Último artigo do Jornalista Nirlando Beirão, compartilhado da revista semanal de informação CartaCapital, versão digital disponível pelo link <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-volta-do-maldito-livrinho/>.
A volta do maldito livrinho
O Almanaque do Exército pode decifrar o que pensam os generais que acobertam Bolsonaro? Leia o último texto de Nirlando Beirão
Livro é uma bênção e um perigo. Cada religião tem o livro que se diz sagrado, em torno do qual agrega seus fiéis. Países, os democráticos, bem entendido, buscam num livrinho chamado Constituição um código básico para pautar a vida em sociedade e conferir uma identidade coerente à cidadania. É tradição que vem de longe. Em 1215, a Carta Magna impôs uma série de limitações ao poder até então absoluto do rei João, na Inglaterra – o qual se resignou a assinar o documento imposto pela baixa nobreza e negociado pelo papa em pessoa.
Situação nefanda acontece quando uma nação troca seu livrinho maior, a Constituição, por um manual de fé como guia da vida civil, pois, seja a Bíblia, a Torá ou o Corão, cada um traz em si a autocrática pretensão de ser o dono da verdade, a única e aceitável verdade. Outra circunstância em que os regulamentos democráticos são instantaneamente escanteados é quando um país sofre uma recaída autoritária. A Constituição é de imediato jogada na lixeira.
Foi o que sucedeu no Brasil em 1964. A ditadura militar, implantada com o suporte do empresariado, os jornalões e o governo dos Estados Unidos, rasgou o livrinho de 1947 e passou a gerir um país sem lei. A informação era escassa. De repente, outro livrinho bem mais insosso, bem mais reservado, começou a passar de mão em mão entre editores e repórteres de política e, logo, entre os sofridos exegetas da conjuntura, ávidos por adivinhar o rumo que o regime tomaria.
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O oráculo era o Almanaque do Exército, publicação que o Departamento Geral do Pessoal do Ministério atualizava todo ano. Consistia nas biografias de todo o oficialato da ativa, de capitão a general, registro tanto mais minucioso quanto mais alto estivesse o biografado na hierarquia. Algumas edições mais robustas chegaram a ultrapassar 700 páginas. Assim, é certo que tenha sido mencionado em algum momento um capitão formado nas Agulhas Negras, Jair Messias Bolsonaro, vulgo Cavalão, que viria a ser expulso da corporação, em 1988, por insubordinação e terrorismo.
O eleitorado iria, décadas depois, encantar-se com tais atributos do renegado do quartel, além de outros, posteriormente exibidos, a estupidez, a covardia, o preconceito, e viu nele o perfil ideal de um presidente da República.
Desde a antiguidade greco-romana oráculos apresentam seus vaticínios de forma alegórica e cabe ao consulente a decifração. As chaves do Almanaque eram ainda menos autoexplicativas, embora as angústias do esclarecimento fossem ainda mais urgentes naqueles nebulosos anos 1970. Requeriam-se artimanhas mentais para profetizar o Brasil que iria emergir da balbúrdia em que a ditadura estava metida. Militares tomam o poder sob o pretexto de impor a lei e a ordem. Pisoteiam a lei e promovem a desordem. Mal-estar pretoriano, ambições pessoais, facções ideológicas azedaram os bastidores dos governos Médici e Geisel, assim como seria sob Figueiredo.
Quem seria aquele general Albuquerque Lima, de tanto prestígio na tropa, líder da ala nacionalista, defensor de um regime severo, que esteve tantas vezes próximo do poder e nunca chegou lá? Por que foi o general Euler Bentes o militar escolhido pelo MDB para disputar a Presidência no Colégio Eleitoral, em 1978? Corram para o Almanaque e consultem o currículo do dissidente. Quais eram os oficiais da ativa, listados no vade-mécum da corporação, que apoiavam o então ministro do Exército, Sylvio Frota, contra a abertura “lenta, gradual e segura” proposta por Geisel, que acabaria por demitir Frota e dispersar seu batalhão?
Naturalmente, os intrincados enigmas segredados no interior da caserna podiam suscitar conjecturas delirantes por parte de quem estava do lado de fora. Delírio era especialidade de Glauber Rocha, então não chega a ser surpreendente que o cineasta fosse habitué na consulta ao Almanaque do Exército. Glauber era dono de uma personalidade messiânica que via sentido em descobrir, na impessoalidade daquelas biografias burocráticas, a chama de um salvador da pátria.
O diretor de Terra em Transe voltara em 1977 do exílio – quando dirigiu o alternativo Der Leone Have Sept Cabeças – e logo, com uma declaração explosiva, expôs sua convicção de que a transição de volta à democracia dependeria de mentalidades arejadas do estamento fardado. A frase “Golbery é o gênio da raça” apunhalou a oposição, certa de que o regime de exceção viria abaixo graças à ação da sociedade civil organizada.
O Almanaque do Exército, na ditadura, podia ser manuseado e citado, como fazia Glauber, sem que o cidadão fosse torturado no DOI-Codi. Na atual democracia entre aspas, o documento esconde-se em versão digital e exige licença especial, login e senha para ser acessado. Se o Exército é menos transparente, o consolo é que os generais se expõem mais sob as luzes da ribalta.
O general Braga Netto, chefe do Gabinete e presidente em exercício, continua sendo, ele sim, um mistério. Ele é um mineirinho quietinho. Já o vice, Hamilton Mourão, fã de uma quartelada, e o general Heleno, ex-ajudante de ordens do brucutu Sylvio Frota, dispensam prontuários. Os dois têm horror à democracia.
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