quarta-feira, 15 de abril de 2020

VISÃO MILITARISTA SOBRE A COVID-19 É IMPRÓPRIA (MOMTCHILO RUSSO)

Compartilhado do Portal "Vi O Mundo", do Jornalista Luiz Carlos Azenha. Brilhante texto do Professor Doutor Momtchilo Russo (titular de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP), por sugestão do Professor Doutor Bernardo Vargaftig (aposentado da mesma instituição).
Disponível pelo link https://www.viomundo.com.br/politica/momtchilo-russo-visao-militarista-sobre-o-covid-19.html.


Momtchilo Russo: Visão militarista sobre a covid-19 é imprópria

POLÍTICA

Momtchilo Russo: Visão militarista sobre a covid-19 é imprópria


15/04/2020 - 23h20

por Momtchilo Russo*, sugerido por Bernardo Vargaftig
Vários membros da família Coronaviridae de vírus infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta.
No entanto, alguns vírus desta família que infectam animais silvestres que os transmitiram aos humanos causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) como é o caso do SARS-CoV-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do SARS-CoV-2, responsável pela atual pandemia denominada COVID-19.
https://doi.org/10.1038/s41591-020-0820-9
Em todos os continentes afetados pela pandemia, alardeia-se que estamos em Guerra e no Brasil, o presidente pediu ajuda às forças armadas para combater este inimigo.
O problema é que as Forças Armadas não estão equipadas para lidar com infecções.
Apesar do cenário trágico em que se encontram alguns países onde são registrados altos números de mortalidade, a visão militarista de que estamos em guerra é uma noção biologicamente incorreta.
Esta visão antropocêntrica, julga ser o homem um ser central no planeta, desprovido de microrganismos e totalmente isolado do meio que o circunda.
Nesta visão bélica da infecção atribui-se aos microrganismos invasores a vontade de se apoderar dos homens.
Este conceito não se sustenta por várias razões e cito algumas:
  • Como comentado por Miguel Soares (I. Gulbenkian), “a visão militarista não considera que a grade maioria das pessoas mesmo estando infetadas “convivem” com o vírus SARS-CoV2 sem ficarem gravemente doentes. Isto se explica em parte pela capacidade de certos indivíduos de tolerar o vírus sem no entanto, comprometer a imunidade. Embora benéfica para o indivíduo infectado esta estratégia tem um preço alto, pois facilita o contágio e a propagação do vírus para outros indivíduos mais ou menos susceptíveis de desenvolver a doença”;
  • Filogeneticamente, o Homo sapiens surgiu na terra muito depois dos microrganismos e como tal, teve que se adaptar aos microrganismos que já estavam no meio ambiente e;
  • Somos povoados por microrganismos que constituem a nossa microbiota e que são pelo menos 10 vezes mais numerosos que as nossas células e que, por incrível que pareça, nos ajudam a viver melhor.
É óbvio que o vírus não declarou guerra aos humanos.
A humanidade já passou por vários surtos epidêmicos e se adaptou a todos eles.
Os gregos e os persas foram os primeiros a observar que os convalescentes de pragas não adoeciam de novo e podiam cuidar dos doentes.
Daí surgiu o conceito de Imunidade.
No caso do SARS-CoV-2, o vírus achou por acaso, novos nichos ecológicos para se multiplicar.
O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que ao chegaram ao mercado de Wuhan, infectaram os homens.
O mundo globalizado tornou-se um meio extraordinário de propagação do vírus.
Pandemia não é uma novidade, pois a gripe dita espanhola infectou 500 milhões de indivíduos e matou pelo menos 50 milhões de pessoas.
A hepatite B é um exemplo de como as condições ambientais permitem a propagação de vírus.
Até antes da segunda guerra mundial, a hepatite B era uma doença extremamente rara, porém com a profusão de transfusões de sangue feitas nos soldados feridos, o vírus da hepatite B infectou uma parcela significativa na população humana, estabelecendo-se.
A primeira questão que se coloca é porque a COVID-19 se espalha de forma exponencial?
Parte da resposta é que a população humana não possui nenhum repertório imunológico para lidar e se adaptar a esta infecção.
Cabe aqui afirmar que é o sistema imunológico que nos adapta a conviver com os diferentes microrganismos que nos circundam.
Ao contrário do que é voz corrente nos noticiários, o Sistema Imune não combate microrganismos, mas nos adapta a viver com eles.
Então, por que a COVID-19 virou pandemia?
Tomando como exemplo as populações indígenas, que foram severamente atingidas por infecções virais provenientes do contato com colonizadores europeus, a explicação seria: os europeus já tinham repertório imunológico (memória) para lidar com estas infecções virais, enquanto os indígenas não tinham.
Isto mostra que a memória imunológica das populações é moldada por suas experiências.
Como não temos memória imunológica para lidar com o SARS CoV-2, todos os indivíduos são potenciais hospedeiros do vírus.
Se nada for feito, a população humana vai se adaptar a esta infecção, pois a COVID-19 apresentar baixa letalidade, mas por ser uma pandemia haverá um número extremamente alto de óbitos e colapso hospitalar
https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30235-8
O que podemos fazer?
Primeiro, entender o modo de transmissão do vírus, seu ciclo e sua patologia para depois intervir.
O que chama atenção na COVID-19 é a extrema capacidade do vírus em ser transmitido.
Algumas possibilidades podem ser aventadas como o fato de indivíduos infectados assintomáticos que não sabem que estão infectados (portadores sãos) ou sintomáticos transmitirem o vírus por muito tempo (~14 dias).
Além disto, gotículas e micropartículas do vírus permanecem no meio ambiente de horas a 3 dias.
Segundo, já sabemos qual é o principal receptor (uma enzima que fica na membrana de várias células denominada ACE2) que o vírus utiliza para infectar e quais são as enzimas utilizadas para sua multiplicação.
A utilização de uma ou uma combinação de várias drogas poderá contribuir para inibir estas enzimas chaves e consequentemente a sua multiplicação como mostrado em estudo recente na Fiocruz
https://doi.org/10.1101/2020.04.04.020925
Também é possível usar drogas que induzem erros na replicação do vírus. Terceiro, é possível desenvolver imunizações ativas (vacinas) e passivas (transferência de anticorpos) à exemplo que aconteceu no século passado com os trabalhos pioneiros de Von Behring, prêmio Nobel por seu trabalho sobre terapia de soro contra a difteria e de Pasteur e seus discípulos.
Analogamente ao que está acontecendo hoje, a peste bubônica iniciou-se na China e disseminou-se pela Europa. Alexandre Yersin, discípulo de Pasteur, descobriu o bacilo da peste bubônica em Hong Kong e logo depois, juntamente com Calmette e Roux, desenvolveu uma vacina (imunização ativa) e um soro (imunização passiva) contra a peste.
A mesma abordagem está sendo feita com a Covid-19. Vários laboratórios estão desenvolvendo vacinas anti-CoV-2
https://doi.org/10.1016/j.immuni.2020.03.007
Porém, o tempo entre o desenvolvimento e a aplicação da vacina pode demorar anos.
Não podemos prescindir de estudos em animais experimentais para avaliar a eficácia da vacina, pois aplicar uma vacina na população, sem fazer testes experimentais, pode acarretar problemas mais graves do que já temos.
Por exemplo, uma vacina usando apenas a proteína S (a glicoproteína da espícula do vírus responsável pela ligação do vírus à célula hospedeira) tem sido desenvolvida, pois o racional desta abordagem é que induzindo anticorpos contra a glicoproteína S, o vírus seria neutralizado.
No entanto, quando esta hipótese foi testada em macacos, os macacos em vez de estarem protegidos, desenvolveram uma patologia mais grave.
Os autores deste trabalho chamam a atenção que anticorpos podem ter efeito deletério na COVID-19
insight.jci.org https://doi.org/10.1172/jci.insight.123158
Porém, trabalho recente mostrou que a transfusão de plasma de pacientes convalescentes, que possuem anticorpos neutralizantes, para pacientes com COVID-19 grave, foi eficaz em reverter o quadro clínico em 3-7 dias após a transfusão do plasma
www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.2004168117
Estes resultados promissores são contrários aos descritos nos experimentos com macacos.
No entanto, o plasma de convalescentes possui diferentes tipos de anticorpos contra diferentes estruturas do vírus e não só anti-S. Neste sentido, o Prof. Nelson Vaz (UFMG), sugeriu que o plasma de pacientes assintomáticos seja o plasma ideal para se utilizar.
É possível produzir vários anticorpos contra diferentes determinantes do vírus em laboratório e avaliar qual a melhor combinação.
Considerações finais A população mais vulnerável é a idosa que representa mais de 80% dos óbitos.
Há pelo menos três possibilidades para explicar porque idosos são mais susceptíveis:
  • Idosos expressam mais receptores (ACE2) para o vírus
https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.21.20040261v1
  • Possuem um sistema imunológico senescente que não lida bem com novas infecções;
  • Desenvolvem inflamação mais exacerbada. Pelo menos dois achados dos pacientes graves chamam atenção: a lesão pulmonar associada a um intensa inflamação devido a produção de moléculas inflamatórias denominada de tempestade de citocinas produzidas principalmente pelo sistema imune inato e os problemas de coagulação devido a reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou a produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).
Os problemas de coagulação podem ser tratados com drogas anticoagulantes e em especial a heparina de baixo peso molecular.
No caso da inflamação pulmonar intensa cito Lewis Thomas, médico e pensador americano, que chamou a atenção que uma resposta inflamatória exagerada é mais deletéria ao hospedeiro que o próprio microrganismo.
Portanto, o abrandamento da resposta inflamatória pulmonar parece ser um caminho e o tratamento com corticosteroides (poderosos agentes antiinflamatórios) pode trazer benefícios.
Também é possível pensar em tratamentos anti-inflamatórios administrados por via inalatória, uma vez que o órgão afetado é o pulmão.
Neste sentido, é possível administrar vários medicamentos por via inalatória, com a vantagem de usar menor dosagem que a via sistêmica.
Não podemos encarar a COVID-19 como uma guerra e em nome da guerra dar tiros para tudo que é lado, ferindo a nós próprios.
Devemos encarar a COVID-19 como ela é: uma infecção viral e a partir daí fazer as projeções de evolução da doença e tomar de forma coordenada, as medidas necessárias de contenção da doença para evitar perdas humanas.
*Professor titular de imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP
PS com opinião do Viomundo: O presidente Donald Trump abraçou com força o conceito da guerra ao vírus, para se apropriar da imagem de War President tão cara aos norte-americanos, que a associam a Franklin Delano Roosevelt. Nas últimas horas, serviços de inteligência dos Estados Unidos passaram a disseminar a notícia de que investigam se o vírus teria escapado de um laboratório chinês, dando curso a uma teoria da conspiração que é favorável à campanha de reeleição xenofóbica de Trump — que espertamente escolheu a China e a Organização Mundial da Saúde como bodes espiatórios para seu [de Trump] próprio fracasso. Trump, não se esqueçam, disse que talvez “milagrosamente” o vírus ia desaparecer dos EUA.

Nenhum comentário: