Miguel Hernández e
‘Las nanas de la cebolla’
O
rastro de sangue e destruição do fascismo (ou o nome que tiver a
extrema-direita na época ou no país em questão) costuma ser funesto e doloroso.
Na Espanha de Franco, o Poeta Miguel Hernández não só perdeu um filho ainda
bebê como a própria Vida e, sobretudo, o reconhecimento por décadas de uma obra
tão ou mais significativa de muitos contemporâneos da chamada Geração de 1927,
cuja maior expressão é o eterno Federico García Lorca.
Nas minhas
extenuantes idas e vindas entre Campo Grande e Corumbá em 2022, graças à
generosidade sem fim do Professor Masao Uetanabaro, querido Amigo e Cunhado,
que, além de me franquear seu lar durante o tempo em que permaneço na capital,
costuma me oferecer agradáveis caronas com a sua gentil e fraternal companhia,
sempre ao som de uma trilha sonora enciclopédica e restauradora, delicadamente
selecionada por ele, o que nos serve de assunto para conversas ilustrativas e
relaxantes ao longo de horas de viagem pelo encantador Pantanal (sul) Mato-grossense,
o laboratório de pesquisas desde sua chegada ao então Mato Grosso, quase 50
anos atrás.
Pois é a
ele que devo mais esta importante descoberta. Durante a viagem de retorno a
Corumbá, me pergunta se conhecia o autor de um poema musicado por Alberto
Cortez e interpretado pela voz marcante de Joan Manuel Serrat, intitulado ‘Las
nanas de la cebolla’. Fiquei atônito com o nome e o tema (‘cebolla’, isso
mesmo: a cebola nossa de todos os temperos!), em vez de responder, lhe fiz outra
pergunta, afinal, que raios tem a cebola para ser tema de poema, décadas depois
musicado por Cortez e interpretado por ninguém menos que Serrat?
Sábio e
didático, primeiro me fez ouvir a encantadora e triste canção, e percebendo o
meu encanto voltou a tocá-la duas vezes mais. Então é que me conta a história
por trás da composição e o nome do autor, o até então desconhecido Poeta Miguel
Hernández, autor de poemas inspiradíssimos, e grande lutador pela República e
contra o fascismo, razão pela qual foi perseguido e preso até morrer num desumano
cárcere fascista na Espanha submetida à tirania do general Francisco Franco com
a ajuda de Adolf Hitler e militares de elite nazistas sobre a resistência
republicana espanhola.
‘Las nanas
de la cebolla’ (‘O ninar da cebola’) foi escrito em 1939 por Miguel Hernández
depois de receber a carta de sua Companheira, Josefina Manresa, que desabafara
sobre a dureza daqueles tempos, pois ela, que amamentava seu filho de oito
meses de Vida, só conseguia comer pão e cebola. Eles haviam perdido o
primogênito por esse então, também bebê. A resposta àquela carta angustiante
foi esse poema que não só denuncia aqueles tempos de opressão e fome como
revela a capacidade criativa de um incansável republicano, revolucionário antifascista,
ainda que sob o jugo fascista e a condenação à pena capital, mais tarde
comutada a 30 anos e um dia, mas que em nada muda seu destino, pois falece em
consequência de doenças contraídas no cárcere (tifo e tuberculose) em 1942,
antes de completar 32 anos de idade.
“A cebola é
geada / Fechada e pobre. / Geada de teus dias / E de minhas noites. / Fome e
cebola, / Gelo preto e geada, / Grande e redonda.” É assim como Miguel
Hernández inicia o poema cujo título, segundo estudiosos, foi dado por um amigo
do poeta quando de sua publicação póstuma em uma revista literária de 1946: ‘La
nana de mi hijo’ (‘O ninar de meu filho’), mas nos livros publicados pouco
depois, ganhou o título definitivo, com o qual um público maior ao ser musicado
por Alberto Cortez e gravado por Joan Manuel Serrat, em meados da década de
1970.
E segue
Hernández: “No berço da fome / Meu menino estava /
Com sangue de cebola / Se amamentava / Mas teu sangue / Coberto de açúcar, /
Cebola e fome. / Uma mulher morena / Resoluta em lua / Se derrama em fio a fio
/ Sobre o berço. / Ri-te, menino / Que te trago a lua / Quando é preciso. / Teu
riso me faz livre / Me põe asas. / Solidões me tomam, / Cárcere me arranca /
Boca que voa, / Coração que em teus lábios / Relampejam. / É teu riso a espada
/ Mais vitoriosa / Vencedor das flores / E meiguices / Rival do sol / Porvir de
meus ossos / E de meu amor.”
Filho de
camponeses, Hernández foi pastor de cabras em sua Horihuela (província de Alicante)
e leitor compulsivo de literatura, artes e da cultura de seu país, ainda
criança. Quando saía para pastorear levava consigo um dos livros emprestados da
congregação católica vizinha, que mantinha um colégio para os filhos das
famílias endinheiradas da região. Estudara numa escola sem paredes nem teto
mantida por voluntárias católicas. Era a forma como as famílias de
trabalhadores conseguiam alfabetizar os seus filhos, em poucos anos, apenas
para ‘preparar-se’ para o trabalho.
O cônego do
colégio ao lado, pelo contrário, lhe franqueou o acesso ao ser conquistado pelo
garoto inquieto de ideia fixa: mostrava-lhe poesias e desenhos ao dizer que
queria ser um poeta conhecido, tanto que foi o mecenas do primeiro livro de
Miguel, bastante jovem, contendo algumas poesias inocentemente eróticas, que
não foram censuradas pelo sacerdote. Mais tarde, Bispo de León (importante diocese
da Espanha franquista), essa amizade lhe custa caro: mesmo casado em cartório
com Josefina Manresa, a poucos dias de falecer, Hernández precisou se casar
novamente, apenas para atender a uma exigência do velho amigo, já ligado ao
franquismo, para demonstrar uma conversão que sequer estava em questão.
Eis a
verdadeira face do fascismo. O mesmo que ronda nossos dias e noites. Como
hienas furibundas, assediam nossas Vidas sem qualquer comiseração, humanidade
ou civilidade. Que o garoto irrequieto, talentoso e sonhador (sobretudo tomado
pela generosa utopia de deixar um mundo melhor para as gerações futuras)
chamado Miguel Hernández, neste emblemático final de 2022, nos comova e inspire
para renovar nossas esperanças e lutas por uma sociedade mais humana, justa,
solidária e livre. Conhecendo algo dele não há como não nos reportarmos a
cidadãos com a mesma grandeza, como os saudosos Herbert de Souza (o Betinho da
Ação da Cidadania), Padre Pasquale Forin e Doutor Ricardo Brandão, entre tantos
outros, como atualmente o querido Padre Júlio Lancelotti e o não menos
inspirador (ex-frei) Leonardo Boff. Feliz Natal e um transformador Ano Novo!
Ahmad Schabib Hany
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