quarta-feira, 13 de março de 2024

AGÊNCIA MATO-GROSSENSE DE IMPRENSA, INICIATIVA PIONEIRA DO CCC

Agência Mato-grossense de Imprensa, iniciativa pioneira do CCC

Entre as diversas frentes em que o Consórcio Corumbaense de Comunicação (CCC) se envolveu, por certo a mais ousada foi a Agência Mato-grossense de Imprensa (AMI), para a qual Daniel Lopes se dedicara com especial afinco.

Juvenal Ávila de Oliveira, uma das revelações do Consórcio Corumbaense de Comunicação (CCC), foi o ‘prata da casa’ que chegou com a novidade: uma lauda com o timbre da AMI, Agência Mato-grossense de Imprensa. Mas como periodicamente Daniel de Almeida Lopes, diretor-geral do CCC, trazia novidades de ‘outro mundo’, a boa-nova passou despercebida para os radialistas e jornalistas abrigados no imponente prédio com linhas entrelaçadas de art nouveau e neoclássico em que a Rádio Difusora Mato-grossense S/A, prefixo XYA-2, 1490 KHz, e os demais meios estavam sediados, a 80 metros do Jardim Independência, no coração do Pantanal e da América do Sul.

É que o sucesso como jovem galã do rádio mato-grossense no concurso de Miss Mato Grosso em Aquidauana lhe proporcionou mais uma atividade dentro das iniciativas do CCC daquele Brasil superlativo, do ‘ame-o ou deixe-o’, do ‘ninguém segura este país’, do ‘é feito por nós’. Tudo era grande, que os anedotários logo arranjaram um causo protagonizado por uma personagem argentina numa farmácia paulistana. O balconista, todo ufanista, falando ao cliente identificado como argentino, proclama: “O Brasil tem a maior ponte do mundo [na época, a Rio-Niterói], a maior hidrelétrica do mundo [Itaipu Binacional], o maior estádio de futebol do mundo [Maracanã]...” Diante disso, o argentino assustado, anuncia ao balconista da farmácia sua desistência na compra, pois queria um supositório para seu filho, ainda bebê, com temor de ser ‘o maior supositório do mundo’.

Apadrinhado e avalizado por ninguém menos que Filinto Müller, o homem forte do regime de 1964 (presidente e líder da Arena e do governo do general Garrastazu Médici no Senado) e, mais tarde, presidente do Senado e do Congresso Nacional), até ter encontrado a morte no acidente com a aeronave da Varig nas imediações de Paris, rumo ao Aeroporto Internacional de Orly, o CCC nascera de uma ideia até bem intencionada do advogado e pecuarista José Feliciano Baptista Neto, então sócio e diretor da Folha da Tarde e da Rádio Difusora Mato-grossense, ao lado do médico e professor Salomão Baruki, ex-vereador do PSD, partido de Juscelino Kubitscheck de Oliveira e Tancredo Neves (e em Mato Grosso, de Filinto Müller, até então aliado incondicional de Getúlio Vargas e do PTB).

A megalomania com que o CCC acabou hipertrofiado foi fruto da obsessão de Müller por demonstrar prestígio e poder junto aos seus correligionários logo no estado natal, onde não conseguira por duas vezes se eleger governador, a despeito de todo o prestígio junto ao Palácio do Catete, sede do governo federal até a inauguração de Brasília por Juscelino Kubitscheck de Oliveira, alvo do golpismo doentio da caserna fascista desde os tempos do Brasil Império. O que permitiu a Daniel Lopes empreender por todas as frentes em seu projeto político-midiático nos anos de chumbo.

Leal colega e amigo, o Jornalista Luiz Gonzaga Bezerra, ex-repórter especial do Jornal do Brasil, era a referência jornalística para o ex-correspondente de O Globo, então medíocre vespertino que não se constrangera ser reles porta-voz oficioso do regime de 1964, razão pela qual virou esse grande grupo de comunicação que acabou por desbancar a Rede Tupi de Rádio e Televisão (de Assis Chateaubriant, o emblemático Chatô), os Diários e Emissoras Associados espalhados pelo Brasil (inclusive a pioneira Agência Nacional dos Diários Associados, ANDA), a O Cruzeiro (por mais de 50 anos a maior revista semanal ilustrada), e décadas depois a Rede Manchete (de Adolfo Bloch, imigrante judeu russo que implantou a indústria de tintas gráficas no país e depois ousou competir com Roberto Marinho na televisão), a Bloch Editores e a Manchete (por décadas a segunda maior revista semanal ilustrada), a Editora Abril (de Victor Civita, o maior editor de revistas, fascículos e livros da América Latina, que um dia pretendeu possuir a sua sonhada TV Abril, mas foi sabotado pelo regime de 1964 e depois pelos seus ex-apoiadores, ligados aos Marinho).

Gonzaga, repórter ético e de grande humildade e talento, não se entusiasmara com a ideia da Agência Mato-grossense de Notícias (AMI), pois via a superexploração de seus colegas de trabalho na ânsia de conseguirem ver suas matérias em outras localidades, em especial emissoras de rádio de todo o estado de Mato Grosso, eis que eram poucas as que dispunham de jornal impresso, sequer semanários. Até porque o número de analfabetos no Brasil era também superlativo, apesar da propaganda do Mobral nos anos de chumbo. Mesmo assim, acabou fazendo mais essa concessão ao parceiro de aventura: depois do diretor-geral do CCC, era ele, como redator-chefe do consórcio, que acabava por dirigir a AMI, para ele um investimento perigoso, pois todo ele era financiado por Müller.

Filinto Müller era declaradamente contrário ao movimento divisionista comandado pelos arenistas do sul de Mato Grosso, mas, hábil político, fingia não se incomodar, até para auferir dividendos políticos em seu estado natal. Não por acaso, designou seu sobrinho Gastão Müller para cacique político de Três Lagoas e o aparelhou para se projetar igual a ele, tanto que conseguiu se eleger senador por Mato Grosso com base eleitoral em Três Lagoas, onde dispunha de um veículo, o Jornal do Povo, porta-voz das ideias direitistas da família Müller em pleno regime de exceção.

Enquanto para Daniel Lopes se tratava de mais um produto do pretensioso CCC, para Müller era a rede de controle político com que mantinha sob seus olhares de lince as articulações dos correligionários, ‘pero no mucho’, que por trás faziam seus conchavos para conseguir de qualquer maneira a divisão do velho Mato Grosso uno, muito caro para o veterano senador e seus projetos políticos pessoais. Bastou perder a vida em Orly em julho de 1973 para que seus ‘consternados’ correligionários corressem até Brasília para desengavetar o projeto de criação do estado rebelde do sul dos anos 1930, chamado de Território de Ponta Porã, e em menos de cinco anos, já sob a gestão dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, se tornasse realidade.

A AMI foi concebida como uma empresa de distribuição de notícias jornalísticas de caráter privado, mas com largo financiamento público, como tudo que soía funcionar durante os anos de chumbo: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei.” A equipe original foi a do CCC, em Corumbá, e depois foi ganhando capilaridade, como uma rede de colaboradores, em todo o sul de Mato Grosso. Como o predomínio, então, era de rádios AM, muitas notícias eram gravadas pelos locutores das emissoras afiliadas à AMI e enviadas às destinatárias por meio da ferrovia que atravessava o estado, de oeste a leste e, pelo ramal de Ponta Porã, ao sul extremo, fronteira com o Paraguai, por malotes devidamente identificados. Na época o uso de telex, teletipo e belinógrafo (como da Agence France Presse, AFP) era exclusivo da central, localizada no mesmo prédio do CCC, em Corumbá.

A produção de texto era basicamente feita em Corumbá pelo pessoal da redação da Folha da Tarde, com destaque ao talentoso e incansável Jornalista-revelação Edson Moraes, que chegara a viajar a Campo Grande como enviado especial para cobrir a elucidação do caso do sequestro de Ludinho, filho adotivo da proeminência arenista Lúdio Coelho por pessoas próximas à sua família, um dos episódios jornalísticos de maior repercussão, ao lado do assassinato de Levi Campanhã, em que assessores do Chefe da Casa Civil do governador Garcia Neto estavam sendo investigados. De fato, a AMI acabou funcionando como vitrine para os talentosos Jornalistas formados por Gonzaga Bezerra no CCC.

Juvenal Ávila, o primeiro correspondente da AMI para uma rádio aquidauanense, conta que ainda era muito usado o sistema de captação de notícias pelo rádio. A própria Rádio Difusora Mato-grossense, sede do CCC, antes da constituição plena do projeto apadrinhado por Müller, tinha o emblemático e insubstituível Pedro ‘Papito’ Gonçalves de Queiroz que fazia a ‘escutapress’, isto é, gravava as notícias internacionais, nacionais, regionais e locais em gravador de fita-cassete para depois redigi-las ao seu estilo para a produção dos noticiários da emissora. E em tempos pretéritos, a velha e conhecida ‘tesourapress’, até pouco tempo usada em larga escala nos velhos jornalões da capital, que até hoje não perderam o ranço de que a ‘melhor agência de notícias é o copia-cola’, e que se danem os direitos autorais e o trabalho dos Jornalistas profissionais.

Com o leilão do prédio e da concessão da Pioneira Rádio Difusora Mato-grossense S/A e do título da Folha da Tarde (este adquirido pela Empresa Folha da Manhã S/A, carro-chefe do Grupo Folha, da Alameda Barão de Limeira, 25, Campos Elísios, São Paulo), muitos documentos foram extraviados, para prejuízo da memória coletiva corumbaense. Antes da demolição do imponente prédio da emissora, grande quantidade de discos, documentos e jornais e revistas em português e espanhol foi descartada na calçada. Alguns aficionados da cultura e da memória ‘garimparam’ verdadeiras relíquias, mas a maioria do acervo de décadas foi literalmente jogado no lixo.

Além do pioneirismo, a AMI se constituiu em verdadeiro aríete das demandas represadas das populações localizadas no sul de Mato Grosso quando o poderoso senador Filinto Müller sai do cenário político e no vácuo novas lideranças arenistas granjeiam apoio para seus respectivos projetos pessoais, sob pretexto de apoiar um regime caquético, e receber as benesses do poder em troca de três senadores pró-regime de 1964 e quatro deputados federais apoiadores do Planalto (na verdade, cinco deputados federais, pois havia o médico adesista Walter de Castro que desavergonhadamente votava com a Arena, a despeito da pressão exercida pela direção regional do MDB sul-mato-grossense).

Herança da ditadura, Mato Grosso do Sul -- que se resume a Campo Grande, a praticar a mesma conduta excludente que acusava a Cuiabá --, tem sido verdadeira mordaça para a afirmação do protagonismo cidadão em todo o território do estado nascido para ser modelo, e o sufocamento das atividades jornalísticas propriamente ditas é um processo crescente e irreversível. Todo governante tende a repetir os cacoetes do Faraó de Miranda (Pedro Pedrossian) e sua Secom de triste memória, em prejuízo do Jornalismo profissional. A falência da AMI não decorreu do estrangulamento de um projeto fadado ao fracasso, por ser um projeto de poder arbitrário, mas pelos acertos involuntariamente realizados pelos talentosos profissionais, o que não interessa ao establishment, seja em tempos de arbítrio ou de Estado Democrático de Direito.

Ahmad Schabib Hany

Nenhum comentário: