sexta-feira, 29 de abril de 2022

NELSÃO, TESTEMUNHA DE SEU TEMPO

Nelsão, testemunha de seu tempo

Nelson Fernandes, barbeiro filho de barbeiro, não só lutou pela sua categoria como exerceu sua cidadania como testemunha ocular de seu tempo.

Todo corumbaense com mais de 40 anos conheceu o emblemático Salão Imperial em seus apoteóticos tempos, à rua Delamare, bem próximo da gloriosa Rádio Clube de Corumbá, do saudoso Café Ouro Verde (do típico mate gelado) e do concorrido e longevo bar O Corujão, além do inesquecível MultiCoffee que marcou época na década de 1990. Diferentemente de hoje, aquela quadra era o centro dos acontecimentos jornalísticos da cidade, como fora em décadas anteriores a quadra da rua Treze de Junho ao lado da capela do agora saudoso GENIC, onde à época inovadora Pioneira, a Rádio Difusora Mato-grossense S/A, também atraía protagonistas, testemunhas e consumidores da notícia em tempo real.

Foi nesse ambiente que o então jovem cabeleireiro Nelson Fernandes -- que fazia questão de ser reconhecido como ‘barbeiro’, profissão que herdou do pai em seu paradigmático Salão Imperial -- se tornou profissional desenvolto e, sobretudo, cidadão atuante não só na defesa da categoria (chegou a ser vice-presidente da Associação dos Cabelereiros Profissionais de Mato Grosso do Sul, quando a querida Amiga Elígia Ada Meza, murtinhense com orgulho, foi presidente, em fins da década de 1990), como no acompanhamento dos desdobramentos políticos locais e regionais.

Como bem o Professor Valmir Corrêa o definiu quando militava na política corumbaense: “O Nelsão não faz só o cabelo, ele colhe o depoimento da gente também...” Embora o conhecesse do tempo em que a saudosa Doutora Laurita Anache generosamente me emprestava o telex da emissora que dirigia para transmitir meu material, foi no convívio com o saudoso Márcio Nunes Pereira, diretor do aguerrido Diário de Corumbá, que nos aproximamos, até porque o Nelsão não só era Amigo do Márcio, como uma de suas mais confiáveis fontes, vez que transitava em todos os meios políticos.

Certa feita, tomei a liberdade de lhe fazer uma pergunta sobre essa longeva relação, e o agora saudoso Nelsão, enigmático, saiu-se pela tangente: amizade é amizade, o Márcio era merecedor das notícias mais fidedignas, tanto que nunca perdeu um processo de seus desafetos, embora o Doutor Joilce Viegas de Araújo fosse um grande causídico. Pois é, nem sim, nem não. Nada a declarar. Esse era o grande Nelsão, grande de estatura, de dignidade e de coração.

Quando o querido Chicão não pôde mais acolher o saudoso Professor e Amigo Augusto Alexandrino dos Santos, o querido Malah, em sua sala, porque precisou vendê-la para procurar novos horizontes profissionais no início da década passada, foi o Nelsão que o acolheu, fazendo de sua sala sua morada derradeira em Corumbá, é que depois precisou se mudar para Campo Grande e tratar de sua saúde, e pouco tempo depois se eternizou. Aliás, o mesmo problema que abateu o Nelsão, o diabetes, essa enfermidade silenciosa que castiga seus portadores.

Nelsão foi a verdadeira testemunha ocular da história nas últimas décadas. Mas não se limitara a ‘assistir de camarote’, e muitas vezes protagonizou iniciativas históricas, que, como ninguém, o querido Amigo e Jornalista Adolfo Rondon Gamarra sabe narrar em detalhes. Uma delas, reveladas pelo Malah, é aquela em que os dois se viram envolvidos em processo judicial por um gestor municipal que havia se ofendido por uma charge do inesquecível artista gráfico e o Nelsão se encarregara de organizar um bloco informal nos dias de carnaval. Ainda que o bloco não conseguira concluir sua peregrinação cívica durante o reinado de Momo, o processo judicial continuara, para surpresa dos dois. Mas o fato de não terem grafado o nome correto dos acusados, acabaram não precisando contratar um advogado para defendê-los.

É claro que Nelsão nunca foi uma unanimidade. Para muitos ele era o ‘língua preta’, mas nem por isso ele se acanhava, declinava de sua vocação cidadã. Quando Malah integrava um projeto editorial, dez anos atrás, ele, solidário, recorreu aos mais diferentes amigos seus para tentar tornar exequível o projeto de seu Amigo. Mas a Vida foi breve para o Malah, e acabou desistindo da iniciativa. É que para ele, Amizade é Amizade, e não era qualquer um a merecer seu esforço, seu apoio. Como também ele se julgava no direito de criticar quem merecesse sua indignação, sua ira santa.

Corumbá não mais será a mesma sem a sua percepção apurada. Com ele se encerra uma plêiade de cidadãos de diferentes profissões, classes sociais e posições políticas que priorizaram o zelo, o amor pela Corumbá de todos os clamores, todos os povos, sem se submeter à (má) vontade dos mandarins de plantão. Por maiores as diferenças de opiniões políticas com o Nelsão, é inegável sua coragem e lealdade por aqueles que ele admirava ou com quem se identificava. Coisa para poucos, pouquíssimos, pelo que será lembrado sempre.

Hoje Nelsão já se encontrou com o Malah, o Farid Yunes, o Márcio Pereira, o Joilce Araújo, o Armandinho Anache, o José Carlos Cataldi e, obviamente, seu querido Pai. Por certo nesse reencontro, além da festa, estarão a comentar os atuais fatos e factoides (hodiernamente fakenews) nestes bizarros tempos em que os sem graça e pobres de mentes teimam em levar este país-continente à Idade Média, quando o negacionismo e obscurantismo calavam as vozes dissonantes, porque iluminadas pelos raios de sol, este, sim, astro rei que não se submete a qualquer tipo de tirania.

Até sempre, Nelsão! Fraternal abraço a todos os Amigos que está a reencontrar, e obrigado pelas inúmeras lições de lealdade e coragem por aqueles que Você julgou merecedores de sua estima sincera e vibrante.

Ahmad Schabib Hany

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