domingo, 24 de maio de 2020

Roberto Bueno: A besta do militarismo sobrevive da autoimagem dos “redentores” (VIOMUNDO)

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Roberto Bueno: A besta do militarismo sobrevive da autoimagem dos “redentores”


24/05/2020 - 17h19

MILITARISMO OU CIVILIZAÇÃO
por Roberto Bueno*
Este artigo antepõe a ideia de civilização à de militarismo, apresenta-os como antípodas irreconciliáveis.
Entendemos aqui que há uma oposição ao que classificamos como processo civilizatório entendido em sua dimensão qualitativa a um processo de organização da sociedade de corte militar, aqui qualificado como “militarismo” em sua versão radicalizada, a saber, que não se trata tão somente da (indispensável) existência de militares em uma sociedade, mas da predominância deles em uma sociedade a ponto de tornar-se determinante, e determinador, da forma como as relações sociais ocorrem e como as instituições se organizam.
A civilização pauta as relações sociais pela submissão às normas jurídicas criadas pelo conjunto da população, enquanto o militarismo pauta a sua visão de mundo e as relações sociais pela imposição da força, cujas armas estão em suas mãos.
A civilização pauta a sua abordagem das relações sociais pela priorização da atenção às demandas sociais, enquanto o militarismo pauta as suas ações pela determinação das políticas pela decisão de um restrito grupo pretensamente iluminado, expressando assim o seu elitismo em cuja essência reside, necessariamente, uma concepção discriminatória da vida e do homem.
A civilização pauta a sua abordagem das relações sociais por sua concepção horizontal, enquanto o militarismo as concebe segundo uma estrutura vertical e profundamente hierárquica da organização social.
Sob a égide do militarismo, é o militar tomado como “guardião” da organização social, enquanto que a mesma posição é ocupada pela população no que qualificamos como processo civilizatório.
O militarismo pretende estar habitado por indivíduos que mantém autoimagem de redentores.
A sociedade civil é débil e seus indivíduos viciosos (quando não viciados), e eles, virtuosos, genuínos Messias, que devem ocupar espaço para impor-se em ordem social que avaliam ser caótica, caos que, não raro, instauram e agravam para legitimar a sua própria ascensão ao poder e opressiva intervenção.
É notável como apenas os néscios (fardados com muitas ou poucas estrelas) entregam-se ao devaneio de que dispõe de tão elevadas condições a ponto de desfrutar das qualidades de um salvador da pátria, cômicos personagens que se deixam iludir pelo valor de tantas falsas estrelas, não fossem trágicas e sanguinárias as consequências.
Sob a ordem civilizatória a opressão é evitada, na ordem militarista a tendência aos abusos é a tônica, enquanto as próprias determinações legais não subsistem senão enquanto mera formalidade, posto que transgredidas conforme a conveniência indique.
O processo civilizatório organiza o mundo sob a lógica do diálogo, enquanto o militarismo semeia o ódio e o medo.
O processo civilizatório, eminentemente civil, articula as diferenças sob a égide da tolerância e da submissão coletiva a patamares mínimos de respeito à dignidade humana, enquanto o militarismo coordena as suas ações pela lógica da ordem e do comando indiscutíveis.
Enquanto o processo civilizatório acredita ser possível articular condições para o convívio pacífico entre os diferentes, enquanto o militarismo aspira eliminar a diferença e impor à força a homogeneidade.
No mundo em que triunfa a força e ela é o fator supostamente legitimador das ações “políticas” do poder estabelecido, subjaz a aplicação à mancheia da força bruta sem limites.
A aplicação da força sem limites transcende o conceito de Estado democrático de direito e resta adstrito tão somente a um Estado coercitivo.
A ordem em que a liberdade humana é possível é incompatível com a ordem militarista, enquanto todas as variações da ordem escravocrata não o são.
A civilização dignifica e protege a vida, enquanto o militarismo percorre a via inversa.
A defesa da vida é o elemento superior do processo civilizatório, o que o diferencia de todos os demais momentos históricos e suas formas de organização.
A defesa da vida significa abranger as suas diversas dimensões, da economia da vida à economia sanitária passando pela economia da segurança.
Sob o militarismo a cadência da organização social é imposta pelo aterrador som dos passos dos coturnos.
O processo civilizatório entroniza a ordem legal como espelho da vontade política popular, enquanto o militarismo adota o caminho inverso, de desprezo pela vontade política e da organização da justiça exclusivamente a partir de suas próprias determinações.
Toga independente em ordem democrática soberana ou farda autocrática dotada de poderes ilimitados sobre todos os corpos?
O processo civilizatório subjuga todos à mesma igualdade perante a legislação, enquanto o militarismo subjuga o Poder Judiciário e as suas decisões.
A inversão desta lógica, quer seja ela abertamente declarada ou não, já configura a instauração de um regime autoritário.
Para o militarismo, sob o pretexto da aplicação do conceito de Razão de Estado (Raison d’état), resta pavimentada a trilha para o acobertamento da violência crua em face que o Poder Judiciário foi neutralizado, enquanto em seu antípoda esta perigosa zona cinzenta é articulada para defender o Estado.
O processo civilizatório é orientado pelo Iluminismo que projeta a autonomia humana e a orientação pela razão e esta como base da institucionalidade, enquanto o militarismo despreza a autonomia humana e realiza o elogio da subjugação da razão à hierarquia sem par, biombo para ocultar os privilégios de classe.
O povo atrapalha em face da demanda de inclusão social, ligeiramente classificada como comunismo cujo extermínio passa a ser justificado.
O processo civilizatório está habitado por cidadãos que detém a supremacia na organização social em que a figura do soldado intervém em posição de anonimato como fiador da segurança externa em defesa dos interesses da sociedade que paga o seu soldo, enquanto na ordem militarista ocupa a posição de preeminência e os cidadãos subordinados e subjugados ao reino da força das armas.
A tortura é a última estação da linha de deterioração do Estado.
O militarismo quer dar continuidade à guerra por outros meios, autoritários e tortura, enquanto o processo civilizatório suspende estes meios e institui a política como desconexão da violência.
O processo civilizatório persegue, processa e julga a ofensa física, o militarismo cala, silencia e premia torturadores.
No Brasil de hoje o militarismo profana cemitérios e zomba dos torturados, violados e assassinados, mas também renova a infâmia ao apoiar a morte de outros milhares de brasileiros(as), ao parecer, já não contabilizando onde encontrarão espaço para guardar tantos cadáveres em suas fardas e coturnos todavia enlameados da última intervenção violenta praticada.
O processo civilizatório supõe as instituições militares, mas é antípoda do militarismo enquanto concepção conceitualmente estruturada para o domínio dos organismos do Estado, sobre quem pretende exercer o controle completo em todas as suas dimensões.
O militarismo se exclui da ordem legal que vincula a todos os cidadãos, situa-se, paradoxalmente, dentro e fora dela, e assim instaura a figura do soberano cuja posição para além do ordenamento jurídico permite que o suspenda segundo o seu livre e autoritário arbítrio.
É este o desenho perfeito de uma ordem constitucional inexistente, posto que não abrange o segmento do poder supremo de um país, sendo precisamente esta a razão que deu origem às Constituições, vale insistir, limitar o poder soberano, e ao não fazê-lo, portanto, ela perde a sua essência e razão de ser.
Civilização ou barbárie militarista?
A meta da instituição militar democraticamente estruturada é servir fielmente à Constituição democrática, enquanto que o militarismo adota como norte orientador a implementação do poder militar patológico onde o correr do sangue do outro é regra, e o diálogo com ele, raríssima exceção.
O militarismo é o berço da besta, cuja voracidade não se contenta em matar, precisando ainda consumir e triturar os corpos de suas vítimas.
Tirano fardado ou poder civil? Corrupção oculta pela força ou combate aberto, público, institucional e realizado nos limites da legalidade democrática contra os desmandos típicos da natureza humana?
Tirania do coturno ou diálogo entre trajes civis? Rechtsstaat ou Führerprinzip? Ordem civil ou ordem unida?
Tribunais julgando conforme a legislação democrática ou tribunais de exceção condenando segundo o arbítrio do ditador de plantão?
Direitos e liberdades ou ditadura e tortura? A América Latina e o Brasil quer ser ágora ou caserna?
A encruzilhada é de que os militares estejam sob indiscutível e absoluto controle civil ou, então, estamos a tratar da besta militarista.
Determinação de políticas públicas ou falsificação de desenho de inimigos? Governo da Constituição ou governo das baionetas?
São estes os termos em que se põe a irreconciliável oposição entre civilização e militarismo, aguda divisa histórica que se impõe ao Brasil: civilização ou barbárie?
A pátria, a Igreja, a família, a propriedade e o próprio nome de Deus são todos conspurcados quando encharcados pelo sangue derramado das milhares de vítimas do militarismo.
Eu olho para os milhares de trucidados no passado e para os outros milhares assassinados pela insana política no presente e não posso mais do que afirmar meu compromisso político com a defesa da vida e apontar o dedo e dizer ao poder: sim, senhores, a todos vocês que detém armas e as usaram, eu, desarmado do fuzil mas equipado de honorabilidade e dignidade, os acuso, a todos, pelos milhares de corpos trucidados, pelos milhares de litros de sangue e odor de morte, provocados ontem e renovados hoje!
A vergonha os encobre, a mancha das mortes os encolhe.
*Roberto Bueno é Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Estágio doutoral na Faculdade de Direito da UAM/Madrid. Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

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