Golpe
com armas, quando?
O cinismo com que um palaciano
do inominável envolvido na intentona golpista de 8 de janeiro de 2023 escancara
uma desinformação destinada aos mais desatentos: golpe precisa de arma. No
Brasil, nunca precisou, desde a proclamação da República pelos ‘amigos’ do
imperador até os golpes de 1964 e 2016.
A história do Brasil está repleta de evidências de
que golpes feitos abaixo do Equador não fizeram uso de armas, de pequeno ou
grande calibre. Obviamente, isso não quer dizer que as forças armadas nunca
recorreram a golpes, mas eles foram gestados e concretizados no âmbito
político, empresarial (se é que dá para chamar assim as oligarquias
endinheiradas com o beneplácito dos mandarins de plantão) e a partir de 1808,
quando oficialmente a imprensa foi consentida, donos de panfletões, panfletinhos
e panfletáceos, sempre a serviço do establishment,
nunca em favor do bem-estar social.
Pelo menos desde o golpe de ‘amigos’ do imperador
Pedro II, em 15 de novembro de 1889, nunca as armas tiveram serventia na
consumação de atos lesivos à democracia ou, no caso pretérito, à ordem
estabelecida. Valeram-se do senso comum de que, de posse das armas de seus
arsenais e paióis, qualquer bravata não podia ser desconsiderada, até por conta
dos episódios cometidos contra as rebeliões de escravizados, abolicionistas e
libertários: os trágicos massacres contra os liderados de Zumbi, Tiradentes, Frei
Caneca etc.
Na proclamação da República, o ministro da Guerra,
Marechal Deodoro da Fonseca, amigo declarado do imperador e da família real, se
valeu da confiança depositada nele, que guardava o palácio imperial enquanto a
família real estava a se divertir num baile da Ilha Fiscal. Não era
desconhecida a ira dos escravocratas contra a princesa Isabel desde que ela
assinou a Lei Áurea, em 1888. A única reação à deposição do imperador foi do
ministro da Marinha, o Barão de Ladário, único ministro leal que acabou
atingido a queima-roupa ante sua reação em favor da manutenção da ordem
estabelecida desde 1822.
Atos de revolta, como a Revolta da Chibata, da
Praia Vermelha, movimento tenentista, Coluna Prestes e outros, nem de longe
foram atos golpistas. Embora reprimida duramente, essa corajosa grita de
setores populares das forças armadas foi mobilização das bases, do povo,
voltada única e propositalmente para reformas pontuais nas instituições
brasileiras, cuja origem é elitista e repressora, pois a profissionalização da
caserna só ocorre depois da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, ainda
assim vagarosamente.
Agora, as chamadas Revolução de 1930
e Revolução Constitucionalista de 1932, em que os setores das elites brasileira
estiveram envolvidos por dissonâncias específicas, não foram atos golpistas,
mas revoltas que contaram com o engajamento de parcela da população, daí por que
houve confrontos armados. Mas é bom ter clareza de que não foram golpes, e sim
manifestações de revolta, tanto quanto os fatos elencados no parágrafo
anterior.
Golpes como o que tirou o vice-presidente Café
Filho do cargo depois do ato extremo de Getúlio Vargas, “de deixar a vida para
entrar na história”, não contaram com o uso das armas, mas da pressão política
oriunda do Congresso Nacional -- da Câmara dos Deputados e do Senado Federal --,
como, aliás, o golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964 e o golpe
midiático-parlamentar de 12 de maio de 2016, os quais, embora tiveram o aceno
de parte da cúpula militar, não houve emprego de armas para sua consumação.
Em 1964, alguns generais do Exército declararam apoio
à ruptura constitucional quando a mobilização feita por governadores de
oposição (UDN e PSP) ao Presidente João Goulart já estava adiantada e tomava as
ruas com a adesão das corporações empresariais e setores da igreja católica (‘Marcha
da Família com Deus pela Liberdade’). O ministro da Guerra de João Goulart,
marechal Humberto Alencar Castelo Branco, e o Estado Maior das Forças Armadas
só declararam apoio ao golpe depois que o senador Auro de Moura Andrade, ainda
que soubesse do paradeiro de Goulart, declarou a vacância da Presidência da
República e com o aval do Judiciário deu posse ao presidente da Câmara,
Rainieri Mazzilli, às 3 horas da madrugada do dia 2 de abril (detalhe: Jango
permaneceu em Porto Alegre até o dia 4 de abril, mas para evitar derramamento
de sangue, decidiu ir ao interior e depois rumou para o Uruguai).
No caso da Presidente Dilma Rousseff, a ameaça
feita pelo general Villas-Boas, à época comandante do Exército, teve impacto
extremo, tanto que até o Supremo Tribunal Federal não se pronunciou para
contraditar aquela ilegalidade acintosa, mas o golpe estava em gestação desde
as nefastas ‘jornadas de junho’, de 2013, com a
explícita participação das maiores empresas de fake, digo, de ‘comunicação’: Lobo, Fechol, Falha e Estradão.
Sobre a ameaça do general, esse episódio foi aludido de modo elogioso pelo
inominável em sua posse, quando o homenageou com a sua saúde comprometida, mas
que foi contemplado com um cargo durante parte do mandato presidencial do capetão
quase desertor.
Mas o que importa é destacar a tentativa de
desinformar: golpe armado neste país nunca houve, embora as elites sempre
tivessem se caracterizado pela violência e abuso de poder, sem ter recebido
alguma punição das instituições. Somente a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988 é que os limites constitucionais são estabelecidos
de forma explícita, até para não dar margem a jogadas golpistas com aparência
de legalidade, que mesmo assim ocorreram acintosamente, tanto nas ‘pedaladas
fiscais’, caricatura jurídica que inexiste no arcabouço jurídico pátrio, como
no ativismo político da quadrilha de Curitiba, que começa a ter suas falcatruas
e conluios expostos.
Indiscutivelmente, a tradição golpista dos setores
armados no País vem do tempo colonial, em que a gênese das forças de segurança
tinham caráter de jagunços. Eram os ‘homens da lei’, que faziam de tudo, menos
aplicar a lei, sempre ao gosto e sabor dos ‘donos do poder’. A tentativa de
profissionalização no pós-guerra da Tríplice Aliança, em fins do século XIX,
foi pífia, e descambou durante a chamada República Velha, quando as oligarquias
do ‘café com leite’ governavam o Brasil com mão de ferro e segundo os seus
interesses, bastante distantes dos parâmetros republicanos.
No entanto, a postura legalista de comandantes do
Exército tem sido fator de garantia da sobrevivência do Estado de Direito no
País: o Marechal Henrique Teixeira Lott, corajoso e bravo em sua postura, pôs
fim à tentativa de impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitscheck de
Oliveira, em 1955. Até como prova de reconhecimento e gratidão pela atitude
legalista no momento crítico, o Marechal Lott foi o candidato do PSD-PTB à
eleição que definiu o sucessor de JK em 1960, tendo
como candidato a vice-presidente ninguém menos que João Melchior Marques
Goulart, que com a renúncia prematura e inimaginável de Jânio da Silva Quadros,
em 1961, acabou assumindo a Presidência da República. É que o ‘homem da
vassoura’ preferiu se aventurar e como bruxo às avessas pegou carona nela: “Varre,
varre, vassourinha...”
Embora poucos saibam (até porque os jornalões
sempre escamotearam a verdade dos atos golpistas), entre a renúncia de Jânio e
a posse de Jango houve uma tentativa de golpe: a ‘Operação Mosquito’ foi uma
trama golpista, focada em ato de sabotagem na pista de pouso e decolagem do
aeroporto de Brasília em agosto de 1961, em que o coronel do ar Paulo de Mello
Bastos pilotara o avião que levaria o então vice-presidente João Goulart de
Montevidéu a Brasília, mas para que não fosse interceptado por militares
contrários a Goulart ele optou por desviar o percurso e encerrar o voo em Porto
Alegre. Somente com o sinal verde dos militares é que Jango chegou a Brasília
dias depois dessa operação, comandada pelo mais tarde brigadeiro Márcio Leal
Coqueiro, na época tenente-coronel, que confirmou a trama conspiratória,
justificando que, como militar, cumprira ordens superiores.
Em 1985, o general Leônidas Pires Gonçalves, em
consonância com parcela majoritária da cúpula das forças armadas, foi o
avalista da transição para a Nova República, mesmo com o inimaginável problema
de saúde do então presidente eleito Tancredo Neves. Figueiredo, vingativo, não
quis passar a faixa ao sucessor constitucional, na pessoa de José Sarney,
ex-parlamentar da Arena. Mas Ulysses Guimarães, como presidente da Câmara
Federal, e com o apoio efetivo do então presidente José Fragelli, do Senado e
do Congresso Nacional, recorreu ao alto comando das forças armadas e obteve o
sinal verde para a posse, sem óbice algum, a despeito da combalida bancada malufista
do Congresso que torcia por um escorregão institucional na esperança de impedir
a transição para a democracia.
Não há um golpe, no Brasil, em que a iniciativa
tenha sido pelo uso das armas. Nem em 1968, quando a linha dura decide dar uma
guinada e, valendo-se da doença do marechal Arthur da Costa e Silva, tira o
vice-presidente Pedro Aleixo da sucessão e impõe a Junta Militar encabeçada
pelo general Emílio Garrastazu Médici. Foram momentos de tensão, sim, mas de
bastidores, sem terem recorrido ao uso de armas entre eles. Dona Yolanda Costa
e Silva, corajosamente, denunciou a quartelada, mas a censura se encarregou de
silenciá-la. Mino Carta, Claudio Abramo, Alberto Dines, Villas-Boas Corrêa,
Carlos Chagas, Samuel Wainer e Hélio Fernandes, cada um em seu meio e a seu
modo, tentaram denunciar a estratagema da linha-dura do regime de 1964, mas o
AI-5 e as reformas draconianas já haviam sido tomadas em 13 de dezembro de
1968, de modo que uma cortina de silêncio tomou conta do país.
O principal artífice do golpe de 1964, então
governador da Guanabara Carlos Lacerda, que desde 1950
vinha tentando golpear Getúlio Vargas e aliados, PSD-PTB, reconheceu, depois de
se tornar vítima de seu próprio golpe, que são os políticos os que fazem ou
desfazem os golpes contra a democracia. Não por acaso, antes de ser cassado pelo
AI-5, foi construir uma frente ampla contra o regime que ele ajudara a
implantar. Assim, ao visitar Juscelino Kubitscheck em Belô e João Goulart em
Montevidéu, para onde tinha ido depois do golpe que sofrera, percebeu que Jango
não era um homem que guardava mágoa, como consta de sua obra autobiográfica,
ocasião em que pessoalmente pediu desculpas pelos ‘excessos’ de seus discursos
violentos. Tanto Goulart como Lacerda morreram em circunstâncias não elucidadas,
‘de infarto fulminante’. Já JK, campeão de votos e incômodo protagonista, teve
seu carro colhido por um caminhão que vinha em sentido contrário, também em
1977.
Ahmad
Schabib Hany
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