Nelsão,
testemunha de seu tempo
Nelson Fernandes, barbeiro
filho de barbeiro, não só lutou pela sua categoria como exerceu sua cidadania
como testemunha ocular de seu tempo.
Todo corumbaense com mais de 40 anos conheceu o
emblemático Salão Imperial em seus apoteóticos tempos, à rua Delamare, bem próximo
da gloriosa Rádio Clube de Corumbá, do saudoso Café Ouro Verde (do típico mate gelado) e do concorrido e longevo
bar O Corujão, além do inesquecível MultiCoffee que marcou época na década
de 1990. Diferentemente de hoje, aquela quadra era o centro dos acontecimentos
jornalísticos da cidade, como fora em décadas anteriores a quadra da rua Treze
de Junho ao lado da capela do agora saudoso GENIC, onde à época inovadora
Pioneira, a Rádio Difusora Mato-grossense S/A, também atraía protagonistas,
testemunhas e consumidores da notícia em tempo real.
Foi nesse ambiente que o então jovem cabeleireiro Nelson
Fernandes -- que fazia questão de ser reconhecido como ‘barbeiro’, profissão
que herdou do pai em seu paradigmático Salão Imperial -- se tornou profissional
desenvolto e, sobretudo, cidadão atuante não só na defesa da categoria (chegou
a ser vice-presidente da Associação dos Cabelereiros Profissionais de Mato
Grosso do Sul, quando a querida Amiga Elígia Ada Meza, murtinhense com orgulho,
foi presidente, em fins da década de 1990), como no acompanhamento dos
desdobramentos políticos locais e regionais.
Como bem o Professor Valmir Corrêa o definiu quando
militava na política corumbaense: “O Nelsão não faz só o cabelo, ele colhe o
depoimento da gente também...” Embora o conhecesse do tempo em que a saudosa
Doutora Laurita Anache generosamente me emprestava o telex da emissora que
dirigia para transmitir meu material, foi no convívio com o saudoso Márcio
Nunes Pereira, diretor do aguerrido Diário
de Corumbá, que nos aproximamos, até porque o Nelsão não só era Amigo do
Márcio, como uma de suas mais confiáveis fontes, vez que transitava em todos os
meios políticos.
Certa feita, tomei a liberdade de lhe fazer uma
pergunta sobre essa longeva relação, e o agora saudoso Nelsão, enigmático,
saiu-se pela tangente: amizade é amizade, o Márcio era merecedor das notícias
mais fidedignas, tanto que nunca perdeu um processo de seus desafetos, embora o
Doutor Joilce Viegas de Araújo fosse um grande causídico. Pois é, nem sim, nem
não. Nada a declarar. Esse era o grande Nelsão, grande de estatura, de
dignidade e de coração.
Quando o querido Chicão não pôde mais acolher o
saudoso Professor e Amigo Augusto Alexandrino dos Santos, o querido Malah, em
sua sala, porque precisou vendê-la para procurar novos horizontes profissionais
no início da década passada, foi o Nelsão que o acolheu, fazendo de sua sala
sua morada derradeira em Corumbá, é que depois precisou se mudar para Campo
Grande e tratar de sua saúde, e pouco tempo depois se eternizou. Aliás, o mesmo
problema que abateu o Nelsão, o diabetes, essa enfermidade silenciosa que
castiga seus portadores.
Nelsão foi a verdadeira testemunha ocular da
história nas últimas décadas. Mas não se limitara a ‘assistir de camarote’, e
muitas vezes protagonizou iniciativas históricas, que, como ninguém, o querido
Amigo e Jornalista Adolfo Rondon Gamarra sabe narrar em detalhes. Uma delas,
reveladas pelo Malah, é aquela em que os dois se viram envolvidos em processo
judicial por um gestor municipal que havia se ofendido por uma charge do
inesquecível artista gráfico e o Nelsão se encarregara de organizar um bloco
informal nos dias de carnaval. Ainda que o bloco não conseguira concluir sua peregrinação
cívica durante o reinado de Momo, o processo judicial continuara, para surpresa
dos dois. Mas o fato de não terem grafado o nome correto dos acusados, acabaram
não precisando contratar um advogado para defendê-los.
É claro que Nelsão nunca foi uma unanimidade. Para
muitos ele era o ‘língua preta’, mas nem por isso ele se acanhava, declinava de
sua vocação cidadã. Quando Malah integrava um projeto editorial, dez anos
atrás, ele, solidário, recorreu aos mais diferentes amigos seus para tentar
tornar exequível o projeto de seu Amigo. Mas a Vida foi breve para o Malah, e
acabou desistindo da iniciativa. É que para ele, Amizade é Amizade, e não era
qualquer um a merecer seu esforço, seu apoio. Como também ele se julgava no
direito de criticar quem merecesse sua indignação, sua ira santa.
Corumbá não mais será a mesma sem a sua percepção
apurada. Com ele se encerra uma plêiade de cidadãos de diferentes profissões,
classes sociais e posições políticas que priorizaram o zelo, o amor pela
Corumbá de todos os clamores, todos os povos, sem se submeter à (má) vontade
dos mandarins de plantão. Por maiores as diferenças de opiniões políticas com o
Nelsão, é inegável sua coragem e lealdade por aqueles que ele admirava ou com
quem se identificava. Coisa para poucos, pouquíssimos, pelo que será lembrado
sempre.
Hoje Nelsão já se encontrou com o Malah, o Farid
Yunes, o Márcio Pereira, o Joilce Araújo, o Armandinho Anache, o José Carlos
Cataldi e, obviamente, seu querido Pai. Por certo nesse reencontro, além da
festa, estarão a comentar os atuais fatos e factoides (hodiernamente fakenews) nestes bizarros tempos em que
os sem graça e pobres de mentes teimam em levar este país-continente à Idade
Média, quando o negacionismo e obscurantismo calavam as vozes dissonantes,
porque iluminadas pelos raios de sol, este, sim, astro rei que não se submete a
qualquer tipo de tirania.
Até sempre, Nelsão! Fraternal abraço a todos os
Amigos que está a reencontrar, e obrigado pelas inúmeras lições de lealdade e
coragem por aqueles que Você julgou merecedores de sua estima sincera e
vibrante.
Ahmad
Schabib Hany
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