No
rastro do encontro Médici-Banzer
Realizado menos de seis meses
depois do sangrento golpe militar que fez o coronel Hugo Banzer Suárez ascender
meteoricamente ao cargo de general e se tornar o ditador boliviano com mais
tempo de mando (e um dos mais ricos de seu país),
o encontro com o seu colega Emílio Garrastazu Médici em Corumbá foi o marco de
criação, com o aval do então todo-poderoso senador Filinto Müller, do consórcio
de comunicação para ‘embaçar’ a reeleição de Cecílio de Jesus Gaeta, um incômodo
oposicionista, ‘pero no mucho’.
“Eu te amo,
meu Brasil, eu te amo! / Ninguém segura a juventude do Brasil...”
No Sesquicentenário da Independência, quando as
moedas comemorativas traziam o perfil do general Emílio Garrastazu Médici ao
lado do de dom Pedro I, mais que o Hino Nacional, era essa a trilha sonora
prevalente. Não havia rádio que não tocasse o hit ufanista de ‘Os incríveis’, de autoria de Eustáquio Gomes de
Farias, da dupla Dom e Ravel. Os mesmos de “Você também é responsável”,
música-tema do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral),
no auge da repressão política que se sucedeu às mobilizações populares de 1968,
por liberdades democráticas e contra a ditadura.
Corumbá, 4 de abril de 1972. Primeiro, o avião
presidencial brasileiro com o general Médici aterrissa, e o séquito de
seguranças, jornalistas e políticos da Arena (Aliança Renovadora Nacional)
disputam espaço. Ensaiado, o presidente, do alto da escada que o levará ao solo
corumbaense, faz pose de estadista acenando para a população, cujo acesso foi
vedado ao mesmo aeródromo que recebera anos antes, exilado, Jânio Quadros,
último presidente eleito que renunciara na esperança de ser reconduzido ao
cargo pelo povo, e cujo vice, igualmente eleito pelo voto direto e secreto,
João Goulart, fora golpeado oito anos antes.
Mas um fotógrafo local rouba a cena: com total
desenvoltura, faz um gesto para o temido presidente aguardar um pouco, enquanto
ele involuntariamente repete o cacoete com que era conhecido, de coçar
compulsivamente as partes, o que ficou na memória de
todos os colegas. O fotógrafo era ninguém menos que o
poeta e renegado nordestino Jadiel Araújo, o Jadi, que escolhera Corumbá como terra para a sua prole, morador da
Vila Soloaga, na Feira Boliviana. Sua sina de perseguido pelo regime, que
mantinha em segredo até o fim da ditadura, foi conhecida pela matéria do
Jornalista Luiz Taques, no semanário Jornal
da Cidade, na década de 1980.
Quanto à histórica (irreverente) cena na chegada de Médici a
Corumbá, o Professor
João de Souza Alvarez, então auxiliar de Jadiel, assegura que um colega fez o
registro fotográfico, revelou o filme, ampliou a foto em papel tamanho 18x24
(centímetros) e a enviou ao seu endereço de trabalho.
Superado aquele imprevisto, aterrissa, minutos
depois, o avião presidencial boliviano, que traz o coronel, aliás, generaleco
Hugo Banzer Suárez, que menos de sete meses antes se tornara ditador e máximo
comandante das forças armadas da Bolívia, passando para trás o líder golpista,
também coronel fascista, Andrés Selich Chop, morto em circunstâncias suspeitas
nas escadarias do palácio Quemado (presidencial) depois de dois anos do golpe
sangrento em que sequestrou, torturou e fuzilou impiedosa e impunemente
adversários de todos os matizes político-ideológicos no afã de usufruir do
cargo, assegurar as benesses do poder para os seus e atender aos seus amos de
Washington e Brasília, um dos primeiros experimentos de Henry Kissinger na
América do Sul (preparação para o do Chile em 1973).
Após a execução protocolar dos hinos do Brasil e
da Bolívia, da salva de tiros de pólvora seca, da passagem em revista ao
pelotão de militares perfilados e da saudação dos dois chefes de estado no
aeroporto, a comitiva presidencial brasileira e boliviana sai em carro blindado
rumo ao Comando do VI Distrito Naval (Ladário),
onde os discursos, compromissos diplomáticos e almoço de recepção são
realizados, distantes dos clamores populares por liberdade, democracia e
justiça de seus respectivos conterrâneos privados dos direitos constitucionais
inalienáveis.
Sob o sol causticante de 10
horas da manhã, estende-se a coluna de alunos
corumbaenses e ladarenses uniformizados e a segurar bandeiras de papel do
Brasil e da Bolívia, alinhados desde a saída do Aeroporto Internacional de
Corumbá, pelas ruas Edu Rocha, Cabral, Frei Mariano e América e rumar à Avenida
Rio Branco com destino a Ladário, município criado por iniciativa do deputado
udenista corumbaense Wenceslau de Barros, trinta anos antes, para permitir
fazer um prefeito na cobiçada região à UDN (União
Democrática Nacional, partido que não conseguia ganhar eleições municipais em
Corumbá e presidenciais no Brasil desde a democratização, em 1946).
Como em toda ditadura, crianças e adolescentes das
camadas populares eram usados sem clemência para a demonstração de uma
popularidade artificial. Quatro anos antes, na ruidosa inauguração da Estação
Ferroviária Internacional de Corumbá, em maio de 1968, cena de igual magnitude
fora preparada. Outros os ditadores, que acabaram enviando seus respectivos
ministros dos Transportes para representá-los. Neste caso ao menos os alunos
ficaram protegidos pela generosa sombra da arrojada arquitetura de um dos
projetistas amaldiçoados pelo regime de 1964 por não comungar das ideias
fascistas: um discípulo do genial arquiteto Oscar Niemayer (comunista alinhado
a Luiz Carlos Prestes) foi
autor, anos antes, do projeto da imponente ferroviária internacional sem ter
havido como interromper as obras, já bastante adiantadas.
O encontro Médici-Banzer poderia ter sido
realizado em Brasília ou La Paz, mas o então todo-poderoso senador cuiabano
Filinto Strubing Müller, prestigiado líder da Arena e do Governo no Senado e
que depois acumulou a presidência nacional da Arena, do Senado e do Congresso
Nacional, atendendo aos apelos dos arenistas mato-grossenses angustiados com a
popularidade crescente do imprevisível e polêmico deputado estadual
oposicionista (‘pero no mucho’)
Cecílio de Jesus Gaeta (do MDB, Movimento Democrático Brasileiro),
precisavam dar provas efetivas à população de que tinham prestígio no poder.
Afinal, o governador de Mato Grosso era um corumbaense, José Manuel Fontanillas
Fragelli, o primeiro a ser indicado por uma lista sêxtupla pela Arena, com o
aval de Müller, e o secretário de Justiça era Salomão Amaral, irmão do médico
Moysés Amaral, dois membros recém-integrados à Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Na verdade, a Arena precisava se exibir
protagonista de um novo Brasil e o anúncio em Corumbá da lenda do polo
siderúrgico, da zona franca ‘y otras cositas más’ (de interesses
inconfessáveis, relacionados às duas ditaduras) viriam beneficiar os arenistas
locais nas eleições de 1974, como o deputado Carlos Ronald Albaneze e o senador
Paulino Lopes da Costa, eis que em 1965, em pleno momento de demonstração de
poder, a UDN conseguira sepultar o Tratado de Roboré, ao denunciá-lo, isto é,
não homologá-lo na Câmara Federal. O encontro de Médici com Banzer, portanto,
servira de demonstração de prestígio perante a incrédula sociedade corumbaense,
cujas conquistas das décadas anteriores estavam se esvaindo. O evento valeu
como avant première do projeto do
Consórcio Corumbaense de Comunicação (CCC), apoiado pelos membros do governo
cuiabano e avalizado e financiado por Filinto Müller, no afã de ‘embaçar’ a
reeleição de Gaeta em 1974.
A consigna dos novos donos do poder era “onde a
Arena vai mal, um jogo do [Campeonato] Nacional; onde a Arena vai bem, um jogo
também” -- o jogo, contudo, poderia ser jogado pelo ‘time’ dos cartolas da
política federal, e a conjuntura de Corumbá se transformara em fator de unidade
às forças políticas que travavam uma guerra intestina pelo controle da
situação, isto é, da Arena. A população corumbaense, entretanto, era dona de
uma autoestima que afrontava os novos donos do poder, até no futebol. Não era
casual o fato de um time proletário como o ABCR Marítimos chegar a tetracampeão
do Centro-Oeste brasileiro, a despeito das elites locais terem transformado o
Guarapuava, um dos barcos do Serviço de Navegação da Bacia do Prata, em
navio-prisão dos perseguidos pelo novo regime, em abril de 1964.
Para Gaeta, com sua verve singular, havia “remela
na pupila dos olhos [Corumbá] do ex-governador Pedro Pedrossian” -- eleito em
1965 pelo opositor Partido Social Democrático (PSD, de Juscelino Kubitschek,
Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, e em Mato Grosso, de Filinto Müller)
graças à votação consagradora do eleitorado corumbaense, de tradição
trabalhista --, que, sob pressão de ser cassado pela ‘heresia’ (sic) de ter derrotado Lúdio Martins
Coelho (da UDN, com todo o apoio do aparato militar) com os ‘votos subversivos’
dos ‘comunistas’, acabou aderindo à Arena, quando, no ano seguinte, apoiara o
candidato Breno Medeiros Guimarães, médico da Noroeste do Brasil (empresa da
qual Pedrossian tinha sido prestigiado engenheiro-chefe no governo deposto e
assessor do presidente da Rede Ferroviária Federal S/A), e que acabou eleito
graças a uma inusitada trama reduzida a desarranjo intestinal dos fiscais do
MDB, cujo candidato era o deputado estadual Rômulo do Amaral, franco favorito.
Esse fato foi confirmado anos depois pela justiça eleitoral, conforme pesquisa
do Professor Valmir Batista Corrêa, mas apenas vitória moral para o veterano
oposicionista, também eclipsado pela avalanche gaetista.
Depois do episódio da urna do Leque, Pedro
Pedrossian não mais repetiu em Corumbá a façanha eleitoral de 1965, embora em
1978, com o apoio ‘rebelde’ de Cecílio Gaeta (MDB, ‘pero no mucho’), tirara do
advogado Plínio Barbosa Martins a eleição de primeiro Senador pelo voto direto
do recém-criado Mato Grosso do Sul (ajudado, sobretudo, pelo instituto da
sublegenda, outro casuísmo do regime, ao lado do de senador biônico,
introduzido pelo ‘Pacote de Abril’, de 1977, quando o general Ernesto Geisel, ao
usar o AI-5, pôs em recesso o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal,
cassou os líderes do MDB e impôs uma série de emendas à carta constitucional da
Junta Militar de 1969, batizada de Emenda Constitucional Nº 1, para tornar a
Constituição de 1967 ainda mais autoritária).
Eis a gênese do Consórcio Corumbaense de
Comunicação (CCC), que, a despeito de surgir para atender interesses nada
ortodoxos dos arenistas mato-grossenses, se transformou em verdadeira escola de
Comunicação graças à generosidade do Jornalista Luiz Gonzaga Bezerra (trazido
pelo colega Daniel de Almeida Lopes, diretor-geral do CCC) e à plêiade de
Jornalistas e Comunicadores que generosamente ofereceu para Corumbá, Mato
Grosso e o Brasil, como Edson Moraes, Gino Rondon, Jonas de Lima, Juvenal Ávila
de Oliveira, Augusto Alexandrino dos Santos Malah, Ronaldo Bardawil, Luiz
Antônio Fidélis e Ademir Lobo.
Ahmad
Schabib Hany
Um comentário:
Scha, a mesma música que embalava os meninos do Brasil... também era utilizada para a venda das do turismo sexual... a ditadura fez estragos grandes demais!
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