pantanal (UNIDERP), tendo sido
por décadas chefe de gabinete da reitoria e mais tarde diretor do Hospital
Veterinário dessa instituição. Mais uma vez sua discrição e competência ajudou
a construir o estado que viu nascer. Depois que um grupo transnacional adquiriu
a maioria das ações do quadro societário da entidade mantenedora, acabou por
realizar velho sonho de morar em um sítio, em Terenos.
Depois de aposentado, dedicou-se às letras, tendo
sido membro e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do
Sul. Entre os livros que Paulo Cabral escreveu, o registro meticuloso da
extinta Moderna Escola Campo-grandense de Ensino (MACE), por ocasião de seu
cinquentenário, é emblemático. A mais recente obra a prefaciar foi a antologia
de crônicas que o Jornalista Maranhão Viegas fez durante a pandemia de covid-19,
‘Cápsulas de oxigênio’. Generoso e comedido, o paulistano que escolheu Mato
Grosso do Sul quando era instalado se eterniza depois de constatar que o
conservadorismo e a tibieza da minoria progressista se complementam numa
sociedade excludente, hipócrita e, sobretudo, seduzida pelo fascismo travestido
de neopentecostalismo.
Em entrevista a Brayner Silva (Folha de Campo
Grande, 17 jun. 2022), observara: “Muito me espanta ver pessoas pedindo a
volta da ditadura, um momento deplorável da nossa história. Só na democracia,
com todos os seus defeitos, vamos conseguir aprimorar a política. Sem política
não existimos, não fazemos nada, não resolvemos nada. Então, reforço que a
política é o meio de se conseguir uma sociedade justa e igualitária.”
Até sempre, querido Amigo e Professor Paulo Cabral!
Obrigado pelas inúmeras lições de cidadania, generosidade, comedimento e
humildade, que seu fecundo legado de discrição e competência ilumine mentes e
corações destas e das próximas gerações!
Ahmad
Schabib Hany
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