José
Feliciano, um dos idealizadores do Consórcio
Antes de ser transformado em
‘projeto de poder’, o Consórcio Corumbaense de Comunicação era uma das inúmeras
ideias do advogado e pecuarista José Feliciano Baptista Neto, um dos diretores
da Folha da Tarde e da Rádio Difusora Mato-grossense.
O Advogado José Feliciano Baptista Neto era
pecuarista. Mas o que gostava, mesmo, era de escrever, fazer discursos
arrebatadores e, sobretudo, projetos. Muitos dos trabalhos foram compartilhados
com proeminências políticas, como os então governadores de Mato Grosso José
Manuel Fontanillas Fragelli e Cássio Leite de Barros. Mas ele disse considerar
o colega Advogado Hélio Sascher de Souza, o médico e historiador Professor
Lécio Gomes de Souza e o Advogado e ex-governador Cássio de Barros “muito
brilhantes, inspiradores”.
Foi correspondente colaborador (não remunerado),
em diferentes épocas, do sisudo diário conservador da, então, rua Major
Quedinho, 90, O Estado de S. Paulo,
do qual era também assíduo leitor. Fez algumas matérias para O Globo, porta-voz oficioso do regime de
1964. No tempo de Mato Grosso uno, era colaborador de O Estado de Mato Grosso, de Cuiabá, e alternadamente do Jornal da Manhã e Correio do Estado, de Campo Grande. Foi quem me deu as boas-vindas
ao chegar como primeiro correspondente remunerado desse jornal, em outubro de
1984. Gentleman, ele me apresentou a
autoridades de Corumbá e Ladário, não sem antes perguntar o que eu era de
Mahoma Hossen Schabib, cujas crônicas lera em espanhol e português, e se ele
era fundamentalista, ao que respondi “não, é um humanista de formação sólida,
pela universidade mais antiga do Egito, a do Cairo”.
Pai do ex-vereador Antônio Victor Lima Baptista, José
Feliciano era incansável, sobretudo, leitor compulsivo e perspicaz. Casado com
a artista plástica Nancy Lacerda Lima Baptista, que, discretíssima, só expôs em
idade madura, tia da renomada artista plástica Hebe Lacerda, autora premiada da
logomarca do Bicentenário de Corumbá, em 1978. Foi assessor do governador
derradeiro de Mato Grosso uno, Advogado Cássio Leite de Barros, e do último
prefeito nomeado de Corumbá (em negociação com o Doutor Wilson Barbosa Martins,
primeiro governador de Mato Grosso do Sul eleito pelo voto direto), Médico Fadah
Scaff Gattass. Eternizou-se quando mapeava grutas e cavernas subterrâneas em
seu hotel-fazenda para o turismo contemplativo e científico, do qual é
precursor.
Nos primeiros anos da década de 1970, José
Feliciano, que acumulava a direção da Rádio Difusora Mato-grossense e da Folha da Tarde, acompanhava as
articulações do Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento do Pantanal
(CIDEPAN), cujo ápice foi a conquista dos primeiros projetos de desenvolvimento
e estudos científicos do Pantanal, entre os quais o Programa de Desenvolvimento
do Pantanal (PRODEPAN) e o Estudo de Desenvolvimento Integrado da Bacia do Alto
Paraguai (EDIBAP). Isso servira de inspiração para o Consórcio Corumbaense de
Comunicação (CCC), tendo levado o projeto para o governador Fragelli e este o
encaminhou ao então todo-poderoso senador Filinto Strubing Müller, cujo apoio
foi determinante, como veremos nos próximos textos, dentro do contexto político
do País.
Obviamente, como eram anos de chumbo e, a bem da
verdade, a sociedade científica não gozava de plena liberdade para se
manifestar, o PRODEPAN era mais um conjunto de obras ‘politicamente incorretas’
(tanto que aberrações como as intervenções bizarras nas bocas do rio Taquari
começam a ser preconizadas pelos tecnocratas da SUDECO e do Ministério do
Interior, sob a batuta do coronel da reserva Mário Andreazza, superministro de
Costa e Silva e Garrastazu Médici responsável por megaprojetos bizarros, como
Transamazônica, a Transpantaneira inconclusa e o Pôlder de Ladário, atual
‘Codrasa’, nome da empreiteira vencedora da concorrência pública, para o
cultivo de arroz irrigado em pleno Pantanal). Diferente do EDIBAP, de cuja equipe
científica participaram pesquisadores anteriores ao regime de 1964, mas descontinuado
na primeira década de implementação de Mato Grosso do Sul com os elefantes
brancos de Pedro Pedrossian.
José Feliciano era dos maiores entusiastas do
assim batizado de ‘santuário ecológico’. Por convicção, leitor voraz de
publicações acadêmicas e frequentador de eventos científicos. O Jornalista
Fernando Barros, de O Estado de S. Paulo,
enviado especial para cobrir o Primeiro Simpósio sobre Recursos Naturais e
Socioeconômicos do Pantanal, atividade inaugural do Centro de Pesquisas
Agropecuárias do Pantanal (depois Embrapa Pantanal), em outubro/novembro de
1984, confidenciou ter ficado “impressionado” com a erudição do pecuarista, que
em entrevista tratara de “nichos ecológicos” -- ao que lhe esclareci que não se
tratava de qualquer pecuarista, mas de ávido leitor de publicações científicas,
tendo sido colaborador por décadas do sisudo jornal que o enviara ao Pantanal.
Alguns anos mais tarde, José Feliciano, depois de
ter feito algumas visitas à Faculdade de Geologia da USP, promoveu diversas
expedições com espeleólogos em diversas fazendas para mapear grutas e cavernas
subterrâneas, a começar pelo hotel-fazenda de sua família, Santa Blanca. Precursor
do turismo científico, segmento que não foi compreendido pelos empreendedores,
mas bem implementado pelo Amigo Armando Carlos Arruda de Lacerda no Porto de
São Pedro, embora a ausência de políticas públicas para o segmento dificultem o
desenvolvimento desse setor, muito cativo e em franca expansão pelo mundo afora.
Sabedor dos interesses dos novos ‘donos do poder’
nos anos de chumbo, sabiamente se manteve discreto em suas funções de diretor
sem voz nem voto na nova conformação dos jornais e da Pioneira. Ainda que fosse autor do projeto de consórcio de empresas
de comunicação locais, foi para escanteio na estrutura gerida pelo muito bem
remunerado diretor-geral, jornalista Daniel de Almeida Lopes, ungido por
Filinto Müller para o projeto. Segundo o pessoal da área administrativa do
consórcio, Feliciano agia tal qual auditor da polêmica gestão de Lopes, e foi
um dos pivôs do fim do consórcio, anos mais tarde.
Como o objetivo do CCC era político --
pretendia-se o desgaste da imagem de Cecílio de Jesus Gaeta e o enfrentamento de
sua crescente popularidade junto ao eleitorado local, de tradição trabalhista e
rejeição automática às candidaturas udenistas --, não por acaso o
apadrinhamento político do cumulativamente líder da Arena e do Governo,
presidente da Arena e próximo presidente do Senado Federal e do Congresso
Nacional, o cuiabano Filinto Müller, pessedista ligado a Getúlio Vargas no
tempo do Estado Novo. Todo cuidado era pouco para não entrar em rota de colisão
com o temido Filinto, amigo e padrinho político em Corumbá de Armando Anache, porta-voz
local de Pedrossian.
Eleger dois deputados estaduais e um deputado
federal da Arena na região era a ambiciosa meta dos caciques locais do partido
que dava sustentação ao regime de 1964. Para isso, seria preciso derrotar
Gaeta, razão de toda a estratagema. Quando sua ideia foi levada a Filinto, era
modesta, menos pretensiosa, mas para justificar esquema denso, com grande
envolvimento político, foi necessário ampliar as metas do até então tímido
projeto. Por isso, a contratação de mais jornalistas, a compra de mais
equipamentos, a entrega de mais produtos para o mercado consumidor de notícias.
Enfim, o CCC fez jus ao tempo do Brasil megalomaníaco: tudo o que se propunha
fazer no tempo do ‘Pra frente, Brasil’ era grande, e a vitória sobre Gaeta devia
igualmente ser acachapante. Só que não.
Gaeta, que já havia sido deputado estadual campeão
de votos em 1970, conseguiu eleger, a despeito da criação do CCC, seu irmão,
Augusto Fernandes Gaeta, vereador campeão de votos em Corumbá e ajudar a fazer
uma bancada com mesmo número de vereadores que os da situação, fato que levou o
então prefeito Breno Medeiros Guimarães a renunciar, conforme tinha prometido
antes da eleição. Em 1974, um ano depois do acidente que tirou Filinto da vida
e do poder, Gaeta não só se reelegeu com quase o dobro de votos, o mais votado
do MDB, como ajudou a aumentar a bancada oposicionista na Assembleia
Legislativa de Mato Grosso, para frustração dos estrategistas do CCC.
Como se vê, do ponto de vista político, a estratégia
dos novos donos do poder foi por água abaixo. Isso não só abalou a confiança
dos arenistas de Brasília por seus correligionários corumbaenses, que tinham
conseguido emplacar o vice-governador Cássio Leite de Barros rumo ao Palácio Alencastro
-- na verdade, ao futuro Palácio Paiaguás, cuja inauguração estava prevista
para 15 de março de 1975, na solenidade de posse do governador José Garcia Neto
e do vice Cássio, defensores da unidade territorial de Mato Grosso, contrários,
portanto, aos divisionistas liderados pelos arenistas do sul do estado, livres
da tutela de Filinto, avesso a qualquer ideia que cogitasse dividir seu feudo
político: Mendes Canale, Saldanha Derzi, Pedro Pedrossian, Levy Dias e alguns
adesistas do MDB, como Walter de Castro, Getúlio Gedeão, Waldir Cardoso e
Odilon Nakasato. Consumada a divisão de Mato Grosso é que o ex-governador José
Fragelli, também corumbaense, muda sua posição, pró-Mato Grosso do Sul, quando
também mudou seu domicílio eleitoral para Aquidauana.
Posição diferente da dos líderes do MDB,
contrários a mais este casuísmo, tão-somente para colocar mais três senadores e
quatro deputados federais da situação. Plínio e Wilson Barbosa Martins, Antônio
Carlos de Oliveira, Vicente Bezerra Neto, Padre Raimundo Pombo e a nova geração
oposicionista, Dante de Oliveira, Sérgio Cruz, Gilson de Barros e Márcio
Lacerda, eram declaradamente contrários, mas para não dar chance ao ufanismo da
Arena (sobretudo no sul do estado), preferiram não radicalizar. Cecílio de
Jesus Gaeta ficou ‘em cima do muro’, pois tinha acordo tácito com Pedrossian e
não podia ‘atravessar o samba’ com ele: em toda a sua campanha não tocara no
assunto. Ironicamente, com a ‘Novacap’ mais perto de Corumbá e Ladário, o seu
eleitorado passou a vê-lo adesista e, depois da ascensão de votos em 1974 e
1978, portanto antes da instalação do novo estado, iniciou a queda vertiginosa
de votos e de seu apoio até então incondicional de seus eleitores.
O fato real é que a saia-justa de Gaeta, iniciada
numa polêmica com o líder da bancada do PMDB na Assembleia Legislativa,
deputado Sérgio Cruz, fez com que ele fosse procurar, depois da reformulação
partidária, um partido de oposição, ‘pero no mucho’. Era o Partido Popular, de
Tancredo Neves, Thales Ramalho e Magalhães Pinto. A chamada oposição confiável.
Para o regime. Mas, com tanto casuísmo feito pelos arenistas para assegurar a
maioria da bancada no Congresso Nacional e dos governos estaduais, como voto
vinculado e censura no horário eleitoral, o PP acabou por se incorporar ao
PMDB. Para Gaeta, tido como ‘radical’ por seu eleitorado de origem trabalhista,
representou um desgaste que o perseguiu por todo o seu último mandato,
sobretudo depois de ter votado para o deputado Gandhi Jamil, do PDS, em
detrimento do candidato a presidente da Assembleia Legislativa deputado Roberto
Orro, do PMDB. Foi a gota d’água para o início do fim do líder messiânico
corumbaense, que se eternizou em Nobres, Mato Grosso, em 2022, tendo sido o
Jornalista Edson Moraes autor da entrevista derradeira, de página inteira.
Ahmad
Schabib Hany
Um comentário:
Você é um memorialista meticuloso e sério. A contação de histórias fica tão rica em detalhes que daqui a pouco os/as estudantes de história terão que lhe estudar!
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