domingo, 18 de fevereiro de 2024

GOLPE COM ARMAS, QUANDO?

Golpe com armas, quando?

O cinismo com que um palaciano do inominável envolvido na intentona golpista de 8 de janeiro de 2023 escancara uma desinformação destinada aos mais desatentos: golpe precisa de arma. No Brasil, nunca precisou, desde a proclamação da República pelos ‘amigos’ do imperador até os golpes de 1964 e 2016.

A história do Brasil está repleta de evidências de que golpes feitos abaixo do Equador não fizeram uso de armas, de pequeno ou grande calibre. Obviamente, isso não quer dizer que as forças armadas nunca recorreram a golpes, mas eles foram gestados e concretizados no âmbito político, empresarial (se é que dá para chamar assim as oligarquias endinheiradas com o beneplácito dos mandarins de plantão) e a partir de 1808, quando oficialmente a imprensa foi consentida, donos de panfletões, panfletinhos e panfletáceos, sempre a serviço do establishment, nunca em favor do bem-estar social.

Pelo menos desde o golpe de ‘amigos’ do imperador Pedro II, em 15 de novembro de 1889, nunca as armas tiveram serventia na consumação de atos lesivos à democracia ou, no caso pretérito, à ordem estabelecida. Valeram-se do senso comum de que, de posse das armas de seus arsenais e paióis, qualquer bravata não podia ser desconsiderada, até por conta dos episódios cometidos contra as rebeliões de escravizados, abolicionistas e libertários: os trágicos massacres contra os liderados de Zumbi, Tiradentes, Frei Caneca etc.

Na proclamação da República, o ministro da Guerra, Marechal Deodoro da Fonseca, amigo declarado do imperador e da família real, se valeu da confiança depositada nele, que guardava o palácio imperial enquanto a família real estava a se divertir num baile da Ilha Fiscal. Não era desconhecida a ira dos escravocratas contra a princesa Isabel desde que ela assinou a Lei Áurea, em 1888. A única reação à deposição do imperador foi do ministro da Marinha, o Barão de Ladário, único ministro leal que acabou atingido a queima-roupa ante sua reação em favor da manutenção da ordem estabelecida desde 1822.

Atos de revolta, como a Revolta da Chibata, da Praia Vermelha, movimento tenentista, Coluna Prestes e outros, nem de longe foram atos golpistas. Embora reprimida duramente, essa corajosa grita de setores populares das forças armadas foi mobilização das bases, do povo, voltada única e propositalmente para reformas pontuais nas instituições brasileiras, cuja origem é elitista e repressora, pois a profissionalização da caserna só ocorre depois da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, ainda assim vagarosamente.

Agora, as chamadas Revolução de 1930 e Revolução Constitucionalista de 1932, em que os setores das elites brasileira estiveram envolvidos por dissonâncias específicas, não foram atos golpistas, mas revoltas que contaram com o engajamento de parcela da população, daí por que houve confrontos armados. Mas é bom ter clareza de que não foram golpes, e sim manifestações de revolta, tanto quanto os fatos elencados no parágrafo anterior.

Golpes como o que tirou o vice-presidente Café Filho do cargo depois do ato extremo de Getúlio Vargas, “de deixar a vida para entrar na história”, não contaram com o uso das armas, mas da pressão política oriunda do Congresso Nacional -- da Câmara dos Deputados e do Senado Federal --, como, aliás, o golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964 e o golpe midiático-parlamentar de 12 de maio de 2016, os quais, embora tiveram o aceno de parte da cúpula militar, não houve emprego de armas para sua consumação.

Em 1964, alguns generais do Exército declararam apoio à ruptura constitucional quando a mobilização feita por governadores de oposição (UDN e PSP) ao Presidente João Goulart já estava adiantada e tomava as ruas com a adesão das corporações empresariais e setores da igreja católica (‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’). O ministro da Guerra de João Goulart, marechal Humberto Alencar Castelo Branco, e o Estado Maior das Forças Armadas só declararam apoio ao golpe depois que o senador Auro de Moura Andrade, ainda que soubesse do paradeiro de Goulart, declarou a vacância da Presidência da República e com o aval do Judiciário deu posse ao presidente da Câmara, Rainieri Mazzilli, às 3 horas da madrugada do dia 2 de abril (detalhe: Jango permaneceu em Porto Alegre até o dia 4 de abril, mas para evitar derramamento de sangue, decidiu ir ao interior e depois rumou para o Uruguai).

No caso da Presidente Dilma Rousseff, a ameaça feita pelo general Villas-Boas, à época comandante do Exército, teve impacto extremo, tanto que até o Supremo Tribunal Federal não se pronunciou para contraditar aquela ilegalidade acintosa, mas o golpe estava em gestação desde as nefastas ‘jornadas de junho’, de 2013, com a explícita participação das maiores empresas de fake, digo, de ‘comunicação’: Lobo, Fechol, Falha e Estradão. Sobre a ameaça do general, esse episódio foi aludido de modo elogioso pelo inominável em sua posse, quando o homenageou com a sua saúde comprometida, mas que foi contemplado com um cargo durante parte do mandato presidencial do capetão quase desertor.

Mas o que importa é destacar a tentativa de desinformar: golpe armado neste país nunca houve, embora as elites sempre tivessem se caracterizado pela violência e abuso de poder, sem ter recebido alguma punição das instituições. Somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 é que os limites constitucionais são estabelecidos de forma explícita, até para não dar margem a jogadas golpistas com aparência de legalidade, que mesmo assim ocorreram acintosamente, tanto nas ‘pedaladas fiscais’, caricatura jurídica que inexiste no arcabouço jurídico pátrio, como no ativismo político da quadrilha de Curitiba, que começa a ter suas falcatruas e conluios expostos.

Indiscutivelmente, a tradição golpista dos setores armados no País vem do tempo colonial, em que a gênese das forças de segurança tinham caráter de jagunços. Eram os ‘homens da lei’, que faziam de tudo, menos aplicar a lei, sempre ao gosto e sabor dos ‘donos do poder’. A tentativa de profissionalização no pós-guerra da Tríplice Aliança, em fins do século XIX, foi pífia, e descambou durante a chamada República Velha, quando as oligarquias do ‘café com leite’ governavam o Brasil com mão de ferro e segundo os seus interesses, bastante distantes dos parâmetros republicanos.

No entanto, a postura legalista de comandantes do Exército tem sido fator de garantia da sobrevivência do Estado de Direito no País: o Marechal Henrique Teixeira Lott, corajoso e bravo em sua postura, pôs fim à tentativa de impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira, em 1955. Até como prova de reconhecimento e gratidão pela atitude legalista no momento crítico, o Marechal Lott foi o candidato do PSD-PTB à eleição que definiu o sucessor de JK em 1960, tendo como candidato a vice-presidente ninguém menos que João Melchior Marques Goulart, que com a renúncia prematura e inimaginável de Jânio da Silva Quadros, em 1961, acabou assumindo a Presidência da República. É que o ‘homem da vassoura’ preferiu se aventurar e como bruxo às avessas pegou carona nela: “Varre, varre, vassourinha...”

Embora poucos saibam (até porque os jornalões sempre escamotearam a verdade dos atos golpistas), entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango houve uma tentativa de golpe: a ‘Operação Mosquito’ foi uma trama golpista, focada em ato de sabotagem na pista de pouso e decolagem do aeroporto de Brasília em agosto de 1961, em que o coronel do ar Paulo de Mello Bastos pilotara o avião que levaria o então vice-presidente João Goulart de Montevidéu a Brasília, mas para que não fosse interceptado por militares contrários a Goulart ele optou por desviar o percurso e encerrar o voo em Porto Alegre. Somente com o sinal verde dos militares é que Jango chegou a Brasília dias depois dessa operação, comandada pelo mais tarde brigadeiro Márcio Leal Coqueiro, na época tenente-coronel, que confirmou a trama conspiratória, justificando que, como militar, cumprira ordens superiores.

Em 1985, o general Leônidas Pires Gonçalves, em consonância com parcela majoritária da cúpula das forças armadas, foi o avalista da transição para a Nova República, mesmo com o inimaginável problema de saúde do então presidente eleito Tancredo Neves. Figueiredo, vingativo, não quis passar a faixa ao sucessor constitucional, na pessoa de José Sarney, ex-parlamentar da Arena. Mas Ulysses Guimarães, como presidente da Câmara Federal, e com o apoio efetivo do então presidente José Fragelli, do Senado e do Congresso Nacional, recorreu ao alto comando das forças armadas e obteve o sinal verde para a posse, sem óbice algum, a despeito da combalida bancada malufista do Congresso que torcia por um escorregão institucional na esperança de impedir a transição para a democracia.

Não há um golpe, no Brasil, em que a iniciativa tenha sido pelo uso das armas. Nem em 1968, quando a linha dura decide dar uma guinada e, valendo-se da doença do marechal Arthur da Costa e Silva, tira o vice-presidente Pedro Aleixo da sucessão e impõe a Junta Militar encabeçada pelo general Emílio Garrastazu Médici. Foram momentos de tensão, sim, mas de bastidores, sem terem recorrido ao uso de armas entre eles. Dona Yolanda Costa e Silva, corajosamente, denunciou a quartelada, mas a censura se encarregou de silenciá-la. Mino Carta, Claudio Abramo, Alberto Dines, Villas-Boas Corrêa, Carlos Chagas, Samuel Wainer e Hélio Fernandes, cada um em seu meio e a seu modo, tentaram denunciar a estratagema da linha-dura do regime de 1964, mas o AI-5 e as reformas draconianas já haviam sido tomadas em 13 de dezembro de 1968, de modo que uma cortina de silêncio tomou conta do país.

O principal artífice do golpe de 1964, então governador da Guanabara Carlos Lacerda, que desde 1950 vinha tentando golpear Getúlio Vargas e aliados, PSD-PTB, reconheceu, depois de se tornar vítima de seu próprio golpe, que são os políticos os que fazem ou desfazem os golpes contra a democracia. Não por acaso, antes de ser cassado pelo AI-5, foi construir uma frente ampla contra o regime que ele ajudara a implantar. Assim, ao visitar Juscelino Kubitscheck em Belô e João Goulart em Montevidéu, para onde tinha ido depois do golpe que sofrera, percebeu que Jango não era um homem que guardava mágoa, como consta de sua obra autobiográfica, ocasião em que pessoalmente pediu desculpas pelos ‘excessos’ de seus discursos violentos. Tanto Goulart como Lacerda morreram em circunstâncias não elucidadas, ‘de infarto fulminante’. Já JK, campeão de votos e incômodo protagonista, teve seu carro colhido por um caminhão que vinha em sentido contrário, também em 1977.

Ahmad Schabib Hany

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