Na vida real, Sinhozinho teve mais dignidade que a viúva Porcina. Por Charles Nisz
Repercute na imprensa e nas redes a entrevista de Regina Duarte, secretária da Cultura do governo Bolsonaro.
Numa semana na qual a cultura brasileira perdeu Aldir Blanc e Flávio Migliaccio, este último por suicídio, a atuação de Regina foi coroada com a trágica entrevista ao vivo na CNN.
Despreparada, achando que estava no Projac, onde tudo é combinado, Regina negou-se a comentar um vídeo em que Maitê Proença fala sobre sua pasta não ter divulgado sequer uma nota de pesar sobre as mortes de Aldir e Migliaccio.
A ex-atriz disse que tinha outras coisas para comentar além de mortes.
Daniela Lima, apresentadora, tentou educadamente argumentar dizendo que o Brasil não estava desenterrando mortos, mas sim “enterrando outras 610 pessoas”.
Momentos antes, Regina perguntou se cabia à Secretária de Cultura “ser um registro de óbitos”.
Num texto de 100 anos atrás, Sigmund Freud falava da importância da política e como ninguém pode personificar o governo.
O governante, segundo o psicanalista, é aquele que renuncia às suas pulsões em nome do pacto civilizatório.
Ao dizer que o governo não pode desenterrar mortos, Regina contraria Freud e mostra a visão de que ELA representa a Cultura.
Numa visão mais ampla, dá a entender que Bolsonaro personifica o governo – quando, na realidade, sua responsabilidade é governar pelos 57 milhões de votos recebidos em 2018.
Não podemos cair na vala comum de chamar a performance de Regina de “surto”, “loucura” ou sequer aventar que ela estava sob efeito de psicotrópicos.
É baixo, machista e misógino – tudo aquilo que devemos combater.
Se é na estética que se revela a ética, Regina estava ali como a mais bem expressa voz do capitão.
Durante uma pandemia global, com 600 mortes diárias no Brasil, Regina minimizou as mortes da ditadura ao comparar o regime militar brasileiro com Stálin e Hitler.
“Na história da humanidade, sempre houve ditaduras e torturas”, disse.
Se Regina foi a namoradinha do Brasil, está na hora de romper essa relação abusiva.
Postura diferente teve Lima Duarte – par romântico de Regina em Roque Santeiro, novela de maior audiência na história da TV brasileira, interpretando Sinhozinho Malta.
Assim como Maitê, Lima sempre criticou o PT e apoiou Bolsonaro. Mas teve o bom senso e a dignidade de rever sua posição.
Em vídeo, o ator falou sobre a morte do amigo, encontrado morto nesta semana.
“Eu te entendo, Migliaccio, porque eu, como você, sou do Teatro de Arena, com Paulo José, Chico de Assis, com o [Gianfrancesco] Guarnieri. Foi lá que aprendemos com o [Augusto] Boal que era preciso, era urgente que se pusesse o brasileiro em cena”.
Lembrou de momentos difíceis enfrentados pelos atores durante a ditadura militar:
“Agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68, agora, 56 anos depois, quando eles promovem a devastação dos velhos, não podemos mais. Eu não tive a coragem que você teve”.
Arrematou: “Os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”.
Trata-se de uma referência a uma fala de um personagem, Pedro Jáqueras, interpretado por ele na peça “Os Fuzis da Senhora Carrar” (1937), de Bertolt Brecht.
Se na novela, Porcina era mais carismática que Sinhozinho Malta, na vida real, o coronel mostrou muito mais dignidade.
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