Bolívia:
70 anos da Revolução de 9 de Abril de 1952
Nove de abril de 1952, uma
insurreição popular sentenciava as oligarquias entreguistas que, desde 1850,
rifaram o território, a soberania e as riquezas da Bolívia. Mas em pouco mais
de uma década ‘la nueva rosca’ abandonava os ideais revolucionários e, em
novembro de 1964, um obscuro militar, René Barrientos Ortuño, dava o tiro de
misericórdia e submetia o povo a um nefasto ciclo de ditaduras sanguinárias que
no ápice promoveram o tráfico de drogas, com Banzer Suárez, Pereda Asbún e
García Meza.
Sem a adesão popular de outrora, completou 70
anos, neste sábado, dia 9 de abril, a Revolução Nacionalista de 1952, sob a
liderança de Hernán Siles Suazo (presidente constitucional duas vezes), Victor
Paz Estenssoro (presidente três vezes, uma delas em aliança com os militares,
que o golpearam em novembro de 1964) e Juan Lechín Oquendo (lendário líder da
poderosa Central Operária Boliviana, COB, vice-presidente constitucional que, como
Ulysses Guimarães, Leonel Brizola e Magalhães Pinto no Brasil, morreu sem ter realizado
o sonho de ser presidente).
Por que o mais emblemático levante do povo
boliviano no século XX, reconhecido como Revolução de 1952 e responsável pelas
mais importantes mudanças sociais, econômicas, culturais e institucionais
operadas na Bolívia até então, perdeu adesão popular?
Primeiro, porque Victor Paz Estenssoro e o
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) se distanciaram do ideário de Nove
de Abril de 1952 da maneira mais cínica, em pouco mais de 10 anos, em 1964.
Isso permitiu que seu vice, o até então obscuro general René Barrientos Ortuño,
o traísse e em novembro daquele ano o golpeasse acintosamente. É bom lembrarmos
que foi o general Barrientos, serviçal estadunidense, quem acertou a execução
do líder revolucionário Ernesto Che Guevara em outubro de 1967. Dois anos
depois ele seria executado em seu helicóptero ‘doado’ pelo governo de Lyndon
Johnson, como reconhecimento dos, digamos, relevantes serviços prestados aos
Estados Unidos.
Segundo, em razão da desagregação da liderança
daquela emblemática insurreição popular ocorrida um par de anos depois do
linchamento e imolação do major Gualberto Villarroel, então ditador, no palácio
presidencial boliviano, que a partir de então passou a ser chamado ‘Palacio
Quemado’. Victor Paz rompeu com o lendário líder da COB, Juan Lechín, que
fundou seu próprio partido, o Partido Revolucionário da Esquerda Nacional
(PRIN, em espanhol), e com o próprio Hernán Siles Suazo, que também fundou o
Movimento Nacionalista Revolucionário de Esquerda (MNRI, em espanhol). Os
primeiros mandatos foram importantes pelo cumprimento da agenda política da Revolução,
como a extinção do ‘pongaje’ (uma forma de escravidão para os povos
originários, em pleno século XX), a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, o
direito do voto do analfabeto, as leis trabalhistas, a criação de empresas
estatais mineiras, petrolífera e de outros setores econômicos.
O reencontro das camadas populares bolivianas com
o Estado, quase 130 anos depois da emancipação do jugo espanhol, ocorreu sob inspiração
dos ideais revolucionários do pós-guerra de 1945. De um lado, o socialismo que
derrotou o nazifascismo em seu próprio território, e de outro o resgate da heroica
luta dos povos originários, como homenagem à memória de mártires como Túpac
Amaru, Túpac Katari e Zárate Wilka, entre outros não menos importantes.
O Estado boliviano, aliás, foi fruto da determinação
dos líderes originários aliados aos Libertadores Simón Bolívar, Antonio José de
Sucre e Andrés de Santa Cruz de emancipar a população do Alto Peru, no coração
da América, então integrante do opulento Vice-reino do Peru, que encheu de ouro
e prata a coroa espanhola ao longo de mais de três séculos.O nome Bolívia, não
por acaso, é homenagem a Bolívar, seu primeiro estadista.
No entanto, as elites bolivianas, descendentes dos
colonizadores espanhóis, desde logo se mostraram entreguistas, nada ‘patrióticas’
(não tão diferentes das demais, em toda a América Latina, inclusive do Brasil).
Desde a proclamação da independência da república do Alto Peru (e logo depois
Bolívia), em 1825, as oligarquias impunham seus interesses sobre os coletivos,
oprimindo ainda mais os povos originários e manipulando os mestiços, que
estavam, como pêndulo, ora com os oligarcas, ora com os líderes originários.
Assim como em 1952, não demorou o desencanto com a
luta pela democratização pós-narcoditaduras sanguinárias de Banzer Suárez,
Pereda Asbún e García Meza (“La Veta Blanca”, do Jornalista René Bascopé
Aspiazu, demonstra didaticamente com fartos documentos), cujo ponto alto foi a
homologação pelo Congresso Nacional da coligação vencedora, a Unidade
Democrática Popular (UDP), composta pelo Movimento Nacionalista Revolucionário
de Esquerda (MNRI), Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), Partido
Comunista da Bolívia (PCB) e Partido Democrata Cristão (PDC). A posse em 10 de
outubro de 1982 dos dois ícones da UDP, Hernán Siles Suazo (MNRI) e Jaime Paz
Zamora (MIR) à frente do governo constitucional boliviano, sem contar com um
projeto de Estado e um programa de governo efetivamente democrático e
transformador, levou ao empobrecimento de ampla parcela da população pela
desestabilização econômica e a crise política dentro da UDP, que levou à
renúncia do grande democrata Hernán Siles Suazo um ano antes do fim de seu
mandato.
Essa crise se agravou com os governos seguintes:
Victor Paz Estenssoro, desta vez com toda a tropa de choque neoliberal, sob o
comando de Jeffrey Sachs, o mesmo das reformas econômicas na Polônia de Lech
Walessa, que acabou com direitos trabalhistas, as estatais da mineração e do
petróleo e a estrutura sindical da COB; Jaime Paz Zamora, travestido de
neoliberal, com o apoio do narcoditador sanguinário Banzer Suárez, e concretiza
o sonho entreguista das ditaduras de 1960 a 1980, assinando o acordo de
construção do gasoduto Bolívia-Brasil e a venda do gás natural boliviano para o
Brasil a preço aviltante; Gonzalo Sánchez de Lozada, ex-ministro da Economia de
Victor Paz, executor das reformas neoliberais de Jeffrey Sachs na Bolívia, em
aliança com o chamado setor autêntico do antigo MIR, agora denominado Movimento
Bolívia Livre, MBL; Hugo Banzer Suárez, que repaginou sua biografia ao ser
eleito presidente constitucional e tentar se eximir dos narcovínculos e da
carnificina que fez quando de sua sanguinária e corrupta ditadura, e que contou
com o apoio declarado do que restava do velho MIR de Paz Zamora; Jorge Tuto
Quiroga, vice de Banzer que, com a doença terminal do ‘ex-ditador’, assume no
último ano do mandato no afã de revigorar sua pífia carreira política; Gonzalo
Sánchez de Lozada, de novo, acreditando que terá o apoio de seus amos e
protetores neoliberais, mas fracassa em seu intento de leiloar o que resta das
estatais e riquezas nacionais, como fez em 1987 o seu líder Victor Paz, o que o
leva a renunciar ao cargo, em clima de guerra civil em toda a Bolívia; Carlos
Mesa, que assume como vice de Gony e, em vez de virar a página do
neoliberalismo, do qual foi crítico enquanto analista político, submete-se às
pressões patronais e de corporações transnacionais insistindo com a pauta
econômica de seu antecessor, para decepção de seus incrédulos apoiadores -- o
que o leva a renunciar em plena “Guerra da Água”, quando é reafirmada a
liderança do então influente líder sindical originário, Evo Morales Ayma; e
Eduardo Rodríguez, que, como presidente da Corte Suprema de Justiça, assume
interinamente o cargo, garantindo uma eleição limpa e que dá a vitória a Evo
Morales.
Ao contrário dos ‘líderes’-fantoches do império
que o antecederam, Evo Morales não só realiza uma verdadeira revolução sociocultural
sem balas como reorganiza o Estado e acaba com as ‘saúvas’ que sugavam o erário
boliviano desde os tempos coloniais. Ao resgatar direitos inalienáveis dos
povos originários e consignar na chamada Constituição Política do Estado as
conquistas legítimas de todos os povos que constituem a Bolívia em um Estado
plurinacional, Evo não só se consolida como o segundo estadista em quase
duzentos anos de história boliviana, e acaba comprovando o que as elites
claudicantes nunca quiseram admitir -- aquilo que no Brasil Lula chamou de ‘complexo
de vira-latas’: tigrão com o seu povo e tchutchuca com as poderosas
transnacionais, de quem sempre se comportaram como fiéis serviçais.
Ahmad
Schabib Hany
2 comentários:
Scha, ontem encontrei um jovem de menos de 25 anos defendendo que o papel do Brasil é mesmo produção primária e que os países ricos e inteligentes é que devem ficar com os papeis de industrializar e gerir... inicialmente fiquei abestada com a conversa e, depois, logo pensei no tigrão e na tchuchuca que você traz aqui... ah... o jovem é boliviano e está no Brasil com bolsa do seu país de Evo... sim, estamos atolados pelo idiotismo intelectual. Força aí que sigo respirando aqui!
Querida Estela! As "camadas mé(r)dias", também chamada de "classe mé(r)dia", funcionam como pêndulo em todos os países: ora com a salutar combatividade das classes proletárias do campo e da cidade, ora com o ódio destilado pelas oligarquias ou elites serviçais das corporações transnacionais...
Por outro lado, o velho barbudo e os demais pensadores que desvendaram cientificamente o nível de exploração pela burguesia fedorenta (literalmente, pois além de não tomar banho lá na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, os membros da aristocracia feudal os desdenhavam pelos hábitos grosseiros e nada "civilizados"): aquela fórmula matemática comprovando o segredo da "inteligência" capitalista de explorar por meio da "mais-valia" não dá margem a qualquer dúvida.
Daí que esse fedelho aprendiz de Calabar, serviçal do império que traiu seu próprio povo (da obra imortal de Chico Buarque e Ruy Guerra, "Calabar, o elogio da traição"), desconhece a História, a História da Bolívia e sua própria história, pobre diabo... Atribuir ao explorador uma superioridade, travestida de "inteligência" ou "desenvolvimento", é a maior burrice. Inteligente é aquela classe, ou melhor, aquelas classes que têm consciência de classe (lembra-se daquelas conceituações de "classe para si" em vez de "classe em si"?).
Por tudo isso é que devemos prosseguir nossa jornada, pois há muitos "mitos" a desmascarar, inclusive o senso comum revigorado nas escolas privadas (nos dois sentidos, ou melhor, TRÊS SENTIDOS: privadas de consciência histórica, privadas em sua gestão e da latrina, de onde jamais deveriam ter saído), dentro da estratégia golpista dos anos 2014 a 2019.
Grande abraço, e "hasta la victoria siempre"!
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