segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

MIGUEL HERNÁNDEZ E 'LAS NANAS DE LA CEBOLLA'


Miguel Hernández e ‘Las nanas de la cebolla’

O rastro de sangue e destruição do fascismo (ou o nome que tiver a extrema-direita na época ou no país em questão) costuma ser funesto e doloroso. Na Espanha de Franco, o Poeta Miguel Hernández não só perdeu um filho ainda bebê como a própria Vida e, sobretudo, o reconhecimento por décadas de uma obra tão ou mais significativa de muitos contemporâneos da chamada Geração de 1927, cuja maior expressão é o eterno Federico García Lorca.

Nas minhas extenuantes idas e vindas entre Campo Grande e Corumbá em 2022, graças à generosidade sem fim do Professor Masao Uetanabaro, querido Amigo e Cunhado, que, além de me franquear seu lar durante o tempo em que permaneço na capital, costuma me oferecer agradáveis caronas com a sua gentil e fraternal companhia, sempre ao som de uma trilha sonora enciclopédica e restauradora, delicadamente selecionada por ele, o que nos serve de assunto para conversas ilustrativas e relaxantes ao longo de horas de viagem pelo encantador Pantanal (sul) Mato-grossense, o laboratório de pesquisas desde sua chegada ao então Mato Grosso, quase 50 anos atrás.

Pois é a ele que devo mais esta importante descoberta. Durante a viagem de retorno a Corumbá, me pergunta se conhecia o autor de um poema musicado por Alberto Cortez e interpretado pela voz marcante de Joan Manuel Serrat, intitulado ‘Las nanas de la cebolla’. Fiquei atônito com o nome e o tema (‘cebolla’, isso mesmo: a cebola nossa de todos os temperos!), em vez de responder, lhe fiz outra pergunta, afinal, que raios tem a cebola para ser tema de poema, décadas depois musicado por Cortez e interpretado por ninguém menos que Serrat?

Sábio e didático, primeiro me fez ouvir a encantadora e triste canção, e percebendo o meu encanto voltou a tocá-la duas vezes mais. Então é que me conta a história por trás da composição e o nome do autor, o até então desconhecido Poeta Miguel Hernández, autor de poemas inspiradíssimos, e grande lutador pela República e contra o fascismo, razão pela qual foi perseguido e preso até morrer num desumano cárcere fascista na Espanha submetida à tirania do general Francisco Franco com a ajuda de Adolf Hitler e militares de elite nazistas sobre a resistência republicana espanhola.

‘Las nanas de la cebolla’ (‘O ninar da cebola’) foi escrito em 1939 por Miguel Hernández depois de receber a carta de sua Companheira, Josefina Manresa, que desabafara sobre a dureza daqueles tempos, pois ela, que amamentava seu filho de oito meses de Vida, só conseguia comer pão e cebola. Eles haviam perdido o primogênito por esse então, também bebê. A resposta àquela carta angustiante foi esse poema que não só denuncia aqueles tempos de opressão e fome como revela a capacidade criativa de um incansável republicano, revolucionário antifascista, ainda que sob o jugo fascista e a condenação à pena capital, mais tarde comutada a 30 anos e um dia, mas que em nada muda seu destino, pois falece em consequência de doenças contraídas no cárcere (tifo e tuberculose) em 1942, antes de completar 32 anos de idade.

“A cebola é geada / Fechada e pobre. / Geada de teus dias / E de minhas noites. / Fome e cebola, / Gelo preto e geada, / Grande e redonda.” É assim como Miguel Hernández inicia o poema cujo título, segundo estudiosos, foi dado por um amigo do poeta quando de sua publicação póstuma em uma revista literária de 1946: ‘La nana de mi hijo’ (‘O ninar de meu filho’), mas nos livros publicados pouco depois, ganhou o título definitivo, com o qual um público maior ao ser musicado por Alberto Cortez e gravado por Joan Manuel Serrat, em meados da década de 1970.

E segue Hernández: “No berço da fome / Meu menino estava / Com sangue de cebola / Se amamentava / Mas teu sangue / Coberto de açúcar, / Cebola e fome. / Uma mulher morena / Resoluta em lua / Se derrama em fio a fio / Sobre o berço. / Ri-te, menino / Que te trago a lua / Quando é preciso. / Teu riso me faz livre / Me põe asas. / Solidões me tomam, / Cárcere me arranca / Boca que voa, / Coração que em teus lábios / Relampejam. / É teu riso a espada / Mais vitoriosa / Vencedor das flores / E meiguices / Rival do sol / Porvir de meus ossos / E de meu amor.”

Filho de camponeses, Hernández foi pastor de cabras em sua Horihuela (província de Alicante) e leitor compulsivo de literatura, artes e da cultura de seu país, ainda criança. Quando saía para pastorear levava consigo um dos livros emprestados da congregação católica vizinha, que mantinha um colégio para os filhos das famílias endinheiradas da região. Estudara numa escola sem paredes nem teto mantida por voluntárias católicas. Era a forma como as famílias de trabalhadores conseguiam alfabetizar os seus filhos, em poucos anos, apenas para ‘preparar-se’ para o trabalho.

O cônego do colégio ao lado, pelo contrário, lhe franqueou o acesso ao ser conquistado pelo garoto inquieto de ideia fixa: mostrava-lhe poesias e desenhos ao dizer que queria ser um poeta conhecido, tanto que foi o mecenas do primeiro livro de Miguel, bastante jovem, contendo algumas poesias inocentemente eróticas, que não foram censuradas pelo sacerdote. Mais tarde, Bispo de León (importante diocese da Espanha franquista), essa amizade lhe custa caro: mesmo casado em cartório com Josefina Manresa, a poucos dias de falecer, Hernández precisou se casar novamente, apenas para atender a uma exigência do velho amigo, já ligado ao franquismo, para demonstrar uma conversão que sequer estava em questão.

Eis a verdadeira face do fascismo. O mesmo que ronda nossos dias e noites. Como hienas furibundas, assediam nossas Vidas sem qualquer comiseração, humanidade ou civilidade. Que o garoto irrequieto, talentoso e sonhador (sobretudo tomado pela generosa utopia de deixar um mundo melhor para as gerações futuras) chamado Miguel Hernández, neste emblemático final de 2022, nos comova e inspire para renovar nossas esperanças e lutas por uma sociedade mais humana, justa, solidária e livre. Conhecendo algo dele não há como não nos reportarmos a cidadãos com a mesma grandeza, como os saudosos Herbert de Souza (o Betinho da Ação da Cidadania), Padre Pasquale Forin e Doutor Ricardo Brandão, entre tantos outros, como atualmente o querido Padre Júlio Lancelotti e o não menos inspirador (ex-frei) Leonardo Boff. Feliz Natal e um transformador Ano Novo!

Ahmad Schabib Hany

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