TRIBUTO
PARA MARIA IMACULADA GOMES
Um ano e quatro meses depois de
sua eternização, perplexo com essa revelação, faço este tributo para a Amiga
que a Vida me presenteou e que me deu importantes lições para viver.
Estávamos em fevereiro de 1981, e logo que
embarquei na Ferroviária Internacional de Corumbá, depois de ter passado as
primeiras férias sem a minha Avó Guadalupe Ascimani de Hany (que havia se eternizado
em dezembro de 1980, durante o estado de sítio na Bolívia sob o general
narcotraficante Luis García Meza), deparei-me com duas até então colegas
comensais no pensionato da querida e saudosa Dona Raimunda, situado na Rua
Aquidauana, 66, centro de Campo Grande.
Maria Imaculada Gomes e Alice Gonçalves eram
vendedoras de uma das lojas das Casas Pernambucanas da capital, e também haviam
embarcado no emblemático trem noturno da Noroeste depois de passar o feriado de
carnaval na casa da Família de Imaculada, como sempre a chamamos. No início da
viagem fomos ao vagão-restaurante para passar o tempo até conseguir conciliar o
sono, no embalo e na percussão das rodas do trem em contato com os trilhos.
No pensionato de Dona Raimunda -
generosa senhora do Pará a mim apresentada pelo querido Donizete Cardoso,
colega na pensão de Dona Horiza e seu Hotel dos Fazendeiros -,
sempre que possível, trocávamos meia-dúzia de palavras enquanto aguardávamos a
vez de almoçar. Por conta disso, nos conhecíamos de nome, mas nunca havia
calhado de nos perguntarmos de onde éramos oriundos. Mato Grosso do Sul então
contava com apenas dois anos de existência institucional, e Campo Grande era
destino de migrantes de todo o Brasil, daí porque perguntar sobre a procedência
do interlocutor não era de bom tom.
Eu costumava comer ‘aquele’ bife a cavalo servido
no trem, mas Imaculada e Alice não quiseram pedir, o que me fez demover daquela
decisão. Alice propôs um brinde ao nosso inusitado encontro: pela primeira vez
ela vinha para o Pantanal e tanto Imaculada como eu jamais imaginávamos sermos
de Corumbá, ainda que ambos oriundos de outras localidades (ela era de Minas
Gerais e chegara ainda criança ao coração do Pantanal e da América do Sul). A
conversa regada a refrigerante fez efeito, e logo nos baixou o sono...
Voltamos para nosso vagão. As duas Amigas
encontraram suas poltronas intactas. Eu não: havia uma moça literalmente
apagada na minha. Envergonhado, não quis acordá-la e me encostei próximo do
espaço dos lavabos, ao final do vagão. Imaculada, observadora, veio ao meu
encontro para me convidar para ficar no recosto de sua poltrona, mas recusei agradecido.
Naquela época, mais que timidez, era fundamental reiterar o respeito pelas
Amigas, mas seu gesto me marcou profundamente, como depois lhe revelei.
De volta à rotina, em Campo Grande, voltamos a nos
encontrar no pensionato de Dona Raimunda. Na hora do almoço, como de hábito. Acompanhada
da Amiga inseparável, Alice, uma catarinense que adotara Campo Grande na
infância. Para não constranger Imaculada, pois eu passei a morar no pensionato,
costumávamos conversar no corredor externo até serem liberadas as vagas nas
longas mesas com os comensais, mais de cento e cinquenta só na hora do almoço.
Além de Alice, outros colegas da mesma loja vinham almoçar no pensionato e não
podíamos dar asas a maledicências de eventuais desafetos.
Em poucas semanas nos tornamos grandes Amigos, a
ponto de passarmos a trocar muitas confidências: tínhamos em comum a realização
pessoal e profissional como jovens ávidos de novos horizontes. Além dos
estudos, nossas conversas tratavam de desabafos, em especial no ambiente de
trabalho, onde chefes ou encarregados assediavam as colegas mais jovens, em sua
maioria solteiras. Tanto que acordamos, para esse efeito, que ela me
apresentaria como ‘namorado’.
Em Campo Grande ela morava com sua Irmã, já casada
e Mãe de um casal de Filhos. No Conjunto dos Ferroviários, Bairro São
Francisco. Por sinal, bem perto do Patronato São Francisco, onde estudava sua
Sobrinha mais velha e um ano antes eu havia dado aulas. A Irmã Maria Lucion,
querida e generosa Diretora do educandário, logo que nos viu, veio a nosso
encontro, e não escondeu a felicidade de ver a Família de Imaculada em minha
companhia. Parece que a sábia franciscana interpretava os olhares de jovens
como nós. Não demorou muito, nossa Amizade se intensificou.
Quando a apresentei ao querido e saudoso Amigo
Senhor Mário Albernaz, ele a convidou para participar, na medida do possível,
das atividades que realizávamos. O problema é que viajávamos muito para o
interior do estado por causa do projeto que desenvolvíamos então, que me levou
a trancar matrícula na FUCMT. Ela estava concluindo o ensino médio (segundo
grau, na época), na Escola Raul Sans de Matos (entre Vila Carvalho e São Bento).
Acompanhei-a algumas vezes às aulas, que coincidiam com as minhas, do lado
oposto da cidade. Ela também me acompanhou em algumas viagens curtas, como a Bandeirantes
e Jaraguari, tendo encantado todas as pessoas Amigas que a conheceram. Sua
discrição e meiguice chamavam a atenção das pessoas. Seu Juarez, de
Bandeirantes, que nos recebeu em sua casa, disse estar encantado com ela, por
sua maneira de ser.
No início de 1982, acredito que em abril, me
surpreendeu com sua decisão de retornar a Corumbá em caráter definitivo. Disse-me
de sua desistência de seu projeto de Campo Grande, agradecendo por nossa
Amizade (dessas com letra maiúscula), que disse levar para toda a Vida. Sempre
como Amigos, voltamos a nos ver, em breves encontros, e em um dos derradeiros
me fez o impactante convite, de que fosse um dos seus padrinhos de casamento,
pois decidira voltar com um ex-namorado que a pediu em casamento, a ser
celebrado na Primeira Igreja Batista de Corumbá.
Senti-me lisonjeado com o convite (logo naquela em
cuja escola, em 1969, me preparei para o exame de Admissão, isto é, para o
ingresso ao ginásio, e guardava lembranças muito caras, como o Pastor Cosmo
Gomes de Souza, a Professora Irlene Santos e seu Cunhado Roque Bareiro, meu
colega de turma), mas declinei dele. Confesso: não me sentia à altura de ser padrinho
de casamento, mesmo que a considerasse Amiga muito especial, pois eu nem era
casado. Ela compreendeu, como de hábito: conversando, tínhamos essa conexão, o
que fortalecia nossa Amizade.
Cinco anos depois, em 1987, encontramo-nos por
acaso, na quadra anterior ao Colégio Santa Teresa, em Corumbá. Emocionados,
pusemos nossa conversa em dia, da maneira mais telegráfica (hoje seria
tuiteriana), concluída com a chegada do Pastor Cosmo, que vinha ao encontro
dela. À época já era Mãe de um casal de Filhos. Passaram-se mais 16 anos, e nos
reencontramos na Cidade Dom Bosco, em 2004: ela estava indo ao encontro de seu
terceiro Filho, então de 9 anos, aluno do fundamental. Aproveitei a
oportunidade para lhe apresentar minha então futura Companheira, quando
visivelmente feliz nos desejou muita felicidade. Foi esse o nosso encontro
derradeiro.
Para minha surpresa, quatro anos depois, por meio
de meu agora saudoso Amigo Franz Wünder Arza, tomo conhecimento, num encontro
casual em um antigo supermercado local, que o Filho mais velho de Imaculada se
casara naquela semana com a Filha caçula dele. Era 2008. Visivelmente desconcertado,
ele se desculpara por não termos sido convidados para a celebração, ao se
lembrar da nossa, ocorrida três anos antes e para a qual ele fizera questão de
estar presente com a Família -
“para testemunhar o casório do solteirão”, como costumava caçoar comigo.
Por ironia, no mês em que Franz se eterniza sou impactado
também pela eternização da querida Imaculada, ocorrida um ano e quatro meses antes. Sua
discrição, meiguice e, sobretudo, seu legado de Amizade, compreensão e lealdade
ficarão na memória e no coração.
Até sempre, querida Imaculada, e obrigado por sua
Amizade, ter existido e me ensinado a viver como adulto!
Ahmad Schabib Hany
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