domingo, 26 de abril de 2020

O MESTRE AGRIPINO SE TORNOU ESTRELA

Foto: Francisco M. da Costa, 2002 (Dossiê IPHAN 8, 2009)


O MESTRE AGRIPINO SE TORNOU ESTRELA

“Silêncio, morreu um poeta no morro...”

A talentosa Alcione, em 1976, celebrizou “A morte de um poeta”, de Totonho e Paulinho Rezende, que é a exata descrição deste momento em que se eterniza, aos 101 anos, o nosso eterno e terno Poeta da viola de cocho e do cururu e siriri, Mestre Agripino Soares de Magalhães (1918 — 2020), nascido em Poconé (MT) e que viveu e se dedicou ao resgate da identidade cultural pantaneira em Corumbá (MS).

Domingo, 26 de abril de 2020. A manhã de outono sufocante nestes dias tórridos em solo pantaneiro nos traz a desalentadora notícia de que o Mestre Agripino Soares de Magalhães, o centenário Poeta da viola de cocho e do cururu e siriri, se eternizou “como um pássaro cantor quando vem o entardecer”, nos sábios versos de Totonho e Paulinho Rezende, compositores de “A morte de um poeta”, celebrizadas por Alcione em 1976 (disponível pelo link youtube.com/watch?v=aBJwiC6LDWI).


Chegado de Poconé (MT) aos nove anos de idade, Seu Agripino foi acolhido por uma família corumbaense que lhe ensinou o duro ofício dos adultos da casa, o de estivador, no então movimentado porto de Corumbá, cidade que adotou e por cuja cultura lutou até os últimos dias de vida. Vivendo e convivendo com os ribeirinhos, nunca abandonou a arte a que sua família se dedicava — a confecção da viola de cocho e a manifestação do cururu e siriri —, fato constatado em fins da década de 1970 pela Professora Eunice Ajala Rocha em sua dissertação de Mestrado, sob a coorientação dos historiadores Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa.

Tive a honra e o privilégio de conhecer o senhor Agripino em um evento promovido pela saudosa Professora Eunice, em 1979, em que apresentava um grupo de cururueiros dirigido pelo agora saudoso Poeta da viola de cocho, a entoar: “Moça morena cor de canela / Moça morena cor de canela / Entra na cozinha / Que eu te espero na janela...” Não faltavam mentes colonizadas, que torciam o nariz, a despeito da riqueza identitária que o grupo de pantaneiros generosamente oferecia aos espectadores inebriados com aquela (sic) “novidade” (porque havia se tornado invisibilizada pela chamada cultura de massas, introduzida pela indústria cultural, em especial pelo inevitável modismo, em detrimento das raízes, que, a bem da verdade, nunca seduziram as elites econômicas, assumidamente identificadas com o “modo americano de vida”).

Tio-avô da Professora Cristiane Sant’Anna de Oliveira (irmão de sua saudosa Avó), o Mestre Agripino, entre 1994 e 2001, participou com a modéstia que lhe era peculiar das atividades do Pacto Pela Cidadania (Movimento Viva Corumbá), sob a coordenação do saudoso Dom José Alves da Costa, e a partir de agosto de 1999 do Padre Pasquale Forin. Lado a lado com o Poeta Balbino G. de Oliveira e o saudoso Doutor Walter Wolmar Rien, foi um entusiasta participante das conquistas milimétricas durante a construção da participação social no Programa BID Pantanal, que incluía a revitalização das atividades e espaços culturais do Pantanal nos dois estados. Em setembro de 2001, no anfiteatro da Cidade Dom Bosco, perante um público de mais de oitocentas pessoas que lotavam o espaço, na presença do saudoso Padre Ernesto Sassida como anfitrião do evento, o Mestre Agripino encantou todos os participantes, sobretudo jovens corumbaenses e visitantes de Campo Grande ligados à Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Cultura e Turismo (Semactur).

Pois, graças à “teimosia” da querida Professora Eunice e à sensibilidade e determinação da igualmente saudosa e querida Professora Heloísa Helena da Costa Urt, a nossa sempre presente Helô, no início da década de 2000, quando assumiu a gestão da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque (ILA), em substituição ao também querido Amigo Augusto César Proença, decorrente da troca de titulares da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, trouxe o Mestre Agripino para o projeto pioneiro de fabricação de viola de cocho e promoveu uma série de eventos para a difusão do cururu e do siriri, tendo inserido nossos mestres nos projetos de valorização então em curso em Mato Grosso e fazendo dessas manifestações culturais identitárias centro das atenções em níveis local e regional.

A partir de então o que restava da extinta Funarte (Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular) e depois o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) integrou Corumbá e Ladário, como cidades de Mato Grosso do Sul, ao processo de salvaguarda do modo de fazer da viola de cocho, no contexto da manifestação do cururu e do siriri, como patrimônio imaterial da cultura brasileira. Entre os vários documentos, há o Dossiê Iphan nº 8, que reúne todas as iniciativas pioneiras, bem documentado e ilustrado, publicado em 2009 pelo IPHAN, disponível pelo link ipatrimonio.org/wp-content/uploads/2017/05/PatImDos_ModosFazerViolaCocho_m.pdf.


O fato é que com o esvaziamento, no governo golpista de Michel Temer, do Ministério da Cultura e o rebaixamento de status no desgoverno do psicopata que tomou de assalto os destinos da nação, reduzindo acintosamente as verbas para a Cultura e desestimulando o incentivo às atividades artístico-culturais via Lei de Incentivo à Cultura e Lei Rouanet, o longo e demorado processo (no sentido histórico) de valorização da cultura popular perdeu a necessária prioridade, e seus protagonistas, como o Mestre Agripino, voltaram a entrar em vertiginosa invisibilização. Não é demais afirmar que quem votou no estrupício tem participação no desmonte da soberania popular por meio da interrupção do fortalecimento das culturas e das identidades nacionais, então em curso.

No próximo 25 de maio, Dia do Senhor Divino, a viola de cocho do Mestre Agripino, com a sua fita vermelha, como explicara em 2002 para pesquisadores do Centro Nacional de Cultura Popular do IPHAN (“cada santo tem sua cor”), não estará a tocar para os devotos. Pela primeira vez em mais de quatro décadas, desde que o Mestre decidiu não fugir às suas raízes pantaneiras, como poconeano-corumbaense de quatro costados (ou melhor “de chapa e cruz”). Partiu a exatos trinta dias da celebração do Senhor Divino. Mas, no dizer do poeta e jornalista Sérgio Bittencourt, de saudosa memória, em sua belíssima homenagem ao pai, Jacob do Bandolim, em 1974, eternizada na voz da saudosa Elizeth Cardoso, A Divina: “Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim...” (disponível pelo link youtube.com/watch?v=2dpHFDKtoY).


Homenagens póstumas nem sempre são oportunas, porque fica em nossas consciências o que não foi feito enquanto o homenageado estava entre nós. Mas no caso de um Mestre da estatura do agora saudoso Poeta da viola de cocho e do cururu e siriri Agripino Soares de Magalhães, nada mais justo que, primeiramente, um decreto municipal de luto oficial por três dias e a denominação de algum espaço público destinado à cultura com o seu honrado nome, corretamente grafado (porque equivocadamente disseminaram-se diversas formas de grafar o seu nome completo, o que inspira dúvida no momento de consultá-lo por meios digitais). É o mínimo que Corumbá deve fazer em sua homenagem.

Até sempre, querido Mestre Poeta Agripino, e obrigado por seu generoso legado, e agora por existir como uma estrela cintilante, a nos orientar pela eternidade!

Ahmad Schabib Hany

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