DATA VÊNIA, DOUTOR ULYSSES!
Ainda
que o presidente nanico da mais alta corte da Justiça brasileira tenha
apequenado o Estado Democrático de Direito e, mais uma vez, permitido que a
Constituição Federal de 1988 fosse mais uma vez estuprada, reverberam em nossas
consciências os brados do maior democrata que esta nação testemunhou, no exato
momento em que a Constituição Cidadã era promulgada, e cuja síntese é esta: “A
sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram...”
Perdoe-os,
Doutor Ulysses. Eles não sabem o que fazem... Os dois últimos presidentes do
STF preferiram estar ao lado dos facínoras que mataram Rubem Paiva, não há
dúvida. Mas temos ainda brasileiros da magnitude de Marco Aurélio Mello, Ricardo
Lewandowski e Celso de Mello. Apenas, mas temos. Porque não se apequenam.
Porque não têm medo da farda. Não têm medo do coturno. Não têm medo de tanques.
Como o povo brasileiro, que, quando se cansar de toda essa farsa, não temerá
cercos, cercas, baionetas, cassetetes, bombas de efeito moral ou balas de
borracha, e até as reais.
O
Doutor Ulysses, aquele mesmo senhor que ousou ser anticandidato em 1973, em
pleno período sombrio da ditadura de Emílio Garrastazu Médici, tendo como mote
uma estrofe de Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”. O
mesmo que, em 1989, com a lealdade que lhe era peculiar, apoiou o candidato
metalúrgico contra o caçador de maracujás, digo, marajás (mas onde estão os
marajás neste país cujas elites padecem de complexo de vira-latas?), depois de
ter sido vítima da deslealdade daqueles que se locupletaram da democracia
recém-conquistada. Pois é, mesmo humilhado por uma inexpressiva votação em sua
última eleição parlamentar, em 1990, teve a altivez de encabeçar o movimento
dos caras pintadas e apoiar o necessário processo de impeachment contra Collor,
a segunda grande farsa (a primeira havia sido Jânio, e a terceira é Bolsonaro).
Se
fizermos memória e relembrarmos as ironias do mequetrefe pena de aluguel, sabujo
de última da famiglia proprietária da maior máquina de propaganda cuja
concessão deveria ter sido cassada pelos desserviços cometidos contra a nação,
Alexandre Garcia, quando o nomeou de “tetrapresidente” com o único afã de
desmoralizá-lo, eis que o veterano político jamais caíra nas graças desses meliantes
serviçais do império. E qual não foi a satisfação com que cobriram o (sic) “desaparecimento”
de seu corpo nas águas do Oceano Atlântico, em 12 de outubro de 1992, dias
depois do impeachment de Collor, o candidato daquela família nefasta?
Pois
bem, para o(a)s pouco(a)s que leem nestes tempos de analfabetismo cerebral (não
mais funcional, pois são os/as portadores/as de “diplomas” os/as que mais têm
dificuldade de depreender o que têm diante de si), deixo a íntegra do
pronunciamento de Ulysses Guimarães no ato solene de promulgação da Constituição
Federal de 1988, como um réquiem para nossa finada Democracia, pelos que
deveriam protegê-la, preservá-la e fazer valer. Mas, como dizia Millôr
Fernandes, naqueles anos de chumbo e gemidos: “‘Em terra de cegos, quem tem um
olho é rei.’ Mas que tinha os dois jaz a sete palmos.”
“Senhoras
e senhores Constituintes, minhas senhoras e meus senhores! Dois de fevereiro de
1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A nação quer mudar, a nação
deve mudar, a nação vai mudar. São palavras constantes do discurso de posse
como presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, cinco de outubro de
1988, no que tange à Constituição, a nação mudou. A Constituição mudou na sua
elaboração, mudou na definição dos Poderes, mudou restaurando a Federação,
mudou quando quer mudar o homem cidadão, e é só cidadão quem ganha suficiente
salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa, num
país de trinta milhões, quatrocentos e trinta e um mil analfabetos, afrontosos
vinte e cinco por cento da população, cabe advertir: a cidadania começa com o
analfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição, como vigia espera a aurora.”
“A
nação nos mandou executar um serviço: nós o fizemos com amor, aplicação e sem
medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir
a reforma. Quanto a ela, discordar, sim; divergir, sim; descumprir, jamais;
afrontá-la, nunca! Traidor da Constituição é traidor da Pátria! Conhecemos o
caminho maldito: rasgar a própria Constituição, trancar as portas do Parlamento,
cercear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, para o exílio, para o
cemitério.”
“Quando,
após anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do homem, da
liberdade, da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura
-- ódio e nojo! --, amaldiçoamos a tirania, onde quer que ela desgrace homens e
nações, principalmente na América Latina! Foi a audácia inovadora a arquitetura
da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O
enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas
populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram elaboradas,
publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, do longo trajeto das
subcomissões à redação final.”
“A
participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes
franquearam livremente as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do
parlamento à procura dos gabinetes, comissões, galeria, salões... Há, portanto,
representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de
fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de
posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e
militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que
ora passa a vigorar...”
“Como
caramujo, guardará para sempre nas costas o bramido das ondas de sofrimento,
esperança, reivindicações de onde proveio. Nós, os legisladores, ampliamos
nossos deveres, teremos de honrá-los. A Nação repudia a preguiça, a negligência,
a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordinária, bastante dilatada, a edição de
56 leis complementares e 314 leis ordinárias. Não esquecemos de que na ausência
da lei complementar os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo
mandado de injunção. Tem significado de diagnóstico, a constituição terá
largado o exercício da democracia em representativa além de participativa -- é
o clarim da soberania popular indireta, tocando no umbral da Constituição, para
ordenar o campo das necessidades sociais.”
O
povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é um
superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo
parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos,
do presidente da república ao prefeito, do senador ao vereador. A moral é o
cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela
corrupção impune toma nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a
tiranizam! Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o
primeiro mandamento da moral pública.”
“Não
é a Constituição perfeita: se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria,
com humildade e realismo, admite ser reformada, remendada, até por maioria mais
acessível, dentro de cinco anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil,
pioneira, desbravadora: será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados...”
“É
caminhando que se abrem os caminhos! Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor
o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros, ignorados da miséria! A sociedade
sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. O Estado era
Tordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando
uma das maiores geografias do mundo. O Estado, encarnado na metrópole,
resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa
integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a
liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira,
que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: "Desobedecer
El-Rey para servir a El-Rey." O Estado capitulou na entrega do Acre, a
sociedade retomou com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e
dos seus seringueiros.”
“O
Estado prendeu e exilou, a sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia libertou
e repatriou. A sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram... Foi
a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já e pela transição e
pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que
comecei esta fala: a nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar! A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo
à mudança... Que a promulgação seja o nosso grito: mudar para vencer! Muda, Brasil!...”
Data
vênia, Doutor Ulysses!
Ahmad Schabib Hany
2 comentários:
Perfeito o texto. Realmente a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, promulgada em 1988, marco da redemocratização e da inclusão de direitos civis e sociais, onde o 'Dr Ulisses’, símbolo da resistência contra a ditadura, deixou um legado político sem paralelo, infelizmente hoje está esquecida. Sim, o mataram. Inventaram um acidente aéreo, como fazem com muitos. Matam, depois inventam falsos "acidentes"! Ou prendem, encarceram, amordaçando ideais, conseguindo com isso conter a Democracia e fazer valer a conduta coercitiva, bastante natural dos líderes ditatoriais. "EU vejo o futuro repetir o passado", frase musical de Cazuza, mais que bem vinda na atual conjuntura política. Porém, tudo isso não nos impedirá jamais de continuarmos a lutar por um Brasil democrático e respeitador da Constituição Federal, nossa única arma contra os ditadores assassinos e fascistas! Seremos eternamente resistentes e não temeremos balas qualquer, seja de brochara ou de chumbo. Hasta la victoria siempre!
Obrigado, Jota Jota, pelas contribuições oportunas e autênticas.
Bem-vindo sempre, e estamos juntos na luta por uma sociedade livre de ódio, intolerância, preconceitos e autoritarismo.
Grande abraço!
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