UM ALERTA PARA AS NOVAS GERAÇÕES
Longe de pretender fazer um ‘testamento’, este modesto e despretensioso depoimento não tem outro intuito que alertar as novas gerações sobre equívocos cometidos por nossas gerações, na sincera vontade de acertar...
Sou de uma das gerações que derrotaram a ditadura, e isso me honra. Não por vaidade, mas em respeito às gerações que nos antecederam, cujos expoentes tiveram as suas vidas brutalmente ceifadas, e às gerações futuras, pois é a elas que o mundo pertence.
Tínhamos consciência dos riscos iminentes e muita convicção de que nosso compromisso com o porvir nos exigia não errar, não cometer aventuras. Obviamente, não foi fácil: muitas vidas foram sacrificadas, muitas carreiras mutiladas, muitos projetos adiados ou abandonados, muitas reputações enxovalhadas, muitos relacionamentos interrompidos. O objetivo individual generosamente ficava subordinado aos justos e legítimos interesses coletivos, sem titubeio, hesitação ou arrependimento.
No entanto, na ânsia de erradicar o vírus inoculado ao longo de mais de duas décadas de autoritarismo e intolerância, incorremos em erros próprios de quem pretende acertar, o que permitiu que fosse fecundado o ovo da serpente, ardilosamente fincado no coração do Planalto Central e com tentáculos bem distribuídos por todos os quadrantes deste país de dimensões continentais.
De antemão, entendo que a incompetência da penca de ‘olheiros’ (para evitar outros termos para essa atividade repugnante, oportunamente tratada pelo Amigo-Camarada Fausto Matto Grosso em “Arapongagem no Partidão”, em seu blog esta semana), causou prejuízos, mas não equivalentes aos estragos da época da ditadura, embora não tenham sido poucos os constrangimentos por suas trapalhadas ao longo de seus (des)serviços. Conhecidos e reconhecíveis pelas bizarras condutas (e uma delas é a de ‘afanar’ e acumular papéis, sem quaisquer critérios), os pobres diabos (mais diabos que pobres, pois auferem desde sempre altos proventos) não se estabeleceram por falta de competência, como podemos constatar com estes fantoches travestidos de patrioteiros.
Dando nomes aos bois (já que uma das pedras angulares do golpe de 2016 foi a adesão desse setor da economia e seus vínculos com o segmento dos sertanejos, salvo honrosas exceções): no processo de efetivação do Estado Democrático de Direito, a partir de 1988 (pós-Constituição Cidadã), dedicamo-nos quase cegamente à institucionalização das conquistas democráticas, sobretudo à consolidação do chamado controle social (isto é, a participação da cidadania nos conselhos deliberativos de elaboração, monitoramento e fiscalização das políticas sociais, com ênfase para a saúde, assistência social, direitos da criança e do adolescente, pessoas com deficiência, idosos, juventude, mulher, negro, direitos humanos, alimentação escolar, educação, cultura, desenvolvimento rural, cidade, plano diretor participativo, meio ambiente, patrimônio histórico, saneamento ambiental, recursos hídricos, gestor de área de preservação ambiental, transportes urbanos, erradicação do trabalho infantil, combate à exploração sexual infantojuvenil etc.
À exceção de Corumbá - cujos gestores setoriais conseguiram antever e antecipar o golpe em preparação na esfera federal e sem qualquer pudor nos apearam em 2011 e 2012 com a execrável contribuição de colegas não governamentais -, entre 1993 e 2016 priorizamos com exclusividade o controle social das políticas públicas, deixando para segundo plano as imprescindíveis atividades de formação de jovens, adolescentes, mulheres, trabalhadores urbanos e rurais, ribeirinhos, indígenas, desempregados, comunidades religiosas e periferia.
Enquanto gastávamos dinheiro de nosso próprio bolso para efetivar o controle social e a intervenção qualificada das políticas públicas, consultores ligados, sobretudo, a igrejas neopentecostais, entidades filantrópicas e OSCIPs profissionais, obtinham financiamento público para megaprojetos de efetividade marqueteira. Resultado: no momento em que, baseados na prática desenvolvida em regime de voluntariado em mais de duas décadas, nos valíamos de nossas contribuições pioneiras, tudo isso não dizia mais nada porque não tinha o chancela da burocracia, o carimbo do cartório.
Desde então, passamos a ser tratados como delinquentes, farsantes, demagogos (quando com pioneirismo provado desenvolvemos expertise que compartilhávamos de graça, no afã de disseminar conhecimento e empoderar as pessoas anônimas, que acabaram sendo cooptadas por técnicos e burocratas chamados de consultores e avalizados por agentes equivocados do estado, já sob a administração do calabrês que fez de Mato Grosso do Sul terra de ninguém, como vem sendo constatado nestes dias com o desbaratamento de grupelhos, verdadeiras quadrilhas, seja no desvio de dinheiro público ou em atividades delitivas, em que o tráfico de influência e a extorsão passaram a ser moeda de troca.
Também, o consórcio BBB (bala, boi e Bíblia) foi se consolidando em nível local, e, pior, com nossa ingênua contribuição, ao ceder generosamente informações estratégicas, sem malícia ou mesquinharia. Passado o período de distanciamento temporal, hoje temos o cenário explícito, todo o emaranhado exposto com a limpidez matinal. Não são poucas as OSCIPs que ajudamos a fundar e a se viabilizar, cujas direções não hesitaram em virar as costas, sem qualquer dissimulo. Mas “agora Inês é morta”...
Não que devêssemos ter sido tacanhos, avarentos com o que a Vida generosamente nos propiciou mediante nossa experiência e estudo (muito estudo, eis que nada se adquire do acaso). O fato é que enquanto ‘ralávamos’ com denodo e voluntarismo, estrategistas de organismos multilaterais e ONGs internacionais foram desenvolvendo os chamados “novos paradigmas de empoderamento” construídos e pensados por nós mas registrados e patenteados por ‘eles’.
Tudo isso, além da teologia da prosperidade, que nada tem de teologia e muito menos de prosperidade: é um esquema primário de autoajuda e muita, mas muita extorsão. Um grande Pastor (com letra maiúscula, tamanha a sua dignidade) evangélico revelou, em tom de advertência, que o período representado pelos mais de 13 anos de governos petistas, de franca prosperidade para amplas camadas da população, propiciou ajustada e estratégica oportunidade para o segmento neopentecostal fundamentalista disseminar a ideia de que a fé na teologia da prosperidade estava produzindo a ascensão econômica e social do convertido, como um livramento (sic) proporcionado pela fé. Essa foi uma das razões do alastramento do fundamentalismo neopentecostal nos segmentos sociais emancipados pelos programas sociais dos governos de Lula e Dilma, e a razão para não guardarem qualquer memória ou gratidão desse período de bonança, pois se tratara do “milagre do livramento”, conforme a doutrinação do fundamentalismo neopentecostal.
É desse Pastor a seguinte provocação: além de trabalhar muito para despertar os irmãos vitimados por essa verdadeira obsessão, resta-nos assistir aos argumentos dos dirigentes fundamentalistas neopentecostais ante as inegáveis perdas econômicas ocorridas nos últimos anos, de modo recorrente e sucessivo. Dentro da lógica medieval maniqueísta, do bem contra o mal, terão que criar figuras satânicas para justificar a inoperância de uma gestão dissociada dos reais interesses do povo para beneficiar setores empresariais, como o financeiro e as corporações transnacionais, as maiores beneficiárias das medidas de fato priorizadas pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro (ao lado do lumpesinato constituído pela rede de dirigentes de igrejas fundamentalistas pentecostais e de grupos milicianos nas periferias urbanas ou no campo, travestidos de ‘seguranças’, ‘síndicos’, ‘olheiros’, provedores, pistoleiros, garimpeiros e grileiros).
Quem contar com mais de 60 anos de idade certamente se lembrará que, nos anos 1970, quando a juventude brasileira, levada pela cruenta realidade, começava a questionar o estado de coisas em que vivíamos, uma horda de “Meninos de Deus” e assemelhados (entre elas a seita de Jim Jones, tristemente célebre pelo suicídio coletivo ocorrido) se espalhavam pelo mundo, inclusive o Brasil. Com uma liturgia alienante e individualista, em que a promessa de que o reino dos céus era esperado para os seus seguidores, essa seita (categorizada assim pelas instituições depois que elucidados os dogmas e práticas) foi investigada, denunciada e condenada por práticas similares à exploração da boa-fé, escravidão e trabalho indecente.
Por outro lado, enquanto políticos corruptos camaleônicos, então travestidos de petistas ou aliados dos governos petistas, agiam como corretores, agenciadores de grandes grupos empresariais, em megaprojetos inconsistentes, como a ‘retificação’ e dragagem da hidrovia, do polo ‘gás-químico’ e ‘minero-siderúrgico’ no coração do Pantanal (requentados do tempo da ditadura), em que mercenários de toda ordem nos difamavam como que fôssemos patrocinados pelos países árabes do petróleo ou de nações irmãs como Bolívia, “interessadas em ‘atrasar o progresso’” (eufemismo para enriquecimento ilícito de verdadeiros pilantras, porque sonegadores, como o famoso empresário-predador, filho de alto executivo do regime de 1964, hoje preso, desmascarado e falido).
Enquanto os difamadores, mercenários, recebiam seus gordos jabaculês, nós, que nada mais fazíamos que o livre exercício da cidadania (assegurado pela Constituição de 1988), recorríamos à fundamentação científica e tirávamos dinheiro da boca de nossas crianças para reproduzir documentos e tentar contrapor à enxurrada de fake news disseminadas sem qualquer pudor por todos os meios possíveis e imagináveis. Entre eles um conhecido traficante de drogas a financiar a defesa dos valores (digam-se: cifrões, $$$) ocidentais, alugando caminhões de som, ‘jagunços’ e motoqueiros ensandecidos, na ignóbil ânsia de amedrontar nossas Famílias e Amigos/as (com letras maiúsculas, pois são dignos/as de toda reverência de nossa parte por não terem se deixado levar por esses insanos atos de terrorismo obscurantista).
Isso acontecia em Corumbá em pleno governo Lula, quando o Brasil era reconhecido no concerto das nações como democracia em ascensão e potência mundial no combate à fome e às desigualdades sociais e étnicas. Essas mesmas quadrilhas, é bom que se diga, atuaram com a mesma ‘desenvoltura’ (sic) e sordidez durante a preparação do golpe criminoso (porque assassino, com três massacres comprovados pela OEA e ONU) na Bolívia entre outubro de 2019 e setembro de 2020. Diferentemente que no Brasil, nossos irmãos bolivianos lhes deram a sova merecida, nas urnas e no aprendizado político, pois, depois desta experiência, eles aprimoraram suas estratégias de enfrentamento a esse bando de hienas, sob coordenação de Steve Bannon e a quadrilha, digo, ‘dinastia’ trapo, aquela que quer se perpetuar no coração do poder, no Planalto Central.
É oportuno dizer também que os tais ‘paladinos’ (de interesses inconfessáveis), falsos moralistas e patrioteiros de ocasião, são incapazes de pensar: agem apenas sob o mando e o comando (isto é, a inteligência, em todos os sentidos) do hemisfério Norte, seja na execução do serviço sujo, isto é, de ‘jagunços’, ou no cumprimento de tarefas mais elaboradas, como no caso da trupe de Curitiba, aquela matilha de doninhas sorrateiras que atendia pelo sugestivo nome de ‘trepanação leva jeito’. Mas isto é apenas a ponta do iceberg (como será denunciado para o mundo), tanto durante a execução do golpe em La Paz (Bolívia) em novembro de 2019, como na malsucedida tentativa de golpe no Capitólio, em Washington, em janeiro deste ano.
Em síntese, há muito por ser feito, sobretudo depois do, no dizer da Amiga-Camarada Estela Scandola, ‘pandemônio’. Agravado, sim, pelo nefelibata que arrebatou corações amargurados e mentes equivocadas. Até porque, assim como a Vida, a História é um devir incessante e imponderável, para felicidade dos desassossegados que não pensam como Francis Fukuyama (um Bannon mais erudito) e seu nada sábio Fim da História, de 1989, que celebrava o triunfo do liberalismo sobre o fascismo e o socialismo, e atribuía em linhas gerais ao mercado a solução dos grandes desafios da humanidade (que acabou negado pela própria História ao se constatar que, nas últimas décadas, aumentaram os conflitos, a desigualdade social, exclusão, fome e miséria e, sobretudo, a exploração econômica e social dos trabalhadores em todo o mundo), um ensaio elaborado apenas e tão somente para agradar seus amos e senhores de Manhattan.
Ainda que com erros inevitáveis - porque, nas sábias palavras de Paulo Freire, “a Vida não tem ensaio” -, cometidos com as melhores intenções, é verdade, conseguimos fazer com que a Constituição de 1988 não ficasse nas frias letras da lei, não fosse ‘letra morta’. Mas nossa priorização extremada no institucional acabou abrindo brecha para que abutres, serpentes e hienas tomassem de assalto os destinos da nação. No entanto, enganam-se os que pensam que os que venceram a ditadura permanecerão impávidos no momento em que esses fantoches produtos do ódio tomaram de assalto o porvir do país-continente e teimam em levar toda a população ao precipício, sem esboçar qualquer gesto de empatia ou solidariedade.
Ahmad
Schabib Hany
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