quinta-feira, 19 de agosto de 2021

"VOLVERÉ Y SERÉ MILLONES"

“¡VOLVERÉ Y SERÉ MILLONES!”

A consigna de Túpac Katari, quando de sua condenação a esquartejamento pelos colonizadores espanhóis, se transformou em grito libertário dos povos originários de toda a América. A Bolívia, depois do chamado Processo de Mudança Democrático e Cultural, se transformou em referência para os povos que lutam por emancipação e soberania popular.

Diferente do Brasil, a Bolívia tem pelo menos quatro troncos linguísticos originários, a despeito de sua extensão territorial ser bem pequena em relação aos países latino-americanos com maior projeção no concerto das nações. Além dos troncos Tupi e Guarani, há o Quéchua, Aimara e Urus (este último dos mais antigos do subcontinente sul-americano). Nem mesmo a ‘bem sucedida’ política colonial das ‘reduções populacionais indígenas’ foi capaz de acabar com o predomínio étnico ‘pré-colombiano’ no coração da América do Sul.

Não nos esqueçamos que, com o atual Peru, a Bolívia conforma o território-sede do emblemático Império Incaico (erroneamente chamado de Inca, que era o nome atribuído aos soberanos daquele império). Como se tratava de populações sedentárias (portanto, diferentemente dos Tupi-Guarani, que eram nômades), as populações originárias dentro das proximidades da sede do império milenar gozavam de maiores atributos, pois sobre elas pairavam deveres e direitos por se incumbirem do abastecimento de alimentos, vestuários, materiais de construção e inclusive armas, além de gozarem da confiança das classes dominantes instaladas nas cidades-sede do Império.

Isso tornou o então Alto Peru indomável, do ponto de vista colonial. O território do hoje Estado Plurinacional da Bolívia foi palco dos pioneiros e mais intensos movimentos de resistência ao invasor europeu, desde o início da colonização. Líderes como Túpac Katari (na verdade dois homônimos), Túpac Amaru e as Mártires de La Coronilla (na data em que se celebra do Dia das Mães na Bolívia, 27 de maio), para citar alguns, têm a sua memória reverenciada até hoje. Não por acaso, desde a proclamação da República da Bolívia, em homenagem ao Libertador Simón Bolívar, em 1825, a minoria branca sempre encontrou dificuldade de impor sua vontade, ainda que usasse uma força descomunal e mantivesse os povos originários em regime de ‘pongaje’ (a escravidão espanhola das populações nativas) até a Revolução de 9 de Abril de 1952, que promoveu a reforma agrária, a reforma urbana, as leis trabalhistas, introduziu o voto do analfabeto, entre um conjunto de reformas sociais clamadas pelas maiorias bolivianas.

Como na proclamação da independência e da República da Bolívia, em 1825, os ‘índios’ nunca passaram de reles figurantes, massa de manobra, das oligarquias bolivianas, assim também ocorreu, depois de uma fugaz lua de mel, durante o efêmero regime pós-1952. Victor Paz Estenssoro, Hernán Siles Zuazo e Victor de novo (e não o lendário líder da Central Operária Boliviana, a COB, Juan Lechín Oquendo, como havia sido acordado, por serem os líderes da Revolução Nacionalista de 1952) passaram a adiar as transformações clamadas pela população, sobretudo pelos setores operários, campesinos e ‘indígenas’. Isso corroeu a base popular e propiciou a inserção da Bolívia no mapa da América Latina golpista, entre novembro de 1964 (quando o general René Barrientos Ortuño, vice de Paz Estenssoro, deu o golpe e instalou a ditadura que, a serviço da CIA, executou em Valle Grande o líder guerrilheiro Ernesto Che Guevara, em 1967) e outubro de 1982 (quando o general institucionalista David Padilla Arancibia transmitiu o cargo ao Presidente Hernán Siles Zuazo, da Unidad Democrática Popular, UDP, eleito em 1980, mas impedido de ser empossado por causa do golpe sangrento comandado pelo general narcotraficante Luis García Meza Tejada e, por incompetente, respaldado pelo igualmente sanguinário Coronel Luis Arce Gómez, tal qual García Meza, ligado à quadrilha da qual a ex-presidenta golpista Jeanine Áñez Chávez também faz parte (sediada no norte da Bolívia, com base em Trinidad, departamento do Beni).

A UDP - formada pelo Movimiento Nacionalista Revolucionario de Izquierda (MNR-I), de Hernán Siles Zuazo, candidato a presidente; Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), de Jaime Paz Zamora, candidato a vice-presidente; Partido Comunista de Bolivia (PCB) e uma dissidência do Partido Demócrata Cristiano (PDC) -, impôs uma vitória acachapante sobre os candidatos da direita (entre eles, Victor Paz Estenssoro, do Movimiento Nacionalista Revolucionario, MNR, mas adotando uma agenda conservadora, e o general sanguinário Hugo Banzer Suárez, da Acción Democrática Nacionalista, ADN, legenda que ele criou para se eleger) e sobre um emblemático combatente da esquerda socialista, brilhante senador que criou e presidiu o “Juicio del Siglo”, reunindo provas de crime de lesa-pátria de Hugo Banzer, e que foi assassinado durante o golpe de García Meza, Marcelo Quiroga Santa Cruz, do Partido Socialista Uno, o PS-1. Mas o governo da UDP não honrou seus compromissos constitutivos, por não ter um projeto de Estado e por uma disputa protagonizada pelo MIR, do vice-presidente Paz Zamora, que, em vez de manter um movimento de unidade, optou pela saída oportunista, de romper com o Presidente Siles Zuazo, retirando todos os seus ministros do governo e indo para a oposição, sem, obviamente, renunciar à vice-presidência.

Mesmo na esquerda, haviam diversos líderes declarados de ‘esquerda’ nascidos nos lares abastados das oligarquias, como Jaime Paz Zamora, primo de Victor Paz Estenssoro e de Oscar Zamora Medinacelli, do PCML, Partido Comunista Marxista-Leninista, de linha maoísta; embora ‘natural’, Hernán Siles Zuazo, de mãe chilena, era filho de um ex-presidente, Hernando Siles, e irmão de pai do ex-vice-presidente Luis Siles Salinas, filho ‘legítimo’ desse dirigente liberal que chegara à presidência da República; Gonzalo Sánchez de Lozada, o ‘Goni’, primeiro ministro das Finanças de Victor Paz Estenssoro e depois Presidente da República com o voto de dissidentes da esquerda no Congresso Nacional, também era descendente das oligarquias mineradoras da Bolívia, e que havia morado nos Estados Unidos quando da Revolução Nacionalista de 1952. Carlos D. Mesa Gisbert, igualmente, membro da nova oligarquia boliviana, com perfil intelectual por conta do ofício dos pais, os arquitetos e historiadores José de Mesa e Teresa Gisbert de Mesa, docentes e pesquisadores da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), de La Paz.

O fato é que o proletariado urbano e rural (operários e campesinos) e povos ‘indígenas’, à exceção de momentos pontuais, nunca estiveram representados em todos os governos republicanos. Daí porque a Constituição de 2009 passou a estabelecer critérios definidos, como a expressão ‘direitos comunitários’, para designar novos paradigmas consignados no novo arcabouço jurídico conquistado no processo de refundação da Bolívia, agora como Estado Plurinacional. Aliás, a polarização política do país é uma resposta das elites brancas contra as transformações conquistadas pelas amplas maiorias bolivianas, que só agora passaram a ter voz e vez.

É fundamental observarmos que os povos originários sempre foram ‘bucha de canhão’ em todas as guerras em que a Bolívia se envolveu, sob governos ‘liberais’ - na tentativa de as elites reduzirem a população nativa e pela aguçada consciência coletiva, nesse caso patriótica, para enfrentar ‘o inimigo da pátria’ -, em que perdeu uma porção territorial maior que as atuais dimensões de seu território: Conflito do Sul (com a Argentina), em 1860, em que o Brasil pressionou a república platina a devolver parte do território boliviano; Guerra do Pacífico, em 1879, perdeu seu litoral, o deserto de Atacama e duas cidades portuárias (Calama e Antofagasta); Conflito do Acre, de 1904, em que perdeu o território do atual estado brasileiro que leva esse nome; Guerra com o Peru, 1909, em que a Bolívia perdeu parte da região amazônica que havia conseguido manter do Conflito do Acre com o Brasil; Guerra do Chaco, uma guerra fratricida que, além de empobrecer e dizimar milhares de pessoas humides, destruiu e endividou sobremaneira os dois países mais pobres da América do Sul, insuflados por dois países vizinhos (Brasil e Argentina) e duas petroleiras transnacionais (Standard Oil e Shell). [https://es.wikipedia.org/wiki/Historia_territorial_de_Bolivia]

Em que pese a truculência dos ‘vice-reis’ que de alguma forma obtiveram destaque por terem conseguido explorar e oprimir contundentemente as populações nativas, a cultura ‘pré-colombiana’ não foi de todo extinta. Entre as várias manifestações antropológicas que sobreviveram, ainda que miscigenadas às culturas espanholas, está a identificação e conservação dos pisos ecológicos, além da manutenção da estrutura social originária que permitiu a perenização das comunidades praticamente originais, o ayllu ou aillu [PORTUGAL, Ana Raquel. O ayllu andino nas crônicas quinhentistas [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 208 p. ISBN 978-85-7983-000-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>].

Se observarmos a atual composição étnica da Bolívia, tal qual uma colcha de retalhos racial, entenderemos por que a Revolução Democrática Cultural promovida pelo MAS de Evo Morales foi bem sucedida: a grande maioria da população passou a ser protagonista, ainda que as instituições ainda sejam frágeis por causa da conduta traiçoeira da ‘classe’ média, que se aliou às elites brancas para dar o golpe em novembro de 2019. Embora as estatísticas oficiais sempre reconhecessem que a Bolívia é um país de maioria indígena, somente agora é que há mecanismos institucionais de assegurar essa representatividade e, sobretudo, um protagonismo inédito na vida política boliviana pós-2009, quando da refundação do Estado boliviano.

Segundo o Mapa Étnico da Bolívia, são mais de 100 Nações Originárias desses pelo menos quatro troncos linguísticos. O Oriente boliviano é constituído pelos departamentos de Santa Cruz (capital Santa Cruz de la Sierra), Beni (capital Trinidad) e Pando (capital Cobija); nesta porção o tronco linguístico originário é o Tupi-Guarani. A porção Andina é constituída pelos departamentos de La Paz (capital La Paz, que é também a sede do governo nacional), Oruro (capital Oruro), Potosí (capital Potosí) e Cochabamba (capital Cochabamba); os troncos linguísticos originários são o Quéchua, Aimara e Urus. A porção Sul é formada pelos departamentos de Chuquisaca (capital Sucre, que é também a capital da Bolívia) e Tarija (capital Tarija); os troncos linguísticos originários são Quéchua e Aimara, diluído pela presença acentuada de descendentes de europeus.

Ao contrário da história oficial boliviana, são os Quéchua - descendentes dos Incas -, Aimara e Urus os grandes protagonistas da resistência à colonização, espoliação e toda opressão e exploração desenvolvida pelo colonizador europeu. Tupac Katari é o mártir mais eloquente de todo o processo de violência usurpadora espanhola. É dele a lendária fala quando de sua condenação à morte, muito parecida à de Tiradentes (por esquartejamento), e que virou refrão durante a campanha pela eleição do candidato do MAS, indicado por Evo Morales: “¡Volveré y seré millones!” [“Voltarei e seremos milhões!”]

Em síntese, esta é a Bolívia, para muitos incompreensível e misteriosa, mas, na verdade, vítima da cobiça dos europeus e estadunidenses, obviamente, com a ajuda de muitos bolivianos vira-latas, que por menos de trinta moedas vendem sua pátria com o único afã de obter alguma vantagem efêmera. Aliás, não muito diferente do que ocorre com o Brasil, Chile, Peru, Argentina, Equador, Venezuela, Colômbia etc.

Ahmad Schabib Hany

2 comentários:

Waded Schabib Hany disse...

Seremos!

Estela Márcia disse...

Scha, parei pra ler com calma somente hoje. É preciso acalmar o que está em volta prá deixar-me levar pelo seu texto. É um esperanceio denunciador. Encantada ainda fiquei imaginando você sentado junto aos quéchua e lambendo com os olhos os causos daquele povo. É emblemática essa sua publicação. Aliás, é uma fonte bibliográfica importante.