segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

POR QUEM OS SINOS DOBRAM (uma reflexão sobre a solidariedade)


POR QUEM OS SINOS DOBRAM (uma reflexão sobre a solidariedade)

Por José Gonçalves do Nascimento (*)

Começo recorrendo ao mestre John Donne, citado por Ernest Hemingway, no clássico "Por Quem os Sinos Dobram": “Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

Costuma-se dizer que o que nos une, enquanto humanidade, é maior do que aquilo que nos divide. E é verdade. Pelo menos nestes aspectos: habitamos sob o mesmo teto, respiramos o mesmo ar, bebemos a mesma água; vivemos sob o mesmo céu, nos banhamos no mesmo mar, nos alimentamos dos mesmos nutrientes; temos em comum o nascer, o viver e o morrer; partilhamos dos mesmos problemas, das mesmas inquietações, das mesmas incertezas; somos semelhantes em tudo, inclusive na finitude; participamos dos mesmos destinos, viajamos na mesma embarcação, estamos sujeitos aos mesmos limites.

Destinos comuns, inquietações comuns, problemas comuns, desafios comuns exigem dos humanos gestos, atitudes, caminhos igualmente comuns. Isso implica a capacidade de ver o que se passa no entorno, de olhar para além do próprio umbigo, de atentar para as angústias do outro, de deixar o outro falar, de ir além do que se é cobrado, de romper preconceitos, de ultrapassar fronteiras, de ousar, de provocar, de questionar. Significa assumir a defesa do outro; mais do que isso: colocar-se no lugar do outro, sentir a dor do outro, interessar-se pelo outro; correr risco pelo outro. Implica, às vezes, não apenas ensinar o caminho, mas pegar na mão do outro e levá-lo até o caminho; não apenas ensinar a pescar, mas também pegar no anzol e ajudar o outro a pescar; é colocar “o coração na miséria alheia”, no dizer de Guimarães Rosa; é Ir junto, fazer junto, incomodar-se junto, resistir junto, lutar junto, celebrar junto...

Carregamos em nós infinitas possibilidades, entre as quais a de superar o individualismo tacanho que nos avilta e nos distancia do nosso real papel enquanto membros de uma comunidade de semelhantes. Carregamos em nós, igualmente, a disposição para práticas concretas de altruísmo e de dedicação ao serviço da causa humana, bem como do ambiente em que vivemos, nele incluídos outros seres vivos, a terra, o mar, o ar, os rios, as florestas.

Só a solidariedade, como valor universal e intrínseco à natureza humana, é capaz de conceber relações de paz, de justiça, de tolerância, de respeito às diferenças (individuais e coletivas), de acolhimento ao migrante, ao refugiado, aos que se encontram à margem da sociedade, aos excluídos de tudo e de todos.

A solidariedade está na luta dos defensores do acesso à terra por parte daqueles que dela dependem para morar, trabalhar, cultivar sua lavoura, alimentar sua criação, comer, beber, educar seus filhos.

A solidariedade está na luta dos defensores do uso da moradia por parte de quem não dispõe de um lar digno onde possa repousar com o mínimo de conforto e segurança.

A solidariedade está na luta dos defensores das populações de rua, habitantes de outra cidade dentro da mesma cidade, cidadãos de papel, reféns da culpa de terem nascidos pobres, pretos, gays, lésbicas, analfabetos, nordestinos, alcoólatras.

A solidariedade está na luta do povo indígena em defesa do seu direito à terra, aos rios, às florestas, à caça, à pesca; bem como ao pleno usufruto das suas culturas, das suas línguas, das suas religiões, dos seus saberes, das suas filosofias, dos seus mistérios, dos seus feitiços.

A solidariedade está na luta do povo afrodescendente que a todo momento busca impor-se, ocupar espaços de decisão, e usufruir de oportunidades iguais em relação aos outros, apesar dos estigmas do preconceito racial (e classial) de que foi e continua sendo vítima.

A solidariedade está na luta política em defesa das liberdades democráticas, na promoção dos direitos humanos e sociais, na afirmação das minorias, na preservação do meio ambiente, no fomento de iniciativas que proporcionam o pleno exercício da cidadania.

A solidariedade está na luta pela construção de uma nova ordem econômica, com base nos princípios do cooperativismo, e sem submeter-se à concorrência desleal e selvagem imposta pela lógica do capitalismo.

A solidariedade está no sangue dos mártires, semente da nova terra, certeza do novo amanhã, rastro de luz a dissipar toda a escuridão.

A solidariedade está no testemunho dos profetas do povo, anunciadores da Boa Nova da paz, da justiça, e co-construtores de uma sociedade de fato civilizada, ética, fraterna e inclusiva.

A solidariedade liberta, transforma, move montanhas, opera milagres, mexe com velhas estruturas, destrona a estupidez, o egoísmo, o orgulho, o rancor; constrói mundos solidamente saudáveis, forja espaços de exercício da liberdade, de promoção da vida, de devoção à dignidade dos seres humanos; de cuidado com tudo o que existe.

Comecei com John Donne e termino como Paulo Freire: “A solidariedade tem de ser construída em nossos corpos, em nossos comportamentos, em nossas convicções”.



(*) Professor José Gonçalves do Nascimento, de Monte Santo (BA), reside em Osasco (SP) e trabalha na rede municipal de ensino de São Paulo. Estudou na Universidade Católica de Salvador, no Instituto de Teologia de Ilhéus e na Pontifícia Universitá Urbaniana di Roma. Autor de diversos textos e livros de temática social. Este texto foi postado numa rede social (Facebook), de onde foi retirado na íntegra (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10211104946453252&set=a.2579447499179&type=3&theater). Correio eletrônico: jotagoncalves_66@yahoo.com.br

DO LADO ESQUERDO DO PEITO (Edson Moraes)


DO LADO ESQUERDO DO PEITO


Edson Moraes


Sexta-feira, 14, na sede da Federação dos Trabalhadores da Educação Publica (Fetems), concorridíssimo lançamento de “Zé Dirceu: Memórias”, em seu Volume I.



Apesar do cansaço, da tosse incômoda e dos reflexos dolorosos de um tombo, ele esteve como sempre o vi: altivo, sereno, universal. Não parecia ter sobre seus ombros a dor de um perverso linchamento midiático e político, muito mais impactante que a angústia eventual da privação de liberdade.



O encarceramento que o incomoda ainda é o do mundo que o contempla, sobretudo pelos que escarnecem sobre seu sofrimento e fazem o butim de suas lágrimas.



José Dirceu em nenhum momento posou de vítima. Faz isso desde que voltou do exílio. Deixa o coitadismo para que os pobres de espírito se fartem à mesa dos torquemadas de ocasião no lauto banquete da hipocrisia.



Mas... que é isso, companheiro? Nada desse ranço saiu de sua boca e de sua cabeça.



Eu ouvi de você a palavra serena, da reflexão, do equilíbrio. A recomendação para reconhecer que erramos, sim, e não erramos pouco. Precisamos ser rigorosos, mais do que temos sido, em nossa autocrítica. Nós – esquerda, PT, campo progressista – contribuímos para que o ventre do bolsonarismo o lançasse à luz, embora seja esta uma prole amante do breu e da obscuridade.



Grato, companheiro, por remeter minha cabeça ao vão fundo e cinzento da coragem pequena que não deixa ver o quanto é forte e capilarizada a ascensão do governo que a maioria dos eleitores de outubro elegeu.



Grato, companheiro, por me reforçar a consciência de não culpar nem maldizer os evangélicos que malafaiaram e macedaram para garantir a vitória do capitão.



É verdade, muito bem lembrado Zé: nós fomos também malafaias e macedos na catolicagem das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e pastorais. Ainda que tivéssemos outro enredo para os temas da exclusão fundiária, do genocídio indígena, da segregação racial, da misoginia, éramos precursores de Silas e Edir na versão apostólica romana. O que não soubemos foi construir essa caitituagem social para torná-la consistente, densa e, sobretudo, duradoura.



Grato, enfim, companheiro, por submeter-se à lei dos homens sem acocorar-se diante da injustiça!
Sei que a legalidade não é ciência exata.



Grato, por último, pela poesia que o ambiente democrático escreve e desenha, garrancheia e borra, limpa-suja as nuvens e o chão da história que estamos fazendo, da história que estamos contando, da história que vai nos contar.



Grato, companheiro! Você veio aqui para nos mostrar que perdemos!



É assim que se ganha!



(Edson Moraes)



***** Zé Dirceu recebe o livro “Bugre Rima com Estrelas”, do autor Edson Moraes, seu amigo e correligionário, na sede da Fetems em 14/12/2018 (Foto Andréia Cercariolli)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

POESIA E SORVETE DE GUAVIRA (Luiz Taques)


Poesia e sorvete de guavira

Luiz Taques

A tarde chegava. Eu pensava nele, em sua risada gostosa, quando, de repente, começou a chover forte em Londrina.
 
Fui fechar a janela da sala e vi, do outro lado da rua, um carteiro prestes a ficar ensopado.
Então, desci rápido pelos degraus da casa, abri o portão da garagem e o convidei para entrar.
O carteiro aceitou, mas preferiu ficar na varanda. Arranjei-lhe um banquinho e um livro. Sim, um livro dele, Manoel de Barros.
Quando o temporal passou, vinte ou trinta minutos depois, o carteiro me chamou, agradeceu pela acolhida e, quando se preparava para me devolver o exemplar, eu disse que ele podia levá-lo, pois era um presente de Natal, dado de coração.
O carteiro agradeceu e saiu feliz, sorrindo, a falar: - Vou continuar a ler ainda hoje, porque - sabe, moço? - sou formado em Letras aqui mesmo no campus da UEL e já devorei mais de trezentos livros, e este aqui, ó, está entre os melhores que li.
E o carteiro foi embora carregando junto a suas cartas "O Guardador de Águas", um dos grandes livros de Manoel de Barros.
Não tive dúvida: na mesma hora, liguei para a casa do poeta, lá em Campo Grande, e contei-lhe o ocorrido.

O poeta riu com aquela sua risada gostosa, com aquela mesma risada gostosa que me fez lembrar dele no início da tarde, e, em seguida, veio com essa na invencionice deste conto curto:
- Para demonstrar sua eterna gratidão por não ter levado chuva intensa nas costas, o que um danado de um carteiro não é capaz de nos dizer logo após um aguaceiro, não é mesmo?
"Ô, poeta!", respondi-lhe de imediato e ainda ficcionalmente: "Como esse carteiro, dezenas e centenas e milhares de outras pessoas pelo Brasil afora apreciam a sua literatura e sorvete de guavira".
- Passar bem, Barros gentilmente me respondeu.
Porém, acrescentou:
- Acredito no que você fala, já que sei que quem aprecia sorvete de guavira e que lê poesia de boa qualidade é como pássaro criado solto na natureza: nunca perde o paladar refinado!

Desconfio ter retrucado:
"Antigamente, entre um chope e outro, você sempre me dizia que era tímido e fraco para elogios."
Sim, desconfio ter realmente retrucado isso.
Porque, do outro lado da linha, o poeta continuava soltando aquela sua risada gostosa.

PUBLICADO NA "FOLHA DE LONDRINA" (19 DE DEZEMBRO DE 2018, QUANDO O POETA FARIA 102 ANOS DE NASCIMENTO)


MEMÓRIA

Um conto para Manoel de Barros


O poeta mato-grossense faria 102 anos nesta quinta-feira(19), a Folha 2 publica um conto em sua homenagem


O poeta Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT) em 19 de dezembro de 1916. Passou a infância e adolescência em Corumbá (MS). Estudou direito e morou no Rio de Janeiro, antes de fixar residência em Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, onde veio a falecer em 13 de novembro de 2014. 

Manoel de Barros tem mais de vinte livros publicados. Alguns deles: "Gramática Expositiva do Chão", "Retrato do Artista Quando Coisa", "Compêndio Para Uso de Pássaros" e "O Fazedor de Amanhecer". Também ganhou os principais prêmios literários, como o Jabuti e o APCA (Associação Paulista de Crítico de Artes).
Há três filmes/documentários sobre a vida e a obra do poeta: "Caramujo-flor", de Joel Pizzini; "Só Dez Por Cento é Mentira", de Pedro Cezar, e "O Poeta é um Ente que Lambe as Palavras e se Alucina", de Arlindo Fernandes de Almeida.
Em homenagem ao dia de nascimento do poeta, a Folha 2 publica o conto "Poesia e Sorvete de Guavira", escrito por Luiz Taques. Autor do livro "Vaso de Colher Chuvas - Contos-reportagem com Manoel de Barros" (editora Letradágua), Taques era amigo do poeta. O conto, "Poesia e sorvete de guavira", ele dedica à sua sobrinha Taís Satiko. 

FOLHA DE LONDRINA, 19 DE DEZEMBRO DE 2018 (CADERNO B)

DATA VÊNIA, DOUTOR ULYSSES!


DATA VÊNIA, DOUTOR ULYSSES!

Ainda que o presidente nanico da mais alta corte da Justiça brasileira tenha apequenado o Estado Democrático de Direito e, mais uma vez, permitido que a Constituição Federal de 1988 fosse mais uma vez estuprada, reverberam em nossas consciências os brados do maior democrata que esta nação testemunhou, no exato momento em que a Constituição Cidadã era promulgada, e cuja síntese é esta: “A sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram...”

Perdoe-os, Doutor Ulysses. Eles não sabem o que fazem... Os dois últimos presidentes do STF preferiram estar ao lado dos facínoras que mataram Rubem Paiva, não há dúvida. Mas temos ainda brasileiros da magnitude de Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Apenas, mas temos. Porque não se apequenam. Porque não têm medo da farda. Não têm medo do coturno. Não têm medo de tanques. Como o povo brasileiro, que, quando se cansar de toda essa farsa, não temerá cercos, cercas, baionetas, cassetetes, bombas de efeito moral ou balas de borracha, e até as reais.

O Doutor Ulysses, aquele mesmo senhor que ousou ser anticandidato em 1973, em pleno período sombrio da ditadura de Emílio Garrastazu Médici, tendo como mote uma estrofe de Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”. O mesmo que, em 1989, com a lealdade que lhe era peculiar, apoiou o candidato metalúrgico contra o caçador de maracujás, digo, marajás (mas onde estão os marajás neste país cujas elites padecem de complexo de vira-latas?), depois de ter sido vítima da deslealdade daqueles que se locupletaram da democracia recém-conquistada. Pois é, mesmo humilhado por uma inexpressiva votação em sua última eleição parlamentar, em 1990, teve a altivez de encabeçar o movimento dos caras pintadas e apoiar o necessário processo de impeachment contra Collor, a segunda grande farsa (a primeira havia sido Jânio, e a terceira é Bolsonaro).

Se fizermos memória e relembrarmos as ironias do mequetrefe pena de aluguel, sabujo de última da famiglia proprietária da maior máquina de propaganda cuja concessão deveria ter sido cassada pelos desserviços cometidos contra a nação, Alexandre Garcia, quando o nomeou de “tetrapresidente” com o único afã de desmoralizá-lo, eis que o veterano político jamais caíra nas graças desses meliantes serviçais do império. E qual não foi a satisfação com que cobriram o (sic) “desaparecimento” de seu corpo nas águas do Oceano Atlântico, em 12 de outubro de 1992, dias depois do impeachment de Collor, o candidato daquela família nefasta?

Pois bem, para o(a)s pouco(a)s que leem nestes tempos de analfabetismo cerebral (não mais funcional, pois são os/as portadores/as de “diplomas” os/as que mais têm dificuldade de depreender o que têm diante de si), deixo a íntegra do pronunciamento de Ulysses Guimarães no ato solene de promulgação da Constituição Federal de 1988, como um réquiem para nossa finada Democracia, pelos que deveriam protegê-la, preservá-la e fazer valer. Mas, como dizia Millôr Fernandes, naqueles anos de chumbo e gemidos: “‘Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.’ Mas que tinha os dois jaz a sete palmos.”

“Senhoras e senhores Constituintes, minhas senhoras e meus senhores! Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse como presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, cinco de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão, e é só cidadão quem ganha suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa, num país de trinta milhões, quatrocentos e trinta e um mil analfabetos, afrontosos vinte e cinco por cento da população, cabe advertir: a cidadania começa com o analfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição, como vigia espera a aurora.”

“A nação nos mandou executar um serviço: nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim; divergir, sim; descumprir, jamais; afrontá-la, nunca! Traidor da Constituição é traidor da Pátria! Conhecemos o caminho maldito: rasgar a própria Constituição, trancar as portas do Parlamento, cercear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, para o exílio, para o cemitério.”

“Quando, após anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do homem, da liberdade, da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura -- ódio e nojo! --, amaldiçoamos a tirania, onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina! Foi a audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram elaboradas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, do longo trajeto das subcomissões à redação final.”

“A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria, salões... Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar...”

“Como caramujo, guardará para sempre nas costas o bramido das ondas de sofrimento, esperança, reivindicações de onde proveio. Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres, teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, bastante dilatada, a edição de 56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos de que na ausência da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção. Tem significado de diagnóstico, a constituição terá largado o exercício da democracia em representativa além de participativa -- é o clarim da soberania popular indireta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o campo das necessidades sociais.”

O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é um superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos, do presidente da república ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune toma nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam! Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.”

“Não é a Constituição perfeita: se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser reformada, remendada, até por maioria mais acessível, dentro de cinco anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora: será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados...”

“É caminhando que se abrem os caminhos! Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros, ignorados da miséria! A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. O Estado era Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: "Desobedecer El-Rey para servir a El-Rey." O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros.”

“O Estado prendeu e exilou, a sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia libertou e repatriou. A sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram... Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já e pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar! A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança... Que a promulgação seja o nosso grito: mudar para vencer! Muda, Brasil!...”

Data vênia, Doutor Ulysses!

Ahmad Schabib Hany

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

SENHOR LINCOLN GOMES, UM CORUMBAENSE EMBLEMÁTICO

Senhor Lincoln Gomes, um corumbaense emblemático

Com profunda tristeza soube, pela professora Terezinha Baruki, do encantamento do senhor Lincoln Gomes, pai da querida Consuelo Gomes Maia, amiga de adolescência que adotei de minhas irmãs, e da professora Laura Gomes. Conheci Seu Lincoln, como nos acostumamos a chamá-lo com toda a reverência, por meio de meu saudoso pai. O então jovem senhor era funcionário do Banco do Brasil e fazia Psicologia na mesma turma em que também cursavam meu saudoso irmão Mohamed e o pastor Cosmo Gomes de Souza, reverendo da escola da Primeira Igreja Batista de Corumbá, onde cursei o preparatório para o exame de admissão ao ginásio na década anterior.

Bastante afável, Seu Lincoln atendia todos os clientes da concorrida agência bancária que o procuravam com a mesma atenção e deferência, gesto que desde minha infância ficara marcado. Mas foi na Missa de Sétimo Dia de falecimento de meu irmão, em setembro de 1974, que sua atitude me marcou definitivamente: como colega de turma, fez questão de entoar, com sua singular voz de tenor, belos hinos religiosos, que emocionaram a todos os presentes. Aquele gesto foi mais que um ato solidário de colega de turma. A morte não esclarecida de meu irmão constara oficialmente como suicídio (com base em declaração de um adolescente de 15 anos, eu, tomado pelo impacto de ver seu irmão inerte, sem ter sido feita qualquer investigação ou perícia pelas autoridades policiais), o que na época não permitia celebração póstuma -- no entanto, ele e outros colegas foram até o bispo diocesano, Dom Ladislau Paz, e mediante argumentos que ficaram com eles, foram celebradas as missas de Sétimo Dia e de 30º Dia, na Igreja Matriz, além de uma inesquecível homenagem de seus colegas na cerimônia de formatura, um ano depois.

Desde então, Seu Lincoln passou a ser muito mais que um colega de turma de meu saudoso irmão, mas um Amigo (desses com letra maiúscula) que afavelmente conversava conosco, fosse na agência em que trabalhava ou em eventos em que estivéssemos juntos. Um de seus últimos cargos no banco foi o de responsável local pela Carteira de Comércio Exterior (Cacex), vinculada ao Departamento de Comércio Exterior (Decex) do Banco do Brasil, extinto posteriormente pelo governo Collor. Até então, a Cacex local, sob sua responsabilidade, emitia boletins com o movimento diário das exportações para a Bolívia por Corumbá, de um milhão e meio de dólares em média, enviados para toda a imprensa local e regional.

Elegante, atencioso e rigorosamente profissional, Seu Lincoln marcou sua permanência no Banco do Brasil por sua cordialidade tipicamente corumbaense e sua postura de lorde inglês, aliás, um cavalheiro completo. Além disso, como católico, sua participação nas cerimônias mais importantes da Catedral de Nossa Senhora da Candelária, como tenor do memorável Coral da Matriz, o tornaram uma presença cativa nos meios culturais. Em julho de 1991, o nome de Seu Lincoln surgiu quando fui hipotecar solidariedade ao também saudoso médico e professor Salomão Baruki -- não apenas fundador do Instituto Superior de Pedagogia (depois Centro Pedagógico da UEMT e posteriormente Centro Universitário da UFMS, hoje CPAN), mas criador do então Instituto Luiz de Albuquerque de Pesquisas e Estudos Regionais (ILA) quando secretário de Educação e Cultura do último governo de Mato Grosso uno, na gestão do governador Cássio Leite de Barros --, que havia sido destituído, sem prévia comunicação e pelo Diário Oficial, da coordenação do ILA que ele mesmo criara treze anos antes, e colocado em seu lugar um amigo bem próximo, o advogado Walmir Coelho, no governo de outro amigo seu, Pedro Pedrossian (em cuja primeira gestão, no velho estado uno, havia criado, a pedido seu, o Instituto Superior de Pedagogia, mais tarde vinculado à UEMT).

Não por acaso, quando começamos os preparativos do primeiro evento de sensibilização pela revitalização da à época Casa de Cultura Luiz de Albuquerque (ou ILA), em agosto de 1991, o recém-aposentado e prestigiado Lincoln Gomes foi uma unanimidade para a presidência da Sociedade dos Amigos da Cultura, responsável pela realização da Primeira Semana da Cultura (de 14 a 20 de setembro daquele ano). E por meio das atividades feitas com o agora saudoso Amigo pude conhecer os igualmente Amigos Augusto César Proença, Armando Lacerda e Mário Sérgio Abreu, além do saudoso escritor gaúcho-pantaneiro Walmir Crocce, integrantes da primeira diretoria responsável pela mobilização pioneira da sociedade local em defesa de seu patrimônio histórico, artístico e cultural.

Aliás, durante a realização desse evento, Dom José Alves da Costa, saudoso bispo diocesano de Corumbá entre 1991 e 1999, então recém-chegado, se identificou com a sagrada pugna em favor do ILA e do patrimônio histórico local, tendo posteriormente coordenado o Pacto Pela Cidadania (Movimento Viva Corumbá), a partir de sua fundação, em junho de 1994. Assim, no derradeiro governo do doutor Wilson Barbosa Martins, a então secretária de Cultura, professora Idara Duncan Negreiros, realizou a primeira restauração do ILA, cuja revitalização ficou consignada no Programa Pantanal, financiado pelo BID, mas que não saiu das intenções.

Depois de ter ficado viúvo da eterna companheira de sua Vida, Dona Terezinha de Souza, Seu Lincoln se afastou discretamente das atividades de cidadania em Corumbá, passando a maior parte de seu tempo ao lado de suas queridas filhas e familiares por várias cidades do Brasil. Nossos últimos contatos foram por meio das redes sociais, sempre dentro de temáticas relativas à cidadania ou à política. Não foram muitas, mas intensas, as nossas conversas pessoais sobre Corumbá e suas justas demandas, mas seu espírito desassossegado de cidadão a toda prova, acima de nossas diferenças políticas e filosóficas, sempre me marcou em sua trajetória de corumbaense emblemático.

Nossos sentimentos, com profunda e sincera emoção, para a querida Consuelo, a professora Laura e a todos os membros de sua querida família, cujo luto é compartilhado por todos os que o conheceram, estimaram e admiraram em Vida, sobretudo por sua grandeza de alma.

Até sempre, Seu Lincoln!

Ahmad Schabib Hany