REPUBLICADO COM INCLUSÃO DO NOME DO INCANSÁVEL COMPANHEIRO VALDEMIR VIEIRA, O POPULAR 'XIS', QUE DEPOIS DE DEIXAR A DIREÇÃO DO SINDICATO DOS FERROVIÁRIOS FUNDOU A ASSOCIAÇÃO DOS FERROVIÁRIOS APOSENTADOS E DEMITIDOS DE MATO GROSSO DO SUL E PUBLICOU UM LIVRO COM AS MEMÓRIAS COLETIVAS DO SINDICATO E DE SUA CATEGORIA.
COMPANHEIRO ROQUE FERREIRA, SEMPRE NA MEMÓRIA!
Primeiro dirigente sindical ferroviário classista,
Roque Ferreira foi mais que um Companheiro, foi um Mestre que abriu os
horizontes de outras categorias de trabalhadores ainda tolhidos pela ditadura
não só em Bauru e MS, mas em toda a América Latina. Seu legado de luta e
internacionalismo viverá sempre em nossa memória.
Por meio do Companheiro Anísio
Guilherme da Fonseca, o Anísio Guató, soube da triste eternização do grande,
gigante, Companheiro Jornalista Roque Ferreira, ex-presidente do Sindicato dos
Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Bauru e Mato Grosso do Sul. Depois de
ter lutado renhidamente contra a covid-19, esse ser humano de infinita grandeza
encerrou sua incessante jornada no dia 4 de setembro de 2020, cujo legado
atravessa as fronteiras da categoria ferroviária de toda a América Latina, como
líder leal da classe trabalhadora e internacionalista.
Tive a honra de conhecê-lo em meados
da década de 1980, quando viera a Corumbá, de carro, para conhecer de perto a
realidade dos ferroviários desta fronteira. Já passava das 22 horas e estava à
procura de uma estalagem para se restaurar da viagem. Uma feliz coincidência,
nessa noite meu Pai decidira esperar pela chegada de um grupo de turistas ao
Pantanal com as portas abertas do refeitório da pousada, e eu me incumbira de
aguardar pelo grupo. Nisso chega um carro com quatro passageiros a perguntar
por alguma refeição, e como Dona Divina, a cozinheira, ainda estava a postos,
disse que sim, que podiam adentrar ao salão.
Discreto, o grupo se sentou à mesa e,
enquanto aguardava pela refeição, tomava algum refrigerante, sem alardes. Com a
chegada do grupo de turistas (Corumbá vivia a febre da telenovela ‘Pantanal’,
da extinta TV Manchete, e fervilhavam os grupos de brasileiros ávidos pelas
maravilhas do bioma, até então desconhecidas pela maioria dos brasileiros),
passamos a nos dedicar também à recepção dos jovens turistas à pousada. Em
seguida, como bom Jornalista que Roque era, começou a me indagar com uma série
de perguntas sobre o turismo, o Pantanal e as ferrovias, tanto a ex-Noroeste
como a Oriental, da Bolívia.
Provavelmente pela forma como
respondi, se sentiu mais à vontade para falar sobre as questões dos
trabalhadores na região. Mesmo não sabendo ainda com quem eu estava
conversando, falei sobre a primeira paralisação dos ferroviários ocorrida na
região no ano anterior (quando um diretor do Sindicato, de nome Jesus, viera de
Bauru, e pela forma como conduzira o movimento, o ferroviário Manoel Vitório
acabara transferido à revelia, primeiro para a estação de Urucum e depois para
a de Luiz Gama, perto de Água Clara, na região do Bolsão).
Eles se entreolharam, e aí finalmente
o agora saudoso Roque se identificou. O grupo estava viajando de carro pelas
cidades da rota da ferrovia Bauru - Corumbá porque a direção da ferrovia, ainda sob as
orientações dos sabujos de 1964, detinha controle absoluto da circulação de
sindicalistas em seus comboios. Não é demais lembrar que os x-9 permaneceram
até a privatização da RFFSA, no governo de FHC, em 1996, fossem eles de
carreira ou das empresas terceirizadas que já atuavam em seu percurso.
Quiseram saber algo mais sobre Manoel
Vitório e sua transferência para Luiz Gama. Depois, sobre o acidente por picada
de cascavel sofrido por ele e sua recuperação em Ribas do Rio Pardo. Como eu o
conhecera, por meio do Companheiro Tito de Oliveira (de quem ele era aluno) e
não demorara muito para nos tornarmos amigos, senti confiança e me permiti
dar-lhes o endereço da residência dele, numa vila de casas nas proximidades do
Hospital de Caridade. Só então soube o nome dele e dos membros da caravana
sindical. Mas a partir de então, toda vez que vinha para Corumbá, Roque fazia
questão de parar na pousada para trocar algumas ideias conosco.
Decorridos alguns meses, qual não foi
minha surpresa ao ver Manoel Vitório com o Roque Ferreira, já eleito presidente
do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Bauru e Mato Grosso
do Sul. Não demorou muito, Manoel já havia sido eleito pela base delegado
regional do Sindicato, e aos poucos foi passando a integrar as diferentes
instâncias deliberativas da categoria. Não posso esquecer a felicidade dele ao
retornar de uma viagem ao Caribe, quando participou de uma conferência
latino-americana da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes
Ferroviários. Roque era assim: para ele, sindicato era uma escola de formação
classista, ideológica, e ele atuava como Mestre, com a clareza de que as
grandes causas não têm ‘donos’, e a História não têm amos nem senhores.
Impressionava seu proceder: sempre
estudioso, comedido, discreto. Era metódico sem enveredar para a pieguice.
Disciplinado, um verdadeiro autodidata, Roque descortinou horizontes com
pioneirismo e determinação, tendo preparado muitos jovens ferroviários para a
formação política. Ainda na década de 1980, tão logo assumiu a coordenação
colegiada do Acordo Metro-ferroviário dos Trabalhadores Sobre Trilhos, acredito
dentro da CUT (Central Única dos Trabalhadores), empreendeu novas atividades
formativas para companheiros da classe trabalhadora. O domínio das ferramentas
da Comunicação Social tornara sua atuação ainda mais abrangente.
Humilde, atencioso, observador e
criterioso, o Companheiro Roque Ferreira, ao longo do período em que tive a
honra de testemunhar sua atuação, tratou com muita dignidade e respeito os
ferroviários. Diferentemente do caudilho populista que por décadas atuara
naquele sindicato, um deputado federal da Arena (depois de seu sucedâneo, o
PDS) cujo nome não lembro, e que quando vinha a Corumbá queria ser recebido
como autoridade, não como representante de uma categoria espezinhada no tempo
da ditadura.
Terra de Apolônio de Carvalho, o
coração do Pantanal e da América do Sul inspirara os membros da gestão “Pau na
Máquina” (também nome do boletim sindical) a abrir canais de diálogo com os
ferroviários da Bolívia, filiados à emblemática Central Operária Boliviana
(COB). Lembro-me de uma de suas viagens, em companhia da Jornalista Tatiana
Calmon, responsável pela Comunicação Social (mais tarde sua Companheira), a preocupação
de reunir-se com os colegas de ofício que atuavam na região para desmistificar
algumas questões da luta dos ferroviários.
É que, início dos anos 1990, no
rastro da verborragia neoliberal de Fernando Collor, era comum a resistência de
repórteres não suficientemente conscientes do papel dos movimentos sociais que
traziam em sua atuação o olhar patronal na cobertura da luta sindical. Aliás, a
vinda de Roque Ferreira com a Companheira Tatiana, senão me engano, decorrera
de um lamentável episódio em que a esposa de um engenheiro da ferrovia,
estudante no campus local, tentara desacreditar a atuação da nova gestão
sindical (ela não fazia ideia de que muitos dirigentes ferroviários eram também
universitários). Daí que o velho preconceito pequeno-burguês de que ‘atuação de
trabalhador é questão de polícia’ acabou não mais tendo vez.
Foi entre o final do mandato de José
Sarney e o primeiro mandato de FHC que o destino da RFFSA foi selado, quando do
desmembramento e privatização das superintendências regionais (a de Bauru era a
SR-8). Graças à capacidade de mobilização de Manoel e à sensibilidade do então
Prefeito Fadah Scaff Gattass, em 1989, foi realizada a memorável passeata
multitudinária (algo como quatro quadras de pessoas apinhadas exigindo a permanência
dos trens de passageiros e contra a privatização da ferrovia quase centenária).
Embora todos os segmentos sociais da região tivessem se manifestado pela
manutenção do trem, os parlamentares da base parlamentar do governo nos dois
estados (Mato Grosso do Sul e São Paulo) nada tinham feito para evitar a
privatização.
A última década do século XX foi
extremamente fértil para o movimento popular nesta região, e o Sindicato dos
Ferroviários de Bauru e MS, sem dúvida, foi carro-chefe das conquistas
protagonizadas. Claro que a empresa já havia acionado seu ‘plano b’ e criado um
‘sindicato cartorial’ com base territorial em MS, mas não vingara. Sob a sábia
coordenação de Roque Ferreira, a atuação de Anísio Guató, Valdemir Vieira (incansável
Xis), Roberto Teixeira, Peninha, Seu Luiz, Seu Guedes e Seu
Vivaldo, além de Manoel, entre tantos outros Companheiros não menos
importantes, fez a diferença para a afirmação do protagonismo popular na
região.
Em 2005, uma atividade conjunta da
Câmara Municipal de Corumbá, Sindicato dos Ferroviários de Bauru e MS, Comitê
de Revitalização da Ferrovia e Reativação do Trem do Pantanal, OCCA Pantanal,
Pacto Pela Cidadania e FORUMCORLAD (hoje Observatório da Cidadania Dom José
Alves da Costa), culminou com a realização da Audiência Pública que permitiu o
encontro derradeiro dos agora saudosos Companheiros Roque Ferreira e Carlos
Machado, vítimas da covid-19. Jamais esqueceremos a emoção de veteranos da
ferrovia, inclusive da Bolívia, na expectativa de ver concretizada a volta do
trem de passageiros. Infelizmente a megalomania de paraquedistas -
tal qual o senador que dizia ser ‘de
todos’ e que a história provou que não era de ninguém -
fez com que fossem priorizados
projetos mirabolantes nitidamente predadores, como os tais polos
minero-siderúrgico e gás-químico e a hidrovia, em detrimento de projetos
históricos, como o Trem do Pantanal.
Mais que dirigente sindical, o
Companheiro Roque foi um Mestre que humilde e sabiamente soube conduzir sua
categoria num patamar sem igual, de lealdade e solidariedade. Um ano de sua fatídica
eternização, num misto de consternação e saudade, manifestamos nossa profunda
solidariedade à Companheira Tatiana Calmon e Família, aos Companheiros da
incansável categoria dos ferroviários e, de modo fraternal, a toda a classe
trabalhadora, razão de ser do Companheiro Roque Ferreira.
Seu legado de coerência, disciplina,
lealdade e dedicação à causa da classe trabalhadora e do internacionalismo
fecundará os horizontes das novas gerações rumo a uma sociedade liberta, justa
e igualitária.
Até sempre, Companheiro Roque
Ferreira, sempre na memória e no coração!
Ahmad Schabib Hany