Em Seu Valdenei eu ponho fé
Na terra do "sabe com quem está falando?", o humilde trabalhador não pode apresentar uma versão que saia do lugar comum que é condenado, chamado de mentiroso, e alvo de uma gama de deboches. Combinemos, então, que as instituições que cuidam da fauna nativa nas áreas urbanas e rurais aprimorem seu monitoramento, tanto no perímetro urbano e periurbano como nas áreas rurais com presença humana, Rio Paraguai acima e Rio Paraguai abaixo. Ou ficamos de braços cruzados a esperar que vítimas fatais -- que não falam -- deixem seu depoimento para algum médium poder psicografar na posteridade?
Em vez de caçoar -- ou melhor, debochar -- dos pantaneiros e pantaneiras que recorrem a verdadeiras proezas para pedir socorro, por que os doutos, sabe-tudo de plantão, não cobram dos órgãos estaduais e municipais -- pois os federais já estão apinhados -- a urgente adoção de plano emergencial de monitoramento permanente de animais silvestres no perímetro urbano e periurbano, bem como na área rural em que há presença humana em nossa região?
Já passou da hora de assistir à postura reativa dos gestores de políticas públicas locais e estaduais se passando por "turistas", como que não soubessem que é de sua responsabilidade -- e não só das instituições federais -- o monitoramento do trânsito em perímetro urbano e periurbano de animais silvestres. Debochar de pantaneiro estressado que há mais de oito anos denuncia a circulação de onças em sua modesta moradia, já tendo mostrado animais domésticos mortos e a criação dizimada por sucessivos ataques dos felinos silvestres em seu sítio.
Não. Ele é ribeirinho em área não titulada. Ah, se fosse proprietário rural, aí o tratamento seria outro. Porque há muitos anos esse cidadão vem clamando por socorro. Torçamos para que não tenham se sentido frustrados por não ter sido mais um caso de ser humano devorado por onça. Nunca se sabe do insólito que está por trás dos meritocratas, burocratas e quetais.
O Pantanal ensina, sim, a encontrar formas de chamar a atenção antes de virar refeição de felino faminto, retirante das chamas criminosas que o expulsaram de seu habitat. Nesse contexto há no mínimo três vítimas do descaso: a fauna, a flora e as populações humanas -- originários e ribeirinhos que existem desde antes da criação do 'estado modelo' cujos altos executivos e similares de outros poderes creem que Mato Grosso do Sul se restringe ao perímetro compreendido pelas avenidas Mato Grosso, Afonso Pena e Calógeras e Parque dos Poderes.
O Poeta Manoel de Barros, no único encontro que tive a honra de privar graças à generosidade de um Amigo comum -- o escritor e Jornalista Luiz Taques -- foi de uma generosidade peculiar quando, ao saber que sou morador de Corumbá, disse que a terra que acalentou sonhos de sua infância era celeiro de talentos. Irreverente, deu uma gostosa gargalhada quando Taques lhe revelou que tinha tentado fundar três editoras no coração do Pantanal: "É louco, é louco!"
Mas por que o maior Poeta de língua portuguesa da transição do século XX para o século XXI considerava Corumbá celeiro de talentos? Deixo a resposta para os doutos, estudiosos de Manoel de Barros, como meu Amigo, o Professor Doutor Júlio Xavier Galharte, outro generoso e genial corumbaense que a intelligentsia sul-mato-grossense ainda não descobriu. Ou melhor, finge ignorar. Como, aliás, fez com talentos como o agora saudoso Jornalista e Cineasta Cândido Alberto da Fonseca e o igualmente querido e saudoso Camarada Manoel Sebastião da Costa Lima, inesquecível Amigo Manoel da Guató, gigante e generoso estudioso cujos manuscritos jazem, permanecem adormecidos, em sua singular biblioteca em Campo Grande.
Com os dois Manoéis aprendi que a generosidade dos proletários deste paraíso na Terra é superlativa, da dimensão das terras alagadas sem fim de abundância e fecundidade. Não há exagero, há fertilidade. Não há mentira, há imaginação. Onde abunda inspiração e generosidade não há avareza, cobiça e usurpação impunes. Ainda que leve tempo. Ainda que os pretensos donos da justiça, hoje muitos deles de tornozeleira, nos imponham a lei das selvas de pedra deles.
E não se trata de deboche quando afirmo que de vítimas fatais de ataques de animais silvestres só se colhe depoimento por meio de psicografia, de médiuns bastante experientes. Ao contrário, o deboche vem daqueles que normalizaram o 'protocolo' do "sabe com quem está falando?", muito comum em nossos insólitos tempos. Estou mentindo quando homens "de bens" (no plural), com o maior acinte perjuram que as imensas labaredas foram acidentais, e que as autoridades, quando muito, levam anos para aplicar-lhes a lei?
Originário e ribeirinho não têm vez, ou melhor, nunca tiveram vez e voz. Quando algum ousado fala, como o Professor Anísio Guató -- leal Companheiro de lutas desde os generosos tempos da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, trinta anos atrás -- ou o Seu Valdenei da Silva Pereira -- vítima de assédio de onças em sua humilde moradia de ribeirinho na área periurbana de Corumbá, porteiro há mais de 20 anos de condomínio no bairro Universitário e Amigo que fiz na Paróquia do saudoso Padre Pasquale Forin --, é comum ver especialistas fazendo cara de paisagem, fingindo não entenderem o que estão ouvindo. "Porque são inconvenientes", alegam com total desprezo, próprios de sua soberba, pois só eles, os doutos, é que sabem das coisas...
E que eles me desculpem, mas eu prefiro ficar do lado do Anísio e do Valdenei. Este, um grande contador de histórias. Já o apresentei a muitos Jornalistas com quem costumo conversar e, obviamente, ficaram deslumbrados com tamanha genialidade desse pantaneiro cuja desenvoltura atávica (herdada dos ancestrais pantaneiros) poderia torná-lo "alter ego", como Bernardo foi de nosso eterno Poeta Manoel de Barros.
Com toda a dignidade de que é merecedor, saúdo o Amigo Valdenei por ter sobrevivido ao maior de todos os ataques, o das bestas feras que campeiam soltas nas instituições desde que Ernesto Geisel, na ânsia de dar uma sobrevida à sua Arena de triste memória, passou a régua e dividiu o Pantanal. A partir de então Corumbá não foi a mesma, foi transformada em edícula desimportante da Calógeras, aquela avenidazinha provinciana cujo cheiro de humanidades não conseguiu sufocar o cosmopolitismo da altiva, elegante e sesquicentenária Avenida General Rondon, palco da história do centro urbano do coração da América do Sul, do sol e do sal.
Porque não basta ser sede de governo, é preciso ser cosmopolita para entender a complexidade da realidade pantaneira. Bioma, que é conectado ao Planeta, não traz qualquer relação promíscua com herdeiros de bandeirantes que veem como commodities a biodiversidade e a riqueza étnica que faz do Pantanal um único conjunto de ecossistemas, diferente de todos os demais no Planeta. Sinto muito, mas isso os provincianos dos campos de vacaria jamais compreenderão.
Pena que o saudoso Amigo Seu Jorge Katurchi não mais esteja entre nós, pois ele, sim, do alto de sua integridade ética, teria subscrito, ao lado do Amigo Armando Lacerda, uma contundente nota pública em defesa do Pantanal e dos pantaneiros, sem voz e vez. Como vimos fazendo desde 1991, sob a condução do querido e saudoso Dom José Alves da Costa, fosse na Sociedade dos Amigos da Cultura, na Segunda Semana Social Brasileira, no Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, no Pacto pela Cidadania, na Comissão Pró-Cultura de Corumbá e no Fórum Permanente de Entidades não Governamentais de Corumbá e Ladário.
Em seu Valdenei eu ponho fé. Ou será preciso desenhar?
Ahmad Schabib Hany
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